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Princípio da legalidade e dialeticidade do direito

01/03/2003 às 00:00
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A lei, em sua majestática grandeza, dá a todos o direito de jantar no ritz e dormir embaixo da ponte - Anatole France

O ato de desobediência, como ato de liberdade, é o começo da razão - Ercih Fromm

Os princípios, ainda que absolutos, não são uma amarra, um empecilho às mudanças do direito. É que traduzem as verdades e valores máximos do ordenamento num dado momento da história, mas não são eternos, não obstante alguns perdurarem por séculos, outros duram bem menos.

Esta mudança será tanto maior quanto forem as ocorridas na própria sociedade, na sua política, na filosofia, na epistemologia, na moral. Tudo quanto altere o modo de pensar do legislador e do juiz é causa de alteração do direito.

Casos há em que as mudanças são bruscas, como nas revoluções. O mais comum, porém é que o direito seja alterado paulatinamente.

A dialética afeta o direito de duas formas: interna e externamente.

Internamente a dialética consiste no confronto dentre normas e princípios de subsistemas diferentes. Disto poderá resultar uma nova norma, por via legislativa ou jurisprudencial, que assimilará aspectos das anteriores, mas que será algo diferente da soma das mesmas. Se o conflito se der entre uma norma, ou princípio de subsistema, e um princípio geral, será o caso de uma antinomia, a qual deverá resultar na manutenção deste. Caso a antinomia se verificar entre normas de um mesmo subsistema, aplicam-se os critérios usuais. Tal processo gerará novas normas e princípios que poderão vir a se tornar novos Princípios Gerais de Direito, conforme comecem a surgir semelhantes sínteses.

Para bem evidenciar o que ocorre externamente podemos recorrer à teoria da autopoiese do Direito, que vem da teoria sistêmica em sociologia e que tem como maior expoente Niklas Luhman, o qual diz que o Direito é "um sistema normativamente fechado, mas cognitivamente aberto" (apud Roberto Correia da Silva Gomes Caldas, O Papel da Constituição Sob uma Visão Autopoiética do Direito, RT Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 20, página 213). É pelo fato de que o conhecimento do Direito ser capaz de influir na sua construção, principalmente através das convicções dos juizes, que a dialeticidade acaba por ser a construtora da unidade. Vejamos um pouco o que seja esta autopoiese para fixarmos bem a importância desta dialética no Direito. Das idéias de Maturana e Varela em biologia, surgiu a idéia da autopoiese, logo encampada pelos sociólogos, dentre os quais o pioneiro é o já citado Luhman, que se dedicou ao Direito especificamente. Os biólogos através de sua pesquisa caracterizaram os seres vivos como sistemas que produzem a si próprios. A teoria sistêmica tem, então, uma universalidade própria daquilo que vem se chamando de pós-modernidade, além de uma reflexividade, que é a característica de explicar a si mesma, já que se propõe a tudo explicar. A teoria dos sistemas deve poder tudo explicar, inclusive a própria teorização, concebendo tudo como sistema, ou seja através da auto-referência, acrescido do que não é sistema que é o meio circundante. Daí que sistema autopoiético é aquele com uma organização autopoiética, quer dizer, onde há a reprodução dos elementos que compõem o sistema por si mesmos. Tal sistema é autônomo porque o que acontece nele não é determinado por nenhum componente do ambiente, mas sim por sua própria organização. Em Direito isto é visível na medida em que as normas são produzidas por elementos do próprio sistema: o Poder Legislativo, cuja existência é jurídica, através do Devido Processo Legal, que também é instituto jurídico, exercido por pessoas escolhidas para tanto, a eleição que é outro instituto jurídico. Ocorre que o Direito, por esta mesma teoria, é reflexivo, vale dizer, deve explicar a si próprio e isso é que permite a sua reprodução. Em razão de sua função de promover a paz social e regular as diversas relações sociais, os elementos de outros sistemas sociais acabam por serem introduzidos no Direito, através de um meio que transporta as mensagens de fora para dentro. Este meio é a ciência jurídica. Assim é que os valores sociais alteram o Direito. "Também o Direito não seria absolutamente imutável, já que para realizar sua função social adequadamente tem que, ao mesmo tempo, preservar a integridade do sistema social, evitando mudanças excessivas, e viabilizar as transformações necessárias para evitar sua estagnação – e, consequentemente, seu fim. É por isso que para cumprir sua função normativa dispõe de uma estrutura cognitiva, a qual permite dar conta, por exemplo, do constante descumprimento de suas normas, ao que poderá reagir não só insistindo em sua aplicação, mas também revogando-a e/ou editando outra, ou mesmo todo um conjunto de outras (exemplo recente no país, o Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90), solucionando problemas e, ao mesmo tempo, criando vários outros, potenciais, pelo simples aumento de normas" (Willis Santiago Guerra Filho, Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna – Introdução a Uma Teoria Social Sistêmica, Editora Livraria do Advogado, página 65).

Vários outros dados são levados em conta neste processo da transmutação do Direito pela sua estrutura cognitiva reflexiva, como por exemplo a complexidade das alterações sociais, a diferenciação crescente no campo do agir e do experimentar, entre outros. "Assim, tomando por base comparativa o corpo biológico tal qual estudado por Maturana e Varela, Luhman chega ao sistema jurídico como ‘autopoiético’, ou seja, como resultante da hipercomplexidade social e, principalmente, como corolário da diferenciação funcional das esferas do agir e vivenciar, de sorte a não só se revelar como autodisciplinar e autoorganizado, mas também autoproduzido. E isso por trazer em si os elementos e mecanismos capazes de estabelecer a sua homeóstase, os quais estão fundamentalmente determinados na constituição, que, para Michel Herrero de Migñon, tem que refletir obrigatoriamente, o consenso de todos, ‘compreendendo no seu resultado, ao menos virtualmente, o assentimento da minoria’ (op. Cit., p. 59); é só desta forma que a constituição, no sistema autopoiético, é capaz de manter a permanência do seu equilíbrio interno ante os choques exógenos do meio provenientes" (Roberto Correia da Silva Gomes Caldas, O Papel da Constituição sob Uma Visão Autopoiética do Direito, RT Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 20, página 215).

A importância da Constituição aumenta ainda mais quando se encara o Direito como sistema autopoiético, porquanto seja a única norma capaz e legítima para juntar logicamente todos os sub-sistemas jurídicos num todo coerente e orgânico. "A Constituição revela-se como grande responsável pelo acoplamento estrutural entre os (sub)sistemas jurídico e político (cf. Neves, 1994’, p. 61 ss), jurisdicizando [1] relações políticas e mediatizando juridicamente interferências da Política no Direito, ao condicionar transformações nas estruturas de poder a procedimentos de mutação previstos constitucionalmente. Os direitos fundamentais tornam-se, assim, o que há de mais importante a ser consagrado na Constituição de um Estado Democrático, com sua multidimensionalidade, enquanto direitos de liberdade, direitos a prestações (os direitos sociais), direitos à participação na formação da vontade política estatal, direitos de natureza processual etc. (Guerra Filho, 1996). Neles acham-se expresso valores integrantes das ideologias as mais diversas, tornando a Constituição que os consagra uma representação fiel, ou, ao menos, bastante aproximada, da sociedade hipercomplexa que a instituiu" (Willis Santiago Guerra Filho, Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna – Introdução a Uma Teoria Social Sistêmica, Editora Livraria do Advogado, página 71). Em outras palavras, isto que dizer que a aplicação do Direito exige uma compreeensão do mesmo, a qual, por sua vez, pressupõe imaginar esta aplicação e os possíveis resultados disto, sempre com vistas ao sistema como um todo. É aí que se evidencia a circularidade do sistema, a sua reflexividade, de modo que o Direito, de maneira recursiva, voltando-se a si mesmo, se autoproduz.

Bastante útil se mostra esta concepção de Direito como sistema autopoiético para a defesa daqueles direitos cuja previsão constitucional não foi traduzida em leis, o que coloca em xeque a teoria dos graus de eficácia das normas constitucionais, apresentada por Carl Schmidt e defendida com brilho no Brasil por José Afonso da Silva na sua monografia "Aplicabilidade das Normas Constitucionais". A maior crítica feita a tal idéia é justamente a de que a eficácia contida e a eficácia limitada são verdadeiras válvulas de escape para as obrigações estatais. Pela teoria sistêmica este caminho para a omissão estatal se fecha, se não de todo, ao menos em boa parte. "Os interesses coletivos, conquanto respaldados em normas de nível constitucional, não o são por leis regulamentadoras dos direitos, fundamentais, delas advindos, e não é por isso que se vai admitir o seu desrespeito. Caberá, assim, ao Judiciário suprir a ausência completa ou suprir os defeitos da produção legislativa, no sentido da realização tanto dos direitos sociais, econômicos e culturais, como dos chamados ‘direitos fundamentais de terceira geração’, ou ‘direitos de solidariedade’, precisamente aqueles relativos à preservação do meio ambiente, das peculiaridades culturais de minorias étnicas ou ‘éticas’ etc." (Willis Santiago Guerra Filho, Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna – Introdução a Uma Teoria Social Sistêmica, Editora Livraria do Advogado, página 71). Com isto se evidencia que o judiciário assume uma posição destacada dos demais poderes na produção do Direito, o que é de uma importância sem precedentes, mas ainda ignorada, por desconhecimento ou até por má fé, por parcela significativa deste poder. Já não há mais como se pretender que o judiciário esteja a par, ou acima, das discussões políticas. Os artigos 1º e 3º de nossa Constituição imprimiram ao ordenamento jurídico como um todo uma forte coloração política, dado que a integridade do sistema, que passa essencialmente pela constitucionalidade das normas, em razão destes dispositivos, transforma todas as leis, bem como as outras fontes do Direito, em instrumentos para a consecução daqueles objetivos constitucionais.

Antes que se diga o contrário, há sim legitimidade nesta produção jurídica não legislativa, justamente pela reflexividade do Direito, dessa sua capacidade de se transmutar com base no conhecimento obtido de si mesmo, cuja expressão maior é a jurisprudência. É preciso reconhecer isto, para se desvencilhar o judiciário do estigma liberal de mero repetidor de leis. "Nessa direção seria saudável, por exemplo, rejeitarmos a postura fundamentalista dos que não admitem sequer discutir o assunto, dominados pela crença de que o ativismo judicial é de todo incompatível com o regime democrático, onde quem não tem votos não tem legitimidade para emitir comandos com força de lei" (Inocêncio Mártires Coelho, A Criação Judicial do Direito e a Autonomia do Objeto, Revista de Direito Administrativo 208, página 78). Esta legitimidade é inquestionável, somente se ressaltando que tal produção não pode se dar de forma a colocar o legislativo em posição inferior, já que a lei detém a primazia da inovação na ordem jurídica. Curioso é que isto já é reconhecido desde há muito, pelo menos no exterior, enquanto que no Brasil o tema é tratado como verdadeiro tabu. Para ilustrar isto, trazemos um trecho de um discurso do presidente americano Theodore Roosevelt: "Os principais criadores do direito (.) podem ser, e freqüentemente são, os juizes, pois representam a voz final da autoridade. Toda vez que interpretam um contrato, uma relação real (..) ou as garantias do processo e da liberdade, emitem necessariamente no ordenamento jurídico partículas dum sistema de filosofia social; com essas interpretações, de fundamental importância, emprestam direção a toda atividade de criação do direito. As decisões dos tribunais sobre questões econômicas e sociais dependem da sua filosofia econômica e social, motivo pelo qual o progresso pacífico do nosso povo, no curso do século XX, dependerá em larga medida de que os juizes saibam fazer-se portadores duma moderna filosofia econômica e social.." (Mensagem enviada ao Congresso americano em 08/12/08, apud Juizes Legisladores?, Mauro Cappelletti, Editora Sergio Antonio Fabris, preâmbulo). Veja-se que estamos diante de um discurso presidencial enviado ao congresso, o que significa que está a pretender que tanto o Poder Executivo como o Legislativo tomem conhecimento da importância do Poder Judiciário. É certo que naquele país vigora o Common Law, mas nosso ordenamento também permite a criatividade judicial, tanto na Constituição, como em normas infra-constitucionais, por exemplo a Lei de Introdução ao Código Civil. Vale dizer, lá o Presidente pede ajuda ao judiciário para que o judiciário crie um bom direito. Já aqui o Executivo incentiva a idéia de súmula vinculante [2] com o intuito claro de facilitar a manipulação sobre o judiciário e se esse mesmo judiciário, ainda que embasado na lei e na Constituição, profere decisões contrárias à política do Executivo é acusado de não estar pensando no país [3].

O juiz, ao criar o Direito por meio de sua atividade jurídica, não está passando por cima do legislador, nem fazendo suas vezes, mas tão somente concretizando aquilo que a lei e a Constituição colocaram de forma genérica. "A interpretação sempre implica um certo grau de discricionariedade e escolha e, portanto, de criatividade, um grau que é particularmente mais elevado em alguns domínios, como a justiça constitucional e a proteção judiciária de direitos sociais e interesses difusos" (Mauro Cappelletti, Juizes Legisladores? Editora Sergio Antonio Fabris, página 129).

Mesmo a doutrina da eficácia das normas constitucionais não é óbice a uma atividade criativa e responsável do juiz, já que as normas programáticas vêm senso encaradas como normas de eficácia plena. "Logo, nesse momento, é importante firmar o entendimento de que todas as normas programáticas apresentam-se plenamente eficazes, traduzindo-se sua atuação num duplo efeito: efeito negativo, inibitório para o legislativo, executivo e judiciário, que ficam impedidos de escolher outra via que não a preconizada pela norma constitucional e num efeito positivo, pois conferem ao destinatário o direito de exigir o cumprimento da prestação prevista pela norma" (Luis Alberto de Matos Freire Carvalho, Normas Programáticas na Constituição, Revista de Direito Público 82, página 165). Desta feita, bem claro que o juiz não só pode como deve aplicar as normas consideradas programáticas, já que as mesmas, antes de programáticas, são normas e vinculam a atividade jurisdicional como qualquer outra norma. "Não há dúvida que as normas programáticas vinculam a atividade jurisdicional, já que o juiz ao exercer a subsunção, ao aplicar a lei, há de atender aos fins sociais a que ela se destina e as exigências do bem comum, à luz do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil" (Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo Santos, Normas Programáticas – Análise Político-Constitucional, Revista de Direito Público 86, página 145). Ainda que se adote tal teoria da eficácia das normas constitucionais, é possível aplicar a Constituição para concretizá-la. [4]

Isso sem esquecer a importância política deste poder, já aludida, a qual é estrutural. "Para se estruturar o Estado Democrático de Direito há que se ter duas bases fundamentais: a legalidade, de um lado, e o controle judiciário, de outro" (Antonio José da Costa, O Poder Legislativo no Brasil Contemporâneo, RT Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 18, página 20). De fato, a atividade judiciária também é uma atividade política, no sentido de que o judiciário tem uma função social a cumprir, não meramente dogmática ou acadêmica, diletante. Julgar é cumprir um dever, não uma atividade de cunho personalíssimo. O respeito à Constituição impõe uma atividade criativa por parte dos juizes. "Daí que a eficácia das normas constitucionais exige um redimensionamento do papel do jurista e do poder judiciário nesse complexo de forças, na medida me que se coloca o seguinte paradoxo: uma constituição rica em direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prática jurídico-judiciária que, reiteradamente, (só)nega a aplicação de tais direitos" (Lenio Luiz Streck, A Necessária Constitucionalização do Direito: O Óbvio a Ser Desvelado, Revista do Direito 9/10, Editora da UNISC, página 51). Como isso se pode concluir que a criação do Direito pela atividade jurisdicional, além de legítima, se pratica dentro de um limite de razoabilidade e coerência com o ordenamento, é ínsita ao seu exercício. "A criação jurisprudencial do direito é inerente ao exercício da jurisdição e indispensável à evolução cultural, mas não pode deixar de atender à segurança jurídica, que não pode ser confundida com a defesa intransigente do status quo. Ao invés, as notórias deficiências deste precisam ser enfrentadas, em direção a um convívio mais participativo e igualitário, cuja realização não é concebível sem riscos. Nem é outro o caminho para a construção de um futuro mais humano" (Plauto Faraco de Azevedo, Aplicação do Direito e Contexto Social, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, página 163).

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A transmutação dos valores sociais implicará numa alteração do Direito por duas vias: a legislativa e a científica, a qual compreende a jurisprudência e a doutrina, com maior destaque àquela. Pela via legislativa isto se dará ou por pressão social ou por inteligência e sensibilidade do legislador. Pela via científica ocorrerá na medida em que os juristas adotarem para si aqueles valores emergentes e também da inteligência e sensibilidade dos juizes, dado seu dever legal e principiológico de distribuírem justiça, o que exige pleno conhecimento dos valores sociais, temperado com o cuidado de se afastar o populismo e a demagogia. A interpretação da norma é a atividade jurídica por excelência e dela é que nascem as maiores transformações jurídicas, sempre com vistas ao fundamento maior do direito, a justiça, como é sabido. Aqui é de se ressaltar que a defesa dos Princípios Gerais de Direito não impede a assimilação de mudanças sociais, ao contrário, obriga o operador do direito a não perder de vista a sua característica social. O Direito recebe as influências externas ao tempo em que as novas concepções políticas, filosóficas e epistemológicas atinjam o jurista e alteram sua maneira de fazer ciência. A partir daí é que se iniciam as verdadeiras mudanças no Direito.

Por fim cumpre lembrar que o juiz é também um funcionário público, se não no sentido técnico, no sentido de que está investido de um múnus público, ao qual não pode se furtar. Todo aquele que assume tal compromisso tem o dever de exercer a sua atividade e usar seu poder com vistas ao bem comum, o que significa dizer que terá de se posicionar politicamente, não partidária ou ideologicamente, mas no sentido próprio do termo política, que significa se ocupar dos problemas da sociedade. "O magistrado é, além de um integrante do Poder Judiciário, condutor da atividade jurisdicional do Estado, um integrante da sociedade que assume deveres éticos e morais de extensão maior do que os praticados pelo cidadão comum. Na comunidade jurídica atua com a missão de contribuir para a instalação da paz nas relações humanas e como espelho para a caraterização de condutas a serem adotadas pela geração do seu tempo e pelas gerações futuras. O seu compromisso não é somente com o aplicar da lei. É com todos os segmentos da sociedade. A guarda da sua dedicação ao Estado não deve ser menor do que a homenagem constante que deve prestar à verdade, à fidelidade às instituições (família, escola, igreja) e aos direitos do cidadão. A missão do magistrado é realizar o bem comum, fim supremo do direito. Para tanto alcançar, há de zelar pelo seu bom nome, pelo da instituição a que pertence e, especialmente, pelo cidadão que nele deposita sua confiança" (José Augusto Delgado, O Culto da Deontologia Pelo Juiz, Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia 24, página 221).

Bem evidente, pois, a importância do judiciário em um país que se pretende democrático, que pretende se guiar por uma Constituição que, muito ao contrário do que disse irresponsavelmente o Presidente José Sarney, não torna o país ingovernável, mas valoriza o cidadão e as pessoas coletivas e dificulta o absolutismo do executivo, dado que o coloca em pé de igualdade para com os demais poderes, às vezes até em posição inferior, já que deve respeitar tanto a lei em sentido estrito como o Direito como um todo e também as decisões judiciais. "De tudo o que foi exposto, penso ter ficado claro que o judiciário tem um papel relevante a desempenhar numa nova ordem social, numa nova sociedade, que devem ser pensadas, não como projeto utópico, mas como algo que se atualiza, isto é, que se faz à medida que é feito, vazado em moldes marcadamente pluralistas, mas de forma alguma atado a estereótipos, uma sociedade que pode e deve fazer-se no conceito espácio-temporal do aqui e do agora, porque nada justifica esperar que ela surja de um processo de geração espontânea, asséptico e indolor" (José Guilherme de Souza, A Criação Judicial do Direito, Editora Sergio Antonio Fabris, página 111).

A autopoiese do Direito, como de qualquer sistema, traz um problema aparente de lógica, na medida em que se opõe ao postulado de Russerl de que tudo que envolve a totalidade de um conjunto não pode ser parte do conjunto, o que implica que o enunciado que se refere a si mesmo carece de significado. Na verdade isto só se aplica a enunciados simples, proposições acabadas. A proposição representada pela totalidade do ordenamento jurídico dirige-se aos outros sistemas sociais de forma tal que, observando-se de fora, temos uma proposição única que não se refere a si mesma. Ocorre aí o mesmo que em um computador. Este apresenta uma proposição na tela, a qual foi gerada por uma série de comandos (enunciados) voltados ao próprio sistema operacional, mas cuja totalidade é uma única proposição dirigida ao usuário.

Há um freio neste processo salutar, o qual não consiste óbice ao mesmo, mas apenas uma garantia contra mudanças insensatas, desmedidas: o próprio Princípio da Legalidade. É que as normas que regulam as diversas e diversificadas relações sociais hão de estar revestidas de uma legitimidade que só o Devido Processo Legal pode conferir de maneira regular e consoante os valores democráticos, embora seja evidente que todas as mudanças que não confrontem o ordenamento poderão ser aplicadas. O que não se admite jamais, seja pelo dever de o jurista sempre proceder à defesa destes valores, justamente por força do Princípio da Legalidade, seja por a ciência ser uma atividade contrária ao conformismo; é que se use o Princípio da Legalidade como desculpa ao convencionalismo, ao bairrismo, à pequena moral, à manutenção de um estado de coisas opressor, repressor e privador da mínima dignidade de um sem número de seres humanos. Na defesa deste Princípio só age de maneira estanque o jurista que ou está comprometido com a injustiça social ou é incapaz ou é preguiçoso.

Esta dialética não importa em ruína da unidade, dado que esta não é imposta, mas construída. Em outras palavras, a unidade é fruto da dialética e da resolução das antinomias que venham a aparecer no sistema. A unidade dialética está para o Direito assim como o equilíbrio dinâmico está para a física.


Notas

01. Sobre esta jurisdicização da sociedade atual, veja-se Boaventura de Souza Santos, "Pela Mão de Alice – O Social e o Político no Pensamento Pós-Moderno".

02. Não queremos dizer que a idéia de súmula vinculante seja má por si, apenas que o Executivo não está a pensar em questões jurídicas ao defender a idéia.

03. O Presidente Fernando Henrique Cardoso se manifestou publicamente neste sentido quando o STF entendeu devido um reajuste de 110% aos funcionários públicos federais.

04. Tal teoria, porém, tem sustentado, por diversos autores que as normas programáticas não são passíveis de aplicação, mas isto só no começo e em tempo anterior ao da atual constituição. Registramos que não somos partidários de tal teoria, por ser insuficiente para explicar o papel da Constituição na sociedade.

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Sobre o autor
Alexandre Rezende da Silva

advogado em Londrina (PR), especialista em Direito Empresarial

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Rezende. Princípio da legalidade e dialeticidade do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3815. Acesso em: 22 nov. 2024.

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