Proclama a Constituição Federal, em seu art. 144, que a segurança pública constitui um dever do Estado, sendo, ao mesmo tempo direito e responsabilidade de todos [1]. Volta-se o seu exercício à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, competindo a sua prestação à polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares [2]. Com específica finalidade, alude o texto constitucional, ainda, à possibilidade de que venham os municípios a constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (art. 144, § 8º).
Delimita-se, no bojo do dispositivo em comento, as atribuições básicas que são cometidas a cada um dos órgãos referidos, deferindo-se à Polícia Federal e às Polícias Civis, dentre outros encargos, aqueles de polícia judiciária nas respectivas esferas de atuação. Firma a Constituição, pelo que dela se extrai, clara orientação no sentido de que as competências que à polícia federal são deferidas vêem-se delimitadas e indicadas de forma taxativa.
Comete-se a essa corporação federal, de forma mais detalhada, um conjunto de competências diversas, dentre as quais se inclui a de "apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei" (art. 144, § 1º, I), tornando certa a possibilidade de atuação.
É certo, todavia, que embora se busque delimitar as áreas de atuação de cada um dos órgãos que integram o aparato estatal de segurança pública, situações adversas podem surgir e em razão disso vê-se justificada a união de esforços com vista à resolução de questões específicas em circunstâncias peculiares. Com esse especial escopo, resta outorgada à Polícia Federal atribuição para a apuração de outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei.
Dependente se achava, no entanto, o exercício dessa competência, de expressa regulamentação legal, porquanto aludindo-se naquele dispositivo à apuração de outras infrações, deveriam estas ser identificadas para o efeito de permitir a intervenção da Polícia Federal nas investigações respectivas, somando os seus esforços às das demais corporações policiais, cujas responsabilidades devem subsistir até mesmo para que não se argumente que estaria havendo interferência na autonomia dos Estados pela União, com a conseqüente ruptura do princípio federativo.
A pendência que até então subsistia, decorridos mais de 13 anos da promulgação da Constituição de 1988, vê-se, em momento delicado para o País, tardiamente suprida com a edição da Medida Provisória nº 27, de 24 de janeiro de 2002.
Assume a corporação policial federal, conforme explicita essa norma, a responsabilidade de, em regime de colaboração e de mútua atuação, a proceder à investigação, dentre outros, de crimes de seqüestro, cárcere privado e extorsão mediante seqüestro, se o agente foi impelido por motivação política ou quanto praticado em razão de função pública exercida pela vítima; de formação de cartel; de crimes relativos à violação de direitos humanos, que o País se comprometeu a reprimir em decorrência de tratado internacionais de que seja parte (art. 1º, incisos I a III).
Tornar efetiva a medida que se busca implantar por intermédio dessa norma, impõe, entretanto, muito mais que a mera explicitação de autorizações por meio de norma regulamentar. Exige, é certo, que a força policial disponha de efetivas condições para o desenvolvimento de ações e que os seus agentes estejam aparelhados, bem treinados e devidamente conscientizados de que a defesa do interesse da sociedade se sobrepõe às vaidades pessoais e às questões de cunho corporativo.
O combate ao crime organizado e a repressão de condutas indesejadas, como dever do Estado, compreendido este como um todo, é tarefa comum que não comporta e não admite distensões e divergências entre os agentes da autoridade, devendo todos os esforços possíveis concentrar-se nas investigações que lhes incumbem e não em debates intermináveis sobre responsabilidades desrespeitadas ou culpa desta ou daquela autoridade em particular.
Esta a clara lição que se presta a orientar as condutas que, em razão do exame integrado das normas vistas, deverão ser imediatamente adotadas em favor da defesa dos interesses da sociedade, valendo-se, para esse fim, da norma regulamentar ora examinada.
Notas
01. José Afonso da Silva (in, "Curso de Direito Constitucional Positivo" – 19ª ed. – São Paulo: Malheiros Editores, 2001 – p. 757) noticia que a Constituição, ao estabelecer que a segurança é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, teria acolhido a concepção do I Ciclo de Estudos sobre Segurança. Informa que disso decorreriam a aceitação de teses diversas então formuladas, tal como a de que "se faz necessária uma nova concepção de ordem pública, em que a colaboração e a integração comunitária sejam os novos e importantes referenciais". Lembra, outrossim, haver sido firmada orientação naquele evento no sentido de que é preciso "adequar a polícia às condições e exigências de uma sociedade democrática, aperfeiçoando a formação profissional e orientando-a para a obediência aos preceitos legais de respeito aos direitos do cidadão, independentemente de sua condição social".
02. Alexandre de Moraes (apud, "Direito Constitucional" – 5ª ed. – São Paulo: Atlas, 1999 – p. 582) assevera que "A multiplicidade dos órgãos de defesa da segurança pública, pela nova Constituição, teve dupla finalidade: o atendimento aos reclamos sociais e a redução da possibilidade de intervenção das Forças Armadas na segurança interna".