A Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil, encontra-se no período de vacância, extensível até 11 de janeiro de 2003. Um ano temos todos para compreender o alcance de algumas alterações profundas que o novel diploma congressual trará ao universo jurídico. E foi pensando nisso que resolvemos vaticinar anotações, com mais acuidade, sobre o conteúdo dos §§ 4º e 5º do artigo 1.228, in verbis:
"§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores."
Eis a posse pro labore, atuando como imperativo social restritivo do absoluto direito de propriedade, que longe de ser novidade há muito existe no direito positivo, inclusive brasileiro (v.g., usucapião pro labore de imóvel rural) e já constava da Constituição alemã de Weimar, datada de 1919.
Pois bem. Anote-se, por primeiro, que nada obstante o silêncio do dispositivo, evidente que o "imóvel" referido nele abrange não apenas o rural, mas também o urbano. Nesse particular, parece não haver a menor dúvida, diversamente de muito do que remanesce do "jovial" preceito.
O parágrafo sob estudo, todo ele, data venia, ilógico, já de início pode confundir o hermenêuta acerca da oportunidade da argüição do direito nele contemplado, quando ventilou "o imóvel reivindicado". Não obrou com boa técnica o legislador, pois quem reivindica é o proprietário, de tal sorte que, numa observância perfunctória, a posse pro labore só poderia ser argüida em defesa pelos possuidores. Ao que consta, não caberia ação do possuidor, pois os habitantes da área seriam demandados em ação reivindicatória pelo proprietário e, em resposta, apresentariam a posse e demais requisitos como matéria de defesa, requerendo o domínio da área.
Contudo, não vinga tal proposição. A reivindicação de propriedade retratada no § 4º do artigo 1.228 se dá pela coletividade de possuidores. São eles os reivindicantes. Mesmo e até porque, ao se conferir um direito, automaticamente, a lei confere a ação que lho assegura.
Aliás, celeuma parecida causou o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, sob o qual comentou Nelson Nery Júnior que: "como a lei dá o direito ao consumidor, de obter restituição das parcelas que pagou ... a esse direito corresponde uma ação que o assegura (CC 75 e CDC 83), de modo que o consumidor tem o direito de ajuizar ação judicial pleiteando esse benefício" (Código de processo civil comentado. 4ª ed., São Paulo: RT, 199, p. 1.851).
Ainda no campo do direito subjetivo, quer-nos parecer que o "considerável número de pessoas" deve compor o pólo ativo da relação jurídico-processual. Criou o legislador uma forma de litisconsórico ativo unitário e necessário. Mister se faz a presença de todos os ocupantes, porque a eficácia da sentença depende da presença de todos e a lide deve ser decidida de maneira uniforme para eles. Reforça-nos a idéia a necessidade de pagamento da "justa indenização", cujo débito gera vínculo jurídico obrigacional para todos os possuidores, proporcionalmente à área obtida individualmente.
Frise-se que a divisibilidade ou a indivisibilidade decorre do fracionamento do objeto da prestação, e não desta (Álvaro Villaça Azevedo. Curso de direito civil – teoria geral das obrigações. 6ª ed., São Paulo: RT, 1997, p. 88). Não perderá sua essência, ou sua substância, o fracionamento do objeto da obrigação. Cada possuidor agraciado com certa porção de área terá em contrapartida um débito, uma obrigação positiva de dar, um débito de dinheiro. Essa possibilidade de fracionamento do cumprimento do objeto da prestação, de sua vez nada tem em consonância com a gênese do direito, que só se mostra possível em face da coletividade de possuidores, daí porque exigir-se a presença de todos no pólo ativo.
Situação que também merece apreço diz respeito à natureza jurídica do instituto em comento. Seria ele usucapião? Entende Miguel Reale que sim, ao expor que: "em virtude do princípio da socialidade, surgiu também um novo conceito de posse, a posse trabalho ou posse pro labore, em virtude da qual o prazo do usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, se os possuidores nele houverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimentos de interesse social e econômico" (Visão geral do projeto de Código Civil: tramitação do projeto, apud site www.miguel reale.com.br).
Com a reiterada licença, ousamos divergir desse judicioso posicionamento. Se a intenção do legislador foi a de tratar a posse pro labore como usucapião, certamente não é essa a intenção que se extrai da lei, o que deve prevalecer e ser prestigiado pois a lei tem vida própria e irrompe as raízes e vontades de seu criador. Basta observar-se que: a) topograficamente, o usucapião vem tratado em capítulo anterior ao do artigo 1.228; b) no § 3º do artigo 1.228, refere-se o novo Código Civil à privação da coisa "nos casos de desapropriação" pelo Poder Público e, no § 4º (objeto do presente estudo), menciona que "também pode ser privado da coisa", agora pelo particular, donde evidenciar-se o mesmo tratamento; c) no § 5º, menciona a lei que, "no caso do parágrafo anterior, o juiz fixará justa indenização" o que, sabidamente, refere-se à desapropriação pois só nessa há expropriação mediante pagamento do preço.
Muitos outros argumentos poderiam ser expendidos em defesa da natureza jurídica espelhada por expropriação (ou desapropriação pelo particular) da posse pro labore. Deixemos de fazê-la por amor à brevidade. Não sendo usucapião, os bens públicos podem ser objeto de expropriação pelo particular no caso retratado no dispositivo insculpido no artigo 1.228, § 4º, pois o bens públicos não estão sujeitos apenas a usucapião (artigo 102 do novo Código Civil). Evidentemente, mesmo não sendo usucapião, trata-se de forma originária de aquisição da propriedade, posto absolutamente ausente o liame negocial entre o proprietário e os possuidores-expropriantes, de modo que todas as pendências anteriormente havidas sobre a coisa ficam ao léu, não se podendo imputá-las aos novos proprietários.
Prosseguindo, adentramos nas firulas conceituais e balbúrdias expressionais. Não se preocupou a lei em valer-se de expressões mais precisas, definidoras e identificadoras de sua real extensão. Certamente, não é função da lei conceituar institutos, mas tem ela que adotar boa técnica redacional a ponto de sanar os vícios de linguagem, mormente as ambigüidades e imprecisões.
Nesse passo, muitas águas escoarão por baixo da ponte da jurisprudência até que seja definida a melhor exegese de "extensa área", "considerável número de pessoas", "obras e serviços" de "interesse social e econômico relevante".
Quer-nos parecer que, usando por paradigma o texto constitucional, poder-se-ia sugerir como "extensa área" algo que suplante no mínimo dez vezes os 250m2 (se em área urbana) ou 50 hectares (se em zona rural) da Constituição Federal. E, também com base em mesmo texto ápice, "considerável número de pessoas" deva ser proporcional às famílias por cada uma das áreas constitucionais individualizadas, de modo que haveria de existir uma família para cada 250m2, ou 50 hectares, conforme o caso, sendo no mínimo dez famílias. Nesse parâmetro, um edifício com mais de cinco andares, constando mais de um apartamento por andar, poderia ser facilmente expropriado, mediante prévia indenização. Poder-se-ia enfim, se valer do máximo permitido por loteamento para tachar de mínimo exigível como extensa área.
Quanto às obras e serviços de interesse social e econômico relevante, parece não haver muita dificuldade, podendo assim considerar qualquer moradia construída para comodamente abrigar uma família, podendo ser mesmo modesta alvenaria. Evidente que não se pode autorizar a construção de empreendimento de grande envergadura ou mansões de luxo. Deve-se apenas objetar a ociosidade da propriedade, que poderia albergar famílias ou gerar produtividade econômica, no caso de imóvel rural. No mais, pode-se ter como parâmetro a definição conferida pela Lei n. 4.132/62, que trata dos casos de desapropriação por interesse social. De um jeito ou de outro, o caso concreto autorizará definir a vontade da lei, ficando para o Juízo prudencial do Magistrado, dentro dos parâmetros da razoabilidade.
Outros requisitos, como a temporariedade, in casu cinco anos, e posse ininterrupta, também foram postos como exigência legal. Some-se a isso a boa-fé, o que, sem dúvida, poderia autorizar aos menos avisados que apenas um justo título, uma locação ou comodato conferem o direito, sendo que esses dois últimos são incompatíveis com a idéia de usucapião ou desapropriação. Pensar desse modo desprestigiaria tais institutos, fadando-os ao perecimento e os delimitando no tempo, pois nenhum proprietário arriscaria ceder gratuita ou onerosamente um imóvel por mais de cinco anos. Mais sério ainda: pode ser de todo irrelevante o vínculo locacional, se preenchidos os demais requisitos. Diferente, contudo, é a sublocação desautorizada, cujo vício é desconhecido pelo sublocatário; aqui, parece-nos possível a expropriação, mesmo porque a Constituição Federal impõe a função social da propriedade.
Volvendo ao requisito da boa-fé, cumpre observar que este existe apenas quando os ocupantes ignoram o vício, ou o obstáculo, que lhes impede a aquisição da coisa ou do direito possuído. Nesse sentido os artigos 1.200 e 1.201, caput, do novo Código Civil. Se a posse for clandestina, precária, violenta ou tisnada por objeções jurídicas à sua legitimidade, será de má-fé. "De boa-fé será, portanto, a posse em que o possuidor se encontre na convicção inabalável de que a coisa realmente lhe pertence. A posse de má-fé é precisamente inversa. A posse acha-se eivada de algum dos vícios já mencionados (vi, clam aut precario) e o possuidor tem ciência do vício obstativo da aquisição da posse" (Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 1986, v. III, p. 30). Queremos crer, por isso, que a boa-fé veiculada no § 4º do artigo 1.228 refere-se à posse não eivada, límpida de qualquer vício jurídico ou social, pois do contrário não vingariam os preceitos virtuais que inspiram a lógica jurídica e faria cair por terra tudo que até hoje se estudou acerca de posse justa ou injusta, de boa ou de má-fé.
Enfim, não se pode perder de vista que a expropriação somente se concretizará após o pagamento do preço justo. A expedição da sentença, que valerá como título aquisitivo da propriedade a ser levado a registro, condiciona-se ao pagamento integral pelos ocupantes do valor de mercado, assim avaliado previamente por Perito Judicial. Logo, se apenas alguns dos possuidores realizar o pagamento, faltantes outros, não se poderá expedir o título aquisitivo da propriedade (o que reforça a idéia do litisconsórcio ativo unitário e necessário da ação, tratado linhas acima).