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A verdade e o consenso no direito

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29/04/2015 às 13:38
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5 A VERDADE NO ÂMBITO DO DIREITO

Ao se tratar do valor verdade ou falso no âmbito do direito não se quer dizer que a norma jurídica, em si, esteja submetida a tais valores. Ora, as normas são proposições de sentido deôntico que por desiderato prescreve condutas. Normas jurídicas, portanto, são válidas ou inválidas, existem ou não existem. Não faz sentido, portanto, se examinar o valor verdade em relação aos fatos contidos na norma, que foram selecionados para serem modalizados deonticamente.

 O valor verdade opera no âmbito “do dizer sobre”, por meio do qual o jurista, o julgador, o intérprete, constroem as suas afirmações em relação a outros enunciados. A verdade, desse modo, exsurge no espaço entre linguagens; na relação entre enunciados.

Dentro da teoria do construtivismo-lógico semântico, encontra-se reiteradamente a defesa de que a verdade estaria vinculada ao mundo da lógica. É o caso da Professora Aurora Tomazini, que adota a magna premissa do construtivismo-lógico de que a verdade não se descobre – pois não há essências a serem descobertas, pelo contrário ela é construída linguisticamente - indica a lógica como parâmetro para a verdade no âmbito do direito. Diz Tomazini (2012, p. 32) que “a melhor que se enquadra no modelo adotado neste trabalho é a verdade como valor em nome do qual se fala, característica lógica de qualquer discurso descritivo (verdade lógica)”

Nesse mesmo sentido, é o entendimento da professora Florence Haret (2010, p. 336/337), que sustenta dois postulados, com duvidosa precisão, a saber: (i) “não se deve buscar a verdadeira correspondência do real”, pois o “o ser do discurso jurídico não se refere diretamente ao mundo em sua concretude, e sim, às próprias leis discursivas a que se submete” e, ainda, (ii) “a verdade juridicamente aceita é tão somente aquela que se submete à lógica do sistema, às formas prescritas”.

Para os defensores dessa corrente de pensamento, “o direito cria sua própria realidade, sem necessariamente ter de coincidir com seu referente social”. Porém, deve-se ter redobrada cautela para evitar o entendimento de que o direito estaria desgarrado do mundo cultural e imune às influências dos valores, vivendo apenas da companhia da atividade lógica.

 O direito, como entidade criada pelo homem, portanto, produto de sua cultura, possui uma finalidade específica traduzida na função de bem e corretamente disciplinar a convivência em sociedade, e isso, não seria possível se ao julgador e aos intérpretes, de modo geral, fosse vedado a referência social. Hoje, ninguém imagina que mesmo o mais ferrenho defensor da exegese ortodoxa, defenda a idéia de que a interpretação seja uma atividade a-temporal, universal, objetiva, em sociedades marcadas indelevelmente pela pluralidade e pelas diversidades culturais e econômicas. Ao contrário do que o positivismo jurídico possa convencer, mas atualmente, em pleno século XXI, é seguramente mais aceitável o argumento de que a realidade social seja capaz de ajustar a interpretação aos fins do direito, do que a norma jurídica, com sua força imperativa característica, seja aplicada com exclusivo rigor lógico.

Entretanto, é de se reconhecer o avanço promovido pelo “giro” no processo de conhecimento. O direito não se encontra o texto, mas é construído pelo sujeito em razão do “cerco inapelável da linguagem”. Relativizando, por consequência, a certeza, juízo de verdade, desenvolve, por outro lado, a necessidade de se estruturar tal valor em base sólida para evitar o indesejável apelo excessivo ao subjetivismo por parte dos intérpretes, entre eles o julgador, com eventual apego à arbitrariedade que compromete tão severamente os pilares do Estado Democrático de Direito.

A verdade no direito não pode se restringir à verdade lógica. Mesmo no interior do construtivismo lógico, observa-se a necessidade de se estabelecer um vínculo permanente entre o sistema jurídico e os demais sistemas que compõem a cultura humana. É o que se verifica na doutrina da Professora Florence Haret que, apesar de defender enfaticamente a verdade lógico-jurídica, com o entendimento de que “o verdadeiro para o direito é aquilo que é formalmente verdade para ele” (2009, p. 337), acaba por aceitar, mais adiante, o elo entre o mundo do direito e a realidade social no qual se encontra inserido ao dizer:

Dessa maneira, no entender do conceito de verdade jurídica não abandonaremos por completo conjecturas construídas pelos realistas, como verdade por correspondência, pelos idealistas, como verdade por coerência, pelos utilitaristas, como verdade pragmática ou útil, pelos pragmatistas, com a verdade por consenso ou consensual. (p. 337).

Afirma, ainda:

Por verdade lógico-jurídica deve-se entender, portanto, aquela que mantém um mínimo de correspondência como o universo empírico, apta a gerar consenso entre sujeitos de direito, para fins de se tornar útil suficiente para regular condutas e alterar a realidade social. (p. 337/338).

Verifica-se, desse modo, que no interior do construtivismo-lógico existe uma necessidade inadiável de se estabelecer vínculos com a realidade social. Nesse sentido, tenho que a verdade pelo consenso melhor atende tal necessidade.

Com muita propriedade, Philipe André Rocha Gail adverte:

Uma das principais consequências do giro linguístico foi a mudança do critério de verdade. Esta passa a ser uma construção linguística. A prova disso está no fato de que os objetos não se insurgem contra as teorias que os descrevem. A afirmação ou negação de uma tese é feita por outra tese. Por isso, a verdade não se dá pela correspondência entre a proposição e o objeto a ser interpretado, mas sim pelo consenso de verdade entre aqueles que lidam com a teoria. (HARET e CARNEIRO, 2009, p. 660).

É que a verdade lógica se afigura, de fato, insuficiente para proporcionar o juízo de certeza em face dos enunciados prescritivos. Evidentemente que a lógica possui grande importância para organizar e estruturar o sistema jurídico, e mesmo é indispensável para a produção de um discurso consistente e coerente, marcas do mundo cientifico. Sem a utilização da lógica qualquer discurso estaria fatalmente comprometido no mundo acadêmico e, por conseqüência, na sua credibilidade.

No entanto, a verdade lógica encontra-se aquém da verdade pelo consenso. Existe a possibilidade de a verdade lógica ceder espaço à verdade pelo consenso. No mundo jurídico, determinadas verdades constituídas com extremo rigor lógico, vez por outra podem deixar de ser consideradas pela comunidade jurídica em razão das relações sociais exigirem nova configuração na interpretação da norma jurídica. 

Apesar da importância inquestionável da lógica no discurso jurídico, tem-se que, por outro lado, a verdade lógica é conservadora, engessa a evolução do direito e se constitui, muitas vezes, em limitação a atuação do julgador. Noutro giro, a verdade pelo consenso é, em muitos aspectos, inovadora e dispensa as regras da lógica interna do sistema quando necessário para atender as reivindicações sociais. Assim tem ocorrido com a tese da relativização da coisa julgada, no desuso da regra penal relativa ao crime de adultério, no trato das questões sobre homoafetividade e outras.

Para a mudança de paradigmas de compreensão do direito, a doutrina tem desempenhado seguramente relevante função na formação do consenso sobre a matéria jurídica. É através dela que se estabelece na comunidade cientifica um ambiente propício para o desenvolvimento de idéias que irão proporcionar a atualização do direito. O professor Thiago Matsushita (2012, p. 166/167), em sua tese de Doutorado “O Jus-humanismo normativo – Expressão do Princípio Absoluto da Proporcionalidade”, coloca a doutrina como elemento “participante” da aplicação do direito ao lecionar que:

é fato que as decisões judiciais, frequentemente, são embasadas em teorias desenvolvidas na Academia e decorrente de estudos teóricos específicos, por meio de pareceres, que são desenvolvidos por professores para subsidiar os casos práticos.

Complementando, aduz que:

Essa a opção de doutrina que se pretende incorporar no jus-humanismo normativo para dizer que a doutrina é feita na Academia e no Judiciário, cada um à sua maneira e com a sua importância para o direito e sua efetivação.

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Nesse contexto, ressaltamos, mais uma vez, o nosso compromisso em aceitar a verdade por consenso como a corrente de pensamento que melhor expressa a verdade no âmbito do direito, tendo a doutrina importância decisiva na construção desse consenso.


6. CONCLUSÃO

O mundo científico conviveu por longo tempo com a certeza de que o conhecimento era produto da relação entre sujeito cognoscente e o objeto investigado, tendo a linguagem apenas função descritiva. A filosofia de Aristóteles, que praticamente foi considerada como uma escritura sagrada por séculos, difundia a ideia de que o conhecimento se iniciava por meio da experiência sensorial, e que os objetos tinham algo a revelar para a consciência humana. A verdade por correspondência convenceu a humanidade de que era possível o ser humano tocar e apreender o objeto que se lhe apresenta.

Com a publicação do Tractatus lógico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein, no início da década de 20, o processo de conhecimento sofreu verdadeira revolução na sua estrutura, ante o postulado de que a realidade não passa de uma interpretação; do sentido que atribuímos aos dados brutos da realidade.

A verdade por correspondência torna-se, assim, incompatível com o movimento do giro-linguístico inaugurado com a mencionada obra. O sujeito é criador da realidade e a verdade absoluta não mais pertence ao mundo científico, em razão da inesgotabilidade da interpretação. O aplicador do direito produz a verdade a seu modo, ao constituir os enunciados probatórios necessários ao julgamento.

A verdade jurídica é, na essência, um ato de valor. Isso, todavia, não significa que a verdade, como ato de valor, dependa do arbítrio ou do capricho do sujeito que a propaga. Por isso, há de se referir a um discurso coletivo, onde o consenso se torna a pedra angular.

A verdade lógica, portanto, se afigura insuficiente para proporcionar o juízo de certeza em face dos enunciados normativos.

Para tanto, a doutrina (acadêmica e jurisprudencial) serve de importante instrumento para alcançar a verdade consensual, que muita das vezes, rompe com as regras da lógica interna do sistema quando necessário para atender com maior eficiência e presteza o disciplinamento de novas relações sociais. O que tem ocorrido frequentemente no âmbito dos nossos tribunais superiores, ao proferir decisões superando paradigmas já ajustados à lógica interna do sistema.


ABSTRACT

The absolute, unique and unchanging truth can not be accepted in the legal world. The philosophy of language expresses the relative truth. The law as a constructed reality requires, even partially, the legal community consensus about the truth in the field of law, which must conform to the historical factor and contextualization. The doctrine has an important role in the update process of legal concepts. It's what we intend to demonstrate in this article.

Keywords: Truth, consensus, law, language


REFERÊNCIAS

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KANT, Immanuel. Prefácio à primeira edição da Crítica da razão pura. In: Textos Seletos. Trad. Raimundo Vier. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.

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TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2012.

VILLANOVA, Lourival. Analítica do dever ser. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. São Paulo: AXIS MVNDI / IBET, 2003.

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Sobre o autor
José Magno Linhares Moraes

Mestrando da PUC/SP. Juiz Federal Titular da 2ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, José Magno Linhares. A verdade e o consenso no direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4319, 29 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38498. Acesso em: 23 nov. 2024.

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