Sumário:I. Introdução. II – Natureza jurídica da reserva não remunerada III – Da condição jurídica do oficial da reserva não remunerada. IV – Do conselho de justificação V - Do caráter introverso do poder disciplinar. VI - Da impossibilidade de instauração de conselho de justificação para mero registro em assentamentos – VII - Conclusões.
I – Introdução
Tema jurídico do âmbito do direito militar dos mais instigantes é saber-se da possibidade de instauração de conselho de justificação para apuração de conduta de oficial da reserva não remunerada.
O tema não é meramente acadêmico. Com muita freqüência, instituições militares, mormente estaduais, instauram conselhos de justificação para apurar conduta ensejadora da perda do posto e da patente de oficial que se encontra na situação de inatividade referida.
Mesmo os Tribunais têm se ocupado de conselhos de justificação para apuração de conduta de oficiais da reserva não remunerada (Proc: Rind nº 000020-2 – DF, Ministro Relator: Raphael de Azevedo Branco; Ministro revisor: Antonio Carlos de Nogueira; DJ. 17/12/1991, vol: 02691-01).
Neste trabalho, pretendemos demonstrar a impossibilidade jurídica de submeter-se oficiais da reserva não remunerada ao conselho de justificação, tendo-se como referência a legislação e os conceitos de direito administrativo, em especial o militar, regentes da matéria.
II – Natureza jurídica da reserva não remunerada
Contrariamente ao que pensam os exegetas desavisados, reserva não remunerada não é condição de inatividade de militares. Enganam-se em sede de erro crasso, todos quantos crêem que oficial na reserva remunerada esteja na condição de inativo.
A condição dos militares é exaustivamente descrita pelo Estatuto dos Militares (Lei 6.880/80), nos seguintes termos:
"...
Art. 3º Os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares.
§ 1º Os militares encontram-se em uma das seguintes situações:
a) na ativa:
I - os de carreira;
II - os incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar inicial, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar, ou durante as prorrogações daqueles prazos;
III - os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados;
IV - os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva; e
V - em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas.
b) na inatividade:
I - os da reserva remunerada, quando pertençam à reserva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização; e
II - os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber remuneração da União.
III - os da reserva remunerada, e, excepcionalmente, os reformados, executando tarefa por tempo certo, segundo regulamentação para cada Força Armada. (Redação dada ao inciso pela Lei nº 9.442 de 14.03.1997)
..."
Resta demonstrado que a condição de militar, ex vi legis, é própria daqueles que se encontram numa das seguintes situações: ativa ou inatividade, sem nenhuma possibilidade de se vislumbrar um tercius gennus. Em outras palavras, não há militar que não seja da ativa ou que não esteja na inatividade.
Verifica-se assim que reserva não remunerada não é condição de inatividade, posto que esta, por força de lei, é status privativo de oficiais da reserva remunerada ou de reformados.
Ora, se a reserva não remunerada não é situação de inatividade de militares, qual a sua natureza?
Respondemos: a reserva não remunerada é status civil de tantos quantos sejam detentores de posto ou de patente militar.
A idéia do posto e da patente deferidos a civis não é estranho ao nosso ordenamento, basta recordar-se da extinta Guarda Nacional que existiu no Período Imperial, composta por grandes fazendeiros, que recebiam graciosamente a patente de Coronel, mesmo não tendo nenhum vínculo com o serviço militar. Tanto, que eram vinculados ao Ministério da Justiça (Saïd Farhat. Dicionário parlamentar e político. Melhoramentos, 1996, p. 189).
Em resumo, reserva não remunerada é status civil de caráter honorífico, visto que as únicas prerrogativas de que gozam os civis detentores de tal status são aquelas atinentes às honras e sinais de respeito.
III – Da condição jurídica do oficial da reserva não remunerada.
Oficial da reserva não remunerada é todo civil a quem se conferiu grau hierárquico do oficial, por ato de autoridade competente ao depois confirmado em Carta Patente.
Sendo civil, o oficial da reserva não remunerada desvincula-se por completo da Administração Pública militar. Do civil que sequer prestou o serviço militar obrigatório, o oficial da reserva não remunerada se distingue apenas pelo fato de ser detentor de posto e de patente e, também, porque, em caso de convocação para completar os efetivos de oficiais nas organizações militares ou para mobilização ou no decurso da guerra integrará a segunda classe da reserva, conquanto aqueles desprovidos de posto ou patente, comporão a terceira classe da reserva.
Como o civil que sequer prestou serviço militar obrigatório, com a convocação nas situações excepcionais consideradas, o oficial da reserva não remunerada readquire o status de militar.
Importante é que o oficial da reserva não remunerada, enquanto não convocado, preserva o status civil, aplicando-se-lhe, sem ressalvas, o estatuto jurídico próprio daqueles que não são militares.
Como já demonstrado, da vida castrense os oficiais da reserva não remunerada preservam apenas a saudade (alguns) o posto e a patente em sua conotação honorífica, sendo civis para todos os fins de direito.
IV – Do conselho de justificação
A exegese das normas militares aponta para a impossibilidade de instauração de Conselho de Justificação para apurar fatos relacionados com militares da reserva não remunerada.
A norma federal regente do Conselho de Justificação, citada pelo Conselho Impetrado, assim dispõe:
LEI 5.836, DE 5 DE DEZEMBRO DE 1972
Dispõe sobre o Conselho de Justificação, e dá outras Providências.
O Presidente da República.
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1.º O Conselho de Justificação é destinado a julgar, através de processo especial, da incapacidade do oficial das Forças Armadas - militar de carreira - para permanecer na ativa, criando-lhe, ao mesmo tempo, condições para se justificar.
Parágrafo único. O Conselho de Justificação pode, também, ser aplicado ao oficial da reserva remunerada ou reformado, presumivelmente incapaz de permanecer na situação de inatividade em que se encontra.
...
Note-se que a disciplina legal do âmbito federal é perfeitamente afinada com os preceitos definidores da condição de militar, definição esta que, conforme sobredito, pressupõe enquadramento na condição de atividade ou inatividade.
Assim, a LEI 5.836, DE 5 DE DEZEMBRO DE 1972 admite o Conselho de Justificação apenas para para aferir a possibilidade do militar permanecer na ativa ou na inatividade.
Tratando-se de matéria de competência em sede sancionatória, os preceitos de hermenêutica vedam extensão analógica que permita aplicar-se aos civis da reserva não remunerada o processo especial de justificação.
No Estado de São Paulo, cujo modelo adotamos por paradigma dos demais Estados da federação, a lei regente da matéria subssume-se inteiramente ao comando da Lei Federal, nos seguintes termos:
Lei 186, de 14 de Dezembro de 1973
Estabelece os casos de perda do posto de Oficial da Polícia Militar, fixa normas de procedimentos do Conselho de Justificação e dá providências correlatas. O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:
Faço saber que, nos termos dos § § 1º e 3º do artigo 24 da Constituição do Estado (Emenda nº 2), promulgo a seguinte lei:
Artigo 1º – O oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo só perderá o posto e a patente se for declarado indigno do oficialato, ou com ele incompatível, por decisão do Tribunal de Justiça Militar do Estado em decorrência do julgamento a que for submetido.
Artigo 2º – Fica sujeito a declaração de indignidade para o oficialato, ou de incompatibilidade com o mesmo o Oficial que:
...
IV – incidir nos casos previstos em lei federal, que motiva o julgamento por Conselho de Justificação e neste, for considerado culpada.
O novo regulamento disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo (LEI COMPLEMENTAR Nº 893, DE 9 DE MARÇO DE 2001), não discrepa da disciplina da Lei Federal quando dispõe:
"...
Do Conselho de Justificação
Artigo 73 - O Conselho de Justificação destina-se a apurar, na forma da legislação específica, a incapacidade do oficial para permanecer no serviço ativo da Polícia Militar.
Parágrafo único - O Conselho de Justificação aplica-se também ao oficial inativo presumivelmente incapaz de permanecer na situação de inatividade.
...
Artigo 75 - Ao Conselho de Justificação aplica-se o previsto na legislação específica, complementarmente ao disposto neste Regulamento.
À guisa de elucidação, o integrante da reserva não remunerada equipara-se, mutatis mutandis, aos reservistas do serviço militar obrigatório. Ambos, embora sejam civis, permanecem com suas patentes, para o caso de serem reconvocados, nas hipóteses legais, quando readquirem o estado de militar.
V - Do caráter introverso do poder disciplinar
É de se observar, que o poder disciplinar, como um corolário do poder hierárquico, tem caráter introverso, ou seja, alcança apenas os agentes públicos. É o que ensina de Diógenes Gasparini, para quem "o objeto do processo administrativo disciplinar é sempre a apuração das infrações e a aplicação das penas correspondentes aos servidores da Administração Pública, seus autores" (Ob. cit., p. 803).
Destarte, os administrados (aqueles que não integram os quadros da Administração) não são alcançados pelo poder disciplinar. A estes, quando muito, aplica-se o poder de polícia. Assim preleciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Poder disciplinar é o que cabe à Administração Pública para apurar infrações e aplicar penalidades aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa; é o caso das que com ela contratam.
Não abrange as sanções impostas a particulares não sujeitos à disciplina interna da Administração, porque, nesse caso, as medidas punitivas encontram seu fundamento no poder de polícia do Estado (Direito administrativo. 11. ed. Atlas, 1999, p. 90).
Pois bem, o Conselho de Justificação nada mais é senão um procedimento disciplinar especial, tendente a apurar as infrações definidas no art. 2º da Lei Federal n.º 5.836/72, ao qual estão sujeitos os oficiais militares ativos e inativos da reserva remunerada ou reformados.
Convenhamos, se o oficial a reserva não remunerada não é considerado militar, por comando expresso do Estatuto dos Militares (Lei Federal n.º 6.880/80), é óbvio que não pode estar afeto ao poder disciplinar militar, e, por via de conseqüência ao Conselho de Justificação.
Note-se que as leis supracitadas são todas de ordem pública, portanto, de interpretação restritiva. Tudo que nelas não seja expresso, não se pode presumir. Nesse sentido, ensina Carlos Maximiliano que:
... As leis especiais limitadoras da liberdade, e do domínio sobre as coisas, isto é, as de impostos, higiene, polícia e segurança, e as punitivas bem como as disposições de Direito Privado, porém de ordem pública e imperativas ou proibitivas, interpretam-se estritamente (Hermenêutica e aplicação do direito. 10. ed. Forense, 1988, p. 224).
Assim, na espécie impõe-se exegese restritiva que impeça submeter-se oficial da reserva não remunerada a Conselho de Justificação, sob pena de caracterização de constrangimento ilegal.
VI – Da impossibilidade de instauração de conselho de justificação para mero registro em assentamentos.
Enfrentando a questão jurídica aqui posta, a Procuradoria Administrativa da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, no PARECER PA-3 nº 66/2000, decorrente do do processo PM nº 3479/96 (Apenso: GS 216/96 – PM), contrariando entendimento da Consutoria Jurídica da Polícia Militar e do Comando Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, sustentou que: "Como bem acentuou a douta Chefia da Consultoria Jurídica da Secretaria da Segurança Pública, é incontroversa no seio da Administração a orientação de que, mesmo em caso de exoneração do servidor civil, deve prosseguir o processo administrativo disciplinar contra ele instaurado, anotando-se a respectiva conclusão no prontuário do funcionário, para resguardo de eventuais interesses da Administração."
Segundo trecho do parecer referido: "Assim, a conclusão que se impõe é no sentido de que, à semelhança do que ocorre com o servidor civil, também em relação ao oficial da Polícia Militar, em tese deve prosseguir a apuração da conduta infracionária, após o desligamento do serviço, ou passagem para a reserva não remunerada, visando anotação em prontuário da conclusão alcançada.
Contraria o bom direito a conclusão encartada no parecer sub visu. De início a conclusão peca por pretender aplicar solução admissível para o contexto dos servidores públicos civis aos servidores públicos militares, no âmbito do peculiar processo de justificação.
Admitir-se que o poder disciplinar deferido à Administração Pública atue sobre aqueles que não mais integram seus quadros, como bem demonstrado, é negar-se o caráter introverso do poder disciplinar, solução caracterizadora de constrangimento ilegal.
Fazer tramitar processo disciplinar apenas para o fim de registro em assentamentos é claro e rematado desvio de finalidade.
Não há estatuto disciplinar, até onde tenhamos notícia, que permita a instauração de processo disciplinar, ou seu prosseguimento, para mero registro em assentamentos. Os processos disciplinares são instaurados e tramitam para apuração de irregularidades e aplicação de sanção que contribua para a reeducação funcional do agente público culpado, jamais para mero registro em assentamentos.
Ora, é cediço que há desvio de finalidade, quando se atinge com o atuar da Administração, fim administrativo distinto do previsto em lei, como se verifica na solução equivocadamente sustentada pela Procuradoria Administrativa da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
Ademais, instaurado um conselho de justificação em face de um oficial da reserva não remunerada, aquele, necessariamente, em face da concorrência de elementos de autoria e materialidade, culminará na cassação do posto e da patente do increpado, e não no mero registro em assentamentos, e isto, pela simples razão de ausência de previsão legal para o "mero registro em assentamentos".
Assim, peca por impropriedade jurídica, por ser ilegal e caracterizadora de desvio de finalidade, a instauração ou prosseguimento de conselho de justificação para mero registro em assentamentos.
VI – Conclusões
A condição de militar, ex vi legis, é própria daqueles que se encontram numa das seguintes situações: ativa ou inatividade.
A reserva não remunerada, também ex vi legis (letras "a" e "b" do § 1º do art. 3º da Lei 6.880/80), não é condição de inatividade de militares.
A reserva não remunerada é status civil de tantos quantos sejam detentores de posto ou de patente militar. Em outras palavras, reserva não remunerada é status civil de caráter honorífico, visto que as únicas prerrogativas de que gozam os civis detentores de tal status, são aquelas atinentes às honras e sinais de respeito.
Sendo civil, o oficial da reserva não remunerada desvincula-se por completo da Administração Pública militar.
O poder disciplinar tem caráter introverso, daí a impossibilidade de submeter-se o civil portador de posto e patente a conselho de justiticação.
É caracterizadora de desvio de finalidade a instauração ou prosseguimento de conselho de justificação para mero registro em assentamentos.
Constitui constrangimento ilegal a instauração de conselho de justificação destinado a apurar fatos praticados por civis da reserva não remunerada.