A Lei n.º 9.099/95 veio atender ao comando normativo insculpido na Constituição de 1988, em seu artigo 98, inciso I [1]. No mesmo diapasão, veja-se a Lei n.º 10.259/01, no âmbito da Justiça Federal, face ao fixado no parágrafo único de referido dispositivo constitucional [2].
A Carta Política traz, assim, o fundamento de validade de tais leis ordinárias, que vieram a instrumentalizar o consenso em matéria penal no sistema jurídico brasileiro. Isto representou verdadeira revolução [3] em nossa tradição processual penal, escorada no princípio da indisponibilidade da ação penal pública.
Dessa forma, estatuídos os parâmetros e princípios informadores da nova sistemática pela Lei Maior, foi outorgada ao legislador ordinário a tarefa de regulamentar pormenorizadamente os Juizados Especiais Criminais.
No que pertine às Autoridades Policiais estaduais, quais sejam, os Delegados de Polícia [4], o principal comando lhes dirigido provém do artigo 69 da Lei n.º 9.099/95, que fixa:
"Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança."
Perceba-se que, tanto no caput quanto no parágrafo único da norma dirigida à Autoridade Policial, é pressuposto de uma ou outra providência a presença do imputado, cuja designação é, consoante a lei, "autor dos fatos".
A norma em foco é una. Dela deduz-se que somente lavrar-se-á Termo Circunstanciado nas hipóteses de flagrante delito, cujo auto respectivo e eventual estabelecimento de fiança serão afastados caso o autor dos fatos seja imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer.
Destarte, pode-se afirmar que o Termo Circunstanciado de ocorrência policial é um substitutivo do auto de prisão em flagrante delito nas hipóteses de infrações penais de menor potencial ofensivo, quando o sujeito ativo da infração penal (autor dos fatos) for imediatamente encaminhado ao Juizado Especial Criminal ou assumir o compromisso de comparecimento em data futura.
Como deve proceder então o Delegado de Polícia nas hipóteses de apresentação espontânea do autor dos fatos em caso de infrações penais de menor potencial ofensivo? Por analogia, deve ser elaborado Termo Circunstanciado, o que não acarretará qualquer prejuízo ao sistema processual. Pelo contrário, atender-se-á aos novos princípios legais.
Outra questão prática diz respeito ao que deve ser feito caso o autor dos fatos seja reincidente, portador de maus antecedentes, sem residência fixa ou vadio. Data venia, constitui uma ilegalidade obstar a feitura do Termo Circunstanciado. A lei não veda sua elaboração em tais hipóteses, não se podendo olvidar da máxima hermenêutica de que restrição de direitos interpreta-se restritivamente. Se, posteriormente, o indivíduo não comparecer perante o Juizado, os autos serão encaminhados ao juízo comum [5].
Na hipótese de o autor dos fatos ser pessoa procurada pela Justiça, o Delegado de Polícia também está autorizado a lavrar o Termo Circunstanciado, presentes os requisitos legais. Nada impede no caso o encaminhamento imediato perante o Juizado ou a assunção do compromisso de comparecimento em juízo. Após a lavratura do Termo, a Autoridade procederá à captura de procurado. Na impossibilidade de encaminhamento imediato ao Juizado Especial Criminal, e, desde que assumido o compromisso pelo autor, se no dia designado para a audiência preliminar prevista na Lei n.º 9.099/95 o indivíduo estiver ainda detido, efetiva-se a escolta [6].
Observe-se que a intenção do legislador, baseado nos princípios da celeridade, informalidade e economia, era a de criação de Juizados Especiais Criminais de funcionamento perene. Contudo, face a nossa realidade deficitária, já se anteviu na própria lei a possibilidade de assunção de compromisso futuro, caso não possível solução judiciária imediata [7].
O compromisso de comparecer ao Juizado deve ser expresso, registrado por escrito com a assinatura do autor dos fatos, ou verbal. Neste último caso, mister se faz a elaboração de certidão pelo Escrivão de Polícia [8].
Caso o autor dos fatos se recuse a comparecer perante o Juizado, verbalmente ou por escrito, a Autoridade Policial deverá proceder à lavratura de auto de prisão em flagrante, seguindo-se a sistemática do Código de Processo Penal (o que, uma vez mais, demonstra que o Termo Circunstanciado exige a presença do autor dos fatos).
Pela interpretação da lei, vale esclarecer que o que o autor dos fatos tem de firmar inequivocamente é sua intenção de comparecer perante o Juizado, a fim de se apurar os fatos. Assim, caso não assine os autos do Termo Circunstanciado e tão-somente o termo de compromisso, ou nada assine mas firme sem sombra de dúvidas ao Escrivão de Polícia que se compromete a comparecer em juízo, o Delegado de Polícia não determinará a lavratura de auto de prisão em flagrante.
A lei não exige, em qualquer passagem, a aposição de assinatura por parte do autor dos fatos no corpo do Termo Circunstanciado. Trata-se, por óbvio, de medida salutar, consagrada pela praxis, a fim de fornecer transparência e certeza às afirmações procedidas pelas partes perante a Autoridade Policial. Contudo, reitere-se, tal providência não é reclamada pela lei.
De outra sorte, o autor dos fatos, caso assim deseje, também pode permanecer calado quanto aos fatos, o que não leva à necessidade de lavratura de auto flagrancial. Novamente, frise-se que ele somente não pode silenciar quanto à sua qualificação [9] e quanto ao compromisso inequívoco de comparecer perante o Juizado. Neste último caso, a ausência de anuência expressa deve ser interpretada como negativa, já que o autor não "assumiu o compromisso".
Caso seja lavrado o Termo Circunstanciado sem a presença do autor dos fatos, a Autoridade estará ilegalmente presumindo o compromisso de comparecimento em juízo pelo imputado, eis que, ontologicamente, só se pode cogitar de tal instituto, em caso de não encaminhamento imediato, quando da assunção do compromisso. Na hipótese em foco, os autos deverão retornar à Autoridade Policial com a requisição judicial para instauração de Inquérito Policial.
Neste sentido, consoante o Manual de Polícia Judiciária, publicado pela Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo, não presente o autor dos fatos, deverá ser elaborado Boletim de Ocorrência visando-se a instauração de Inquérito Policial [10]. Por via de conseqüência, deverá haver a mesma solução caso seja desconhecido o autor da infração penal de menor potencial ofensivo.
Por fim, ressalte-se que o Termo Circunstanciado não representa qualquer desprestígio para os operadores da persecução penal (notadamente, na hipótese, o Delegado de Polícia e o Juiz de Direito). Trata-se de um instituto em consonância com a tendência mundial de justiça consensual em casos de menor relevo – fundamentalmente, contravenções penais e delitos em que dificilmente haveria condenação à pena privativa de liberdade. Sem embargo, há as vantagens da menor formalidade e rigor em relação ao previsto para lavratura de auto de prisão em flagrante e o afastamento da superlotação carcerária de presos não condenados [11].
Ainda, a interpretação no sentido de que a Lei n.º 10.259/01 ampliou o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, escorada nos princípios da isonomia e da proporcionalidade, não só é de boa doutrina, como encontra-se consentânea com a realidade, também em nada diminuindo os operadores do Direito Penal.
O que desrespeita a ordem constitucional e representa um verdadeiro disparate é a tentativa de subtração da persecução penal administrativa da presidência do Delegado de Polícia, bacharel em Direito e especialista em investigação e repressão criminais, isto é, ser humano dotado de saber técnico-jurídico próprio às exigências sociais e presente nos mais díspares recantos comunitários.
Notas
01. Estabelece o dispositivo: "A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; (...)"
02. Segundo o qual: "Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal".
03. Cf. Antonio Scarance Fernandes, in Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 206.
04. De acordo com clara exegese do artigo 144 da Constituição de 1988. Ainda que a persecução penal preliminar à ação penal não seja exclusiva da Polícia Civil, pois a Constituição a outorga em determinadas hipóteses a outros entes – e. g. Polícia Federal, Comissões Parlamentares de Inquérito, juízo de falências, etc., jamais poderá ser procedida pela Polícia Militar, face a seu estreito âmbito de atuação atinente à prevenção penal, fixado conforme o § 5º do citado artigo da Lei Maior. Destarte, é inconstitucional o Provimento n.º 758/01 do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, bem como incide no delito de usurpação de função pública o policial militar que procede a investigações criminais.
05. Cf. Tourinho Filho. Observe-se que, caso não se tenha criado na localidade o Juizado Especial Criminal, haverá apenas mudança procedimental no mesmo juízo.
06. Veja-se que não se está imaginando nenhum absurdo, já que a alguém detido por qualquer outro delito ou mesmo por motivo de prisão civil pode ser proposta, p. ex., transação penal de alcance pecuniário (como a bastante comum doação de cestas básicas).
07. De se notar que no âmbito do Estado de São Paulo consagrou-se a elaboração do termo de compromisso, já que, quase dez anos após o advento da lei respectiva, não foram criados os Juizados Especiais Criminais na Justiça Estadual, onerando-se os juízos comuns ou as Varas Criminais com o atendimento ao procedimento sumaríssimo.
08. Neste sentido, a autorizada doutrina de Tales Castelo Branco, Da Prisão em Flagrante. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 220.
09. O que tipifica a contravenção prevista no artigo 68 do Decreto-Lei n.º 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais).
10. Segundo escólio de citada publicação: "Comparecendo tão somente a vítima à unidade policial, instaurar-se-á Inquérito Policial, mesmo em se tratando de infração penal considerada como de menor potencial ofensivo para os efeitos da Lei n.º 9.099/95". E mais adiante: "Quando o autor e a vítima não forem apresentados à autoridade policial, não se lavrará termo circunstanciado, mas, sim, boletim de ocorrência" (op. cit., p. 112).
11. Presos estes que, nas hipóteses de infrações menos graves, certamente receberiam o benefício da liberdade provisória.
Bibliografia
BRANCO, Tales Castelo. Da Prisão em Flagrante. São Paulo: Saraiva, 2001.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2000.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
MARCHI DE QUEIROZ, Carlos Alberto (coordenador). Manual de Polícia Judiciária: doutrina, modelos, legislação. São Paulo: Delegacia Geral de Polícia, 2000.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva, 2000.