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Ideologias e bits

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Parte I

Das mudanças que poderão vir com o novo governo do PT, uma já se alastra na esfera dos discursos. Na mídia, uma palavra quase em desuso volta a circular com desenvoltura. E com a carga dos seus soltos sentidos ainda mais reveladora do explosivo poder dos conceitos que veste, própria aos novos tempos em que ressurge.

Do período Iluminista, que consolidou o conceito moderno de Estado democrático, a palavra "ideologia" traz o sentido primevo de "idéia desfocada da realidade", provocada por interesses dogmáticos ou "patológicos". Estratégia de risco para a legitimação de poder, hoje pejorativa. Depois, com a semiologia, Barthes deu-lhe o sentido de "naturalização" da ordem simbólica. Retórica da realidade auto-evidente, dos "fatos que falam por si", em argumentos de autoridade. E na revisão pós-estruturalista do marxismo, que privilegia a filosofia da linguagem, Korsch dá-lhe a forma de sinédoque, a figura de estilo na qual se toma a parte pelo todo. "Mapas do imaginário", como diz Eagleton, para a função da "nova mitologia" buscada por Hegel [1].

Numa dessas atuais ressurgências, emblemática apesar de muda, Bush adverte a Lula quando este lhe avisa -- de estrela vermelha na lapela -- que vai negociar duramente: "É preciso ser realista."

"Ideologia" é um signo poderoso, pois oculta suas contradições no antônimo. Negar ou refutar seu sentido iluminista, quando se evoca a "realidade", é deslizar para a retórica autoritária da auto-evidência. E vice-versa. Todo sujeito precisa de um tal mapa para comunicar seu conhecimento "da realidade", desta semiose infinita que é a cola do social. A ideologia é indispensável, em qualquer sociedade, para que os homens sejam, nas palavras de Althusser, "formados, transformados e equipados para atender às demandas de suas condições de existência" [1]. Negar a ideologia é mergulhar de volta nela.

Ao se valerem da força deste signo, decretando a necessidade do PT -- e da esquerda terceiro-mundista -- "deixar a ideologia de lado", os que precisam ceder autoridade no jogo democrático buscam impor seus mapas do imaginário aos interlocutores, em temor à perda de posições no jogo das representações do Real e do Justo. Impõem o molde dos seus mapas apropriando-se deste signo, pela via persuasiva da chantagem com que o "sentimento do mercado" anima o capitalismo pós-industrial [2], movimentando sua "mão invisível". E apropriam-se do signo tomando por reflexo da realidade a sua própria ideologia, sendo a neoliberal demarcada pela fetichização da mercadoria.

Como pode um Estado acuado na periferia da globalização buscar, com esses mapas, as mudanças de rota ditadas pela voz que o legitima, se ali eles se mostram dúbios, exauridos pela freqüência das omissões e distorções limitadoras no seu desenho? Essas ressurgências têm insistido em que não haverá mapa alternativo, enquanto ocultam as origens da estampa. Mapas do imaginário são desenhados pela própria luta em torno do poder.

Negar sentido ideológico a esse processo é fazer-se vesgo, ou de vesgo, o que só recrudesce a luta, como mostra a rota seguida -- para ficar num exemplo vizinho -- pela sociedade venezuelana. A hegemonia de um modelo de mapa não justifica o bloqueio à busca de outros, seja a origem do bloqueio interna ou externa à sua suposta esfera de soberania, principalmente em meio a crises globais na economia, na política e no Direito. Crise é também oportunidade, pelo que tal bloqueio cobrará seu preço adicional.

A carga com que o tema ideológico ressurge na cena política brasileira também mostra sinais inquietantes. Vemo-los, por exemplo, no debate sobre o comércio das armas semiológicas empregadas nesta luta. Tais armas são os meios de produção e controle da informação, e os sinais inquietantes surgem, não só, mas principalmente, em referência à indústria do software e seus modelos de negócio. Na fase de "administrador de dinheiro" em que, segundo o economista Hyman Minsky (Nobel 1992), se encontra o capitalismo pós-industrial americano [3], este comércio representa sua principal atividade mercantil. Não é por acaso que, na história do capitalismo, nunca um ramo "industrial" amealhou tanta riqueza e poder monopolista em tão pouco tempo, como o do software.


Parte II

A indústria de software representa o carro-chefe do capitalismo "administrador de dinheiro" porque conduz a evolução dos meios de produção e controle da informação. Ou seja, ela pode também controlar as condições de geração e manutenção do seu próprio mercado e o de seus derivados.

Nela está, portanto, a chave do sucesso daquilo que o jornalista César Benjamin denomina "economia rentista" [3], atividade que investe não propriamente na produção de mercadorias, mas na sua progressiva fetichização. Nas rendas derivadas do negócio com ativos líquidos (títulos, ações, participações, cotas, papéis de todo tipo, inclusive representando apenas papéis), da intermediação financeira, das fusões de empresas já existentes, da gerência de contratos, da manipulação de expectativas, da exploração de marcas, patentes e outros intangíveis direitos de propriedade intelectual, cada vez mais expandidos à esfera virtual, inclusive sobre idéias que se fetichizem em lucros.

O modelo de negócio típico da atual indústria do software é a oferta do que denomina "licença de uso", um amálgama de dois contratos de adesão. Um para prestação de serviços que processam dados, explorando recursos do licenciado e direitos de propriedade intelectual do licenciador, inclusive sobre formulações lógico-aritméticas, e outro para a gerência deste, com distribuição de riscos e responsabilidades entre as partes absolutamente desequilibrada, pela qual o licenciado abdica dos direitos de subcontratação, de escolha da jurisdição para disputas por eventuais prejuízos sofridos com o serviço, de livre expressão da sua percepção desses prejuízos e de pleitos para reparação dos mesmos.

As chances evolutivas desta fase do capitalismo dependem, crucialmente, da imposição de uma ordem jurídica global que legitime os "direitos" aos lucros desta fetichização piramidal, e de uma ordem político- militar capaz de garantir anuência e respeito universais a esses novos "direitos" e seus fluxos unidirecionais de renda. A primeira ordem está inscrita no processo atual de globalização, consolidada nos tratados internacionais de "livre comércio" [4, 15], e a segunda na carga do tema ideológico ressurgente no discurso político contemporâneo, abordada na parte I.

O que a indústria de software oferece, por exemplo, pretende-se que seja, ao mesmo tempo, instrumento na referida ordem jurídica e mercadoria "software" no "livre comércio". O que não pode ser confundido com sua contra parte noutro referencial ideológico, humanista, conhecido por "software livre" [5].

Entretanto, há outras complicações para este sucesso. Obstáculos no lastro material da fase anterior, cujo calcanhar de Aquiles é a dependência americana de fontes externas de energia, e resistências contra a quebra de tabus sobre soberania, cidadania e ética no Estado democrático moderno, consagrados a duras penas em sucessivas lutas civis, conflitos regionais e guerras mundiais. Para superar esses obstáculos, a guerra contra o terror veio a calhar, mas ao custo de substancial aumento na cota que cabe à economia rentista, para saldar a fatura.

É neste contexto onde surgem inquietantes refutações ideológicas no debate político doméstico. Numa matéria assinada por Renato Cruz, no Estadão on-line de 15/12/02, que compara os modelos de negócio com software livre e proprietário, e explica por que o software livre terá mais espaço no governo Lula, o diretor de marketing da Microsoft é citado declarando ser necessário "separar a visão ideológica da comercial", e o diretor de relações públicas afirmando que ficarão preocupados "se tentarem cercear a competitividade" com leis que "limitem a concorrência" [6].

Por outro lado, preocupadas já estão entidades civis e públicas como a Secretaria do Direito Econômico, o CADE, o Ministério Público e Tribunais de Contas do país com leis já vigentes que se chocam com as práticas concorrenciais da empresa; haja vista, por exemplo, os quinze processos que se arrastam no TRF-DF envolvendo sua representante "exclusiva para contas do governo"[7]. Para não falar dos tribunais americanos, que já a condenaram por prática monopolista predatória em última instância, em ação movida pelos governos federal e de dezoito estados [8].


Parte III

Os autos dos processos contra a "representante exclusiva" da Microsoft contém documentos que buscam legitimar a inexigibilidade concorrencial para compras governamentais. Se, em vista do exposto neste artigo, não forem estes julgados peças ideológicas, e como tal estranhas aos códigos legais vigentes e aplicáveis conforme prega o diretor de marketing da empresa, a própria lide jurídica estaria deslizando para terreno ideológico perigoso, como argumentam os pensadores citados na parte I, onde se serve à causa exógena da ordem jurídica que visa manter e expandir a economia rentista americana.

Doutra parte, as leis preferenciais ao software livre em aquisições estatais, como as aprovadas ou debatidas na Alemanha, França, China, Peru e outros países, e no Brasil promulgadas, por iniciativa do PT, no Recife e no Rio Grande do Sul, não têm seu fulcro ético no princípio da economicidade, como sugerem as vantagens em custo e neutralização das distorções próprias do monopolismo comercial. E sim no princípio constitucional de soberania, que a ideologia neoliberal desdenha e refuta.

E, pior, neste caso combate. Declarações e documentos da empresa comparam a licença geral pública para sofwares livres (GPL) a uma "espécie de câncer" [9]. Balizam-se até no fiasco brasileiro da reserva de mercado de informática dos anos 80, despistando o caráter semiológico da função social do software, "mercadoria" que, apesar da sua imbricação conceitual com o hardware -- alvo daquela reserva --, a ele se contrapõe em essência material e fabril.

Entrementes, a escalada globalizante de fetichização mercantil, que inflaciona os direitos de propriedade intelectual, acaba de atingir os padrões e formatos intermediadores do acesso humano à informação digitalizada. O marco jurisprudencial desta escalada está na sentença que estabelece a pena por prática monopolista predatória à Microsoft, de 1/11/02 [8].

Com o fundamentalismo neoliberal no poder, a empresa conseguiu que o juiz de primeira instância fosse substituído, e que sua substituta transformasse a negociação da pena numa outorga para exploração comercial do "direito de propriedade" sobre padrões e formatos digitais estabelecidos pelas interfaces de programação dos seus sistemas, oponíveis a quem produzir programas interoperáveis com tais sistemas.

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Na visão humanista, essas interfaces correspondem a competências lingüísticas, herdadas do programador pelo programa como funcionalidade comunicativa na esfera digital, para o cumprimento do seu papel de intermediador da inteligência do usuário. E, como tal, não caberia, por analogia no plano jurídico, o direito de quem seja à sua fetichização mercantil. Ademais, tal direito gera uma espécie de "bitributação" seletiva, posto que a interface do usuário já o "tributa". É como se minha professora de português me cobrasse pelo que escrevo.

O modelo de licença GPL, gratuito, foi concebido justamente para impedir a mercantilização dessas competências, consagrando-as como bens culturais da humanidade --"commons" no Direito consuetudinário anglo-saxão--, como sempre foram as riquezas e conquistas semiológicas. O caso mais bem sucedido desta visão é a própria internet, que consiste de um conjunto de formatos e padrões de comunicação digitais de domínio público, cuja consolidação e alcance lhe agrega seu valor semiológico atual de "teia do ciberespaço", equivalente a um idioma universal para softwares.

Na visão neoliberal fundamentalista, a conversibilidade de qualquer valor não carece, por princípio, de regulação. E estabelece, através da citada sentença, o direito de monopólios comerciais alvancarem-se para explorar competências comunicativas intermediadoras do ciberespaço, o que rompe qualquer possibilidade de separação entre visão ideológica e visão comercial no negócio do software. Mas pior, rompe-as num contexto em que a liberdade semiológica se vê criminalizada no ciberespaço, pela nova ordem jurídica imposta pela economia rentista americana.

Na visão humanista, isto constitui ameaça ao caráter democrático com que nasceu o ciberespaço, nele fazendo refém o usuário de software proprietário, cujo acervo digital fica doravante "protegido" pelo "direito de propriedade intelectual" do seu preposto.


Parte IV

Temos, expostas anteriormente, duas visões antagônicas sobre quais formas de gestão semiológica são "cerceadoras da concorrência", e sobre onde está "o câncer" digital. O que é natural, pois são visões de ideologias distintas, sendo a correção de qualquer delas, como explica Maquieavel, ditada apenas pela posição de poder de onde se projetam [10].

Com sua ascensão no jogo do poder, o PT se posiciona para melhor projetar suas visões do social, havendo o presidente Lula, no seu discurso de posse, já declarado estarem estas visões lastreadas no humanismo. Tal projeção não deve, portanto, perder de vista a dimensão ideológica dos processos da informática e seus desdobramentos sociais, por conta da retórica despistosa de quem se vê obrigado a rever ou ceder posições. Especialmente em momento tão crítico da história, com grandes riscos de fracasso na missão incumbida pela voz que lhe ascendeu.

E das grandes dificuldades para se cortar gastos de custeio na máquina governamental, aventadas pelo ministro Palocci em sua estréia [11], as relativas à informática são de natureza primordialmente ideológica. Com o país financeiramente asfixiado em uma crise global, o governo federal vem torrando anualmente mais de um bilhão em licenças de software proprietário perfeitamente substituíveis por software livre. Entendamos como e por que.

Para que se mantenha aquecido o fluxo de rendas onde se insere o tipo de contrato em questão, as novas formas de gestão global de riqueza necessitam ampliar seu alcance, subordinando-lhes mais e mais processos sociais, isto é, atividades econômicas, pessoas e espaços geográficos, como explica César Benjamin. Esta necessidade, até aqui suprida pela chantagem "sentimentalista" de mercado, com seus índices auto-reflexivos de risco e fetichização -- não apenas mercantil -- de tudo que ganhe rótulo tecnológico, visto apenas como indutor de riquezas, está estampada na evolução do negócio do software.

Como tudo na informática, este negócio tem sofrido freqüentes mudanças de paradigma. De sua fase embrionária e artesanal, anterior aos anos 60, a produção do software mercantilizou-se integradamente ao negócio do hardware, do qual se tornou independente com a revolução do downsizing, alavancada pela abertura e padronização das arquiteturas de computadores, a partir dos anos 80. Com ameaças à sua hegemonia, representadas por sinais de fadiga e pela alavancagem do software livre pela internet, o modelo proprietário vem se radicalizando.

As licenças dos softwares da linha XP, por exemplo, são como contratos de aluguel, mas sem fixação de preço e data de vencimento para as prestações seguintes (updates). Nelas, o lincenciador se dá o direito de sorrateiramente acessar a instalação do licenciado (de 16 formas distintas no windows) [12], de alterar dados em seus arquivos (links no Office), de implodir remotamente a instalação, não só devido a reinstalação não permitida, mas também mediante publicação de material que "denigra" produtos, serviços ou parceiros da empresa (FrontPage). Como ficaria o TRF-DF, por exemplo, com as sentenças que terá que lavrar nos processos citados na parte II? E as "16 portas de fundo" do windows, quando os hackers descobrirem como abri-las? E se quisermos um computador novo com o windows 98, por que não podemos comprar?

Com freqüência, a retórica em favor desses avanços sustenta que, em casos de danos a seus ativos virtuais, o usuário que opta por software livre estará sem garantias, sem ter a quem responsabilizar. Quem investe seu tempo ouvindo e repetindo este argumento, como os responsáveis pela informática do TSE, aproveita-lo-ia melhor na leitura de uma dessas licenças proprietárias, para se certificar de que, ao optar por uma delas, aceitando os limites de responsabilização assumidos pela empresa licenciadora, terá como garantia o valor da mídia em que é distribuído o software, ou, no máximo, o valor pago pela licença. Um CD virgem custa menos de dois reais; já o ativo em bits que o software irá intermediar, quem poderia avaliar?


Parte V

Na prática (os envolvidos sabem), todo negócio com software tem algo em comum: a responsabilidade por perdas com ativos em bits é do "dono dos bits", quem tem com eles algo a perder, e as atividades de suporte, tais como treinamento e serviços, sempre custam dinheiro. É só na responsabilidade pela manutenção e evolução do software onde os modelos diferem, ficando por conta da comunidade desenvolvedora no modelo livre, e da empresa produtora no modelo proprietário. E novamente, o que é garantia numa ideologia vira falácia na outra.

No primeiro caso, o desenvolvimento do software é guiado pelos interesses semiológicos da comunidade com ele engajada. As regras de engajamento são estabelecidas, no caso da GPL pelos termos da licença de uso, e o software evolui em seu ritmo próprio, de forma puramente darwiniana, e não econômica [5]. Assim, softwares bem projetados e implementados acabam por conquistar uma comunidade vasta e atuante, chegando hoje a 300 mil programadores engajados nos projetos da Free Software Foundation. Nesses casos o risco de uma proliferação de versões precisa ser controlado, mas, por outro lado, uma falha ou vulnerabilidade raramente perdura por mais de uma semana sem que alguém produza, teste e distribua reparos.

No segundo caso, o desenvolvimento do software é guiado pelas necessidades econômicas da empresa produtora. Se seu foco for este, a manuteção do seu fluxo de caixa exigirá que se produzam novas necessidades para seus produtos, na forma de novas versões que agreguem novas funcionalidades. Ela precisa, então, levar sua base de consumidores a crer na necessidade dessas novas versões. Como as falhas e vulnerabilidades crescem exponencialmente com o tamanho do software, guiar sua evolução por este fluxo significa degradar sua relação preço/qualidade. Assim, os mais famosos dentre esses softwares exibem tristes histórias de bugs a descoberto por vários meses, ou através de várias tentativas de reparo.

Tendo já tentado vários outros argumentos, a retórica dos interesses deste modelo nos apresenta agora, junto com múltiplos esforços para instituir a censura na divulgação de falhas e vulnerabilidades dos seus produtos (DMCA, UCITA, OIS) [13], o argumento de que a opção pelo software livre é "o barato que sai caro", devido às atividades de suporte aos mesmos estarem, hoje, em média mais caras do que as de suporte aos seus. Do outro lado, este fato pode ser visto não só como sinal de que o mercado de suporte para o software livre está aquecido, e portanto, um sinal de degradação da relação preço/qualidade do software proprietário, mas também como um diferencial na natureza desse suporte: o primeiro capacita e replica autonomias tecnológicas, e o segundo gaiolas semiológicas.

Desta forma, chega-se a um ponto em que perdem eficácia os meios de sustentação da crença fetichista nas "necessidades evolutivas" do software, como a propaganda monopolista do modelo proprietário. Este ponto parece coincidir com o final de mais um ciclo de vinte anos no padrão que têm marcado a evolução dos modelos de negócio do software. Não parece mero acaso que a IBM, tendo aprendido com os erros e instabilidades monopolistas do ciclo anterior, investe nos dois modelos para o próximo ciclo, engajando-se, em paralelo à sua produção de software proprietário, nas comunidades do Linux e do Apache.

A solução para o modelo proprietário é o recrudescimento da dependência do usuário, lastreado pelos "avanços jurídicos" expressos nas novas licenças, nas novas leis para a jurisdição produtora, e nos novos tratados internacionais sobre propriedade intelectual. Que por sua vez apresentam, talvez não por coincidência, efeitos colaterais ameaçadores ao futuro do software livre [14, 15].

É claro que esta radicalização do modelo proprietário, levada a cabo pela indústria monopolista, só se torna aceitável mediante certo grau de dependência dos usuários a seus softwares, posto que os usuários precisam manter o acesso a seus próprios acervos digitais. A consolidação desta dependência, por sua vez, estará lastreada no "direito de proprieade" do "fabricante" sobre os padrões e formatos em que são armazenados esses dados. Mas o pior, para a cidadania e para a soberania do Estado, ainda não está nesta dependência. Está na inauditabilidade desses softwares, principalmente com a substituição do papel e tinta por bits em documentos oficiais e jurídicos, processo tido por inevitável e promovido por iniciativas como a ICP-Brasil.

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Sobre o autor
Pedro Antônio Dourado de Rezende

professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley (EUA), ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REZENDE, Pedro Antônio Dourado. Ideologias e bits. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3869. Acesso em: 2 nov. 2024.

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