“La moralidad ata y ciega.” J. Haidt
Mencionarei um interessante experimento acerca da relação entre a intuição moral e o razoamento moral, e que também tem implicação com os casos de “mal sem dano”, isto é, com a questão de se são incorretas e imorais algumas ações, ainda que não tenham causado nenhum prejuízo concreto a ninguém, ou se é legítimo considerar que existem faltas morais sem vítimas.
Julie e Mark são irmãos, ambos maiores de idade e estão solteiros. Passam as férias juntos no sul da França. Um fim de tarde se encontram em uma cabana às margens do mar e lhes ocorre que seria interessante e divertido fazer amor. Julie toma a pílula há algum tempo e o risco de que fique grávida é mínimo. E para maior segurança Mark utiliza um preservativo. Gostariam de fazer amor outra vez, mas decidem não voltar a fazê-lo. Guardam para eles o segredo dessa noite inusitada que lhes dá a sensação de estar mais próximo um do outro. Que opina o leitor? Estava permitido, neste caso, que eles praticassem sexo?
Estas perguntas foram feitas a várias mostras de populações distintas por sua cultura, sua origem social, idade, sexo, religião, etc. Os juízos espontâneos são globalmente convergentes. A maioria das pessoas expressa sua desaprovação imediata. Mas as justificações reflexivas resultam mal formuladas. Para explicar “por que” o que Julie e Mark fizeram não era “correto” falam da possibilidade de que Julie fique grávida e dê à luz a uma criança incapacitada. O experimentador lhes recorda que o casal havia tomado todas as precauções para evitá-lo.
Então recorrem à outra justificação: a relação poderia deixar um trauma psicológico. O experimentador lhes recorda que não ocorreu nada parecido. Em seguida mudam de novo de opinião: essa relação poderia ofender a sociedade. O experimentador lhes diz que permanecerá em segredo. Finalmente os entrevistados se sentem obrigados a admitir que não encontram motivos, o que não lhes impede continuar expressando sua desaprovação: “Eu sei que está mal, mas não posso dizer por quê”.
Este tipo de processo inclui juízos morais que raramente são o resultado de um verdadeiro raciocínio moral, juízos de desaprovação espontâneos tão robustos, tão resistentes aos argumentos, tão universais também que não é completamente absurdo supor que nossas intuições morais são naturais, inatas (nota bene: que uma reação seja universal não implica necessariamente que seja inata). Como na experiência do “Trem assassino”, há uma espécie de dissociação entre a espontaneidade, o vigor dos juízos e a insuficiência das justificações racionais: reações intuitivas independentes de juízos reflexivos e indiferentes à robustez dos avais argumentativos.
Segundo o psicólogo Jonathan Haidt (autor do experimento), a razão raramente funciona como fonte dos juízos morais. Estes não surgem a partir de um razoamento consciente e objetivo acerca da realidade, senão de umas respostas afetivas as que o sujeito não tem um acesso introspectivo. Esta resposta afetiva é denominada de «intuição moral», que se assimila ao conceito humeano das paixões e que está em clara oposição ao modelo racionalista: “A razão é, e só deve ser, a escrava das paixões...” (David Hume).[1]
Haidt define a «intuição moral» como uma repentina aparição na consciência de um juízo moral junto a uma valência afetiva de aprovação ou desaprovação com relação ao objeto que a provoca (bom-mau, agrado-desagrado). O estado emocional produz uma «intuição moral», que pode impulsar a um indivíduo a atuar. Isto é, dita habilidade se encontra integrada no mesmo ato de percepção, de tal forma que não necessitamos reflexionar para reconhecer que um ato ou pessoa é moral ou imoral, senão que o percebemos já como algo bom ou mau de maneira intuitiva (desde a emoção, mais que desde a razão) e atuamos em consequência.
Daí que a intuição se produza de um modo fugaz, inconsciente, involuntário e sem esforço, mediante uma sensação (ou pressentimento) que provoca em nossa consciência a formação de um juízo moral. O razoamento sobre o juízo ou a ação vem depois, quando o cérebro busca uma explicação racional para uma reação automática sobre a que não tem nenhuma pista. Em resumo (e de forma radicalmente distinta ao racionalismo instaurado por Piaget e Kohlberg), ao invés de meras coadjuvantes, nossas reações emocionais têm precedência e determinam fortemente a natureza de nossos juízos morais: as pessoas não fazem análises racionais prévios à hora de tomar determinadas decisões, senão que normalmente tomam a decisão de forma emocional e depois a justificam racionalmente a posteriori.[2]
Para dizê-lo de uma forma mais precisa, os seres humanos possuem dois sistemas que conduzem à maneira de pensar: um sistema rápido, intuitivo e emocional e um sistema mais lento, mais deliberativo e mais lógico ( D. Kahneman, J. Haidt, F. Cushman, entre outros). As intuições vêm primeiro e o razoamento estratégico vem depois para apoiá-las. Nossas emoções são as que decidem, e logo a razão humana faz o que pode para encontrar justificações: os raciocínios que fazemos e as justificativas que damos de “por que” cremos ou fazemos certas coisas são em sua maioria justificações “post hoc” ou “razoamentos motivados” de reações viscerais (o que não significa que alguma que outra vez o “eu” racional não participa realmente no processo do juízo moral).
O que supõe - tal como expressa Haidt - que embora nos vejamos como sensatos e imparciais juízes, analisando e razoando sobre as situações graças a nossa “imaculada” racionalidade e valores profundamente arraigados, em realidade somos e atuamos mais que tudo como advogados, defendendo e argumentando (emocionalmente) a favor de (e sobre) ideias, crenças, preferências, desejos e preconceitos que já temos estabelecidos. Nosso cérebro não analisa os argumentos e provas a favor e contra, e logo decide de forma imparcial em função do peso de uns e outros, senão que toma partido prévio e despois intenta argumentar e busca as provas a favor da decisão que já tomou (Haidt). Quer dizer, que temos pouco controle consciente sobre nosso sentido do bem e do mal, que nosso cérebro reconstrói a realidade e recria o que percebe em função de nossas expectativas, prejuízos, ideias, crenças, desejos e preferências.
Esta posição, dito seja de passagem, também conta com o aval de investigações neurocientíficas. Como indica Michael S. Gazzaniga: “Quando explicamos nossas ações, elaboramos um relato a partir de observações ´post hoc´ sem acesso ao processamento inconsciente (isto é, justificativas lógicas que ocorrem mais tardiamente para um juízo formado de modo intuitivo). E mais: o hemisfério esquerdo do cérebro [ao que denomina “intérprete”] arruma um pouco as coisas para que encaixem em um relato lógico. Somente quando os relatos (nossas fabulações) se afastam demasiado dos fatos, o hemisfério direito do cérebro pisa o freio.[...] Utilizamos o módulo intérprete (hemisfério esquerdo) durante todo o dia para captar o essencial das situações, interpretar os sinais externos e as reações fisiológicas de nosso corpo, dar um sentido unificado e coerente a nossas ações, assim como para explicar tudo.”[3]
Por outro lado, também são vários os estudos e experimentos que sugerem que a razão está fortemente marcada por fatores psicológicos e que nos limitamos a transformar nossos vagos instintos, emoções e intuições morais em um conjunto explícito de argumentos “convincentes”. Em um trabalho recente, por exemplo, Hugo Mercier e Dan Sperber argumentaram que existe evidência considerável de que a razão não evoluiu nos seres humanos para aceder à verdade senão para ajudar-nos a vencer em discussões.
Para estes autores, a função do raciocínio ou do razoamento seria essencialmente social, de concorrência social, ainda que levem a maus resultados, não porque os seres humanos são incrivelmente deficientes no uso da razão, senão porque sistematicamente se esforçam por argumentos e explicações que simplesmente justificam, afiançam e/ou confirmam suas crenças, prejuízos, preferências e suas ações: “El razonamiento lleva a la gente no hacia las mejores decisiones sino a las decisiones que son más fáciles de justificar”. Nas palavras de Scott Atran, “que la razón sola basta y es suficiente para interpretar, argumentar, justificar, aplicar o superar las exigencias e imposiciones de los juicios, normas, principios y “valores sagrados” sólo lo conciben los académicos descarriados y algunas gentes del gremio de los juristas. Nadie más.” [4]
Em seu ensaio The White Album, Joan Didion recorda que “nos contamos contos a nós mesmos para poder viver”. Com esses contos reafirmamos nossas crenças, abraçamos informação que apoia o que preferimos ou que serve para justificar e confirmar nossas hipóteses e juízos (independentemente de serem ou não verdadeiros), expressamos nossas opiniões e encontramos a maneira de navegar pelas estranhas águas da vida. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para interpretarmos ou justificarmos nossa própria realidade e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções, fabulações e veleidades que nos inventamos. E posto que as ideias que aparecem em nosso interior são mais coerentes entre si, mas não são necessariamente coerentes com a realidade, a ideia de que a (plena, pura e absoluta) racionalidade é um dos ingredientes da natureza humana forma parte desse tipo de contos ou fabulações. Somos animais que contam histórias. Histórias que consolam, enganam e até seduzem, mas histórias ao fim e ao cabo.
Por essa razão – e aqui vai um conselho de cautela epistemológica -, atender às explicações ou justificações que as pessoas dão acerca da “verdade” de suas ações, sentimentos, pensamentos e/ou juízos resulta interessante (e até divertido), mas, com frequência, é uma enorme perda de tempo. Como seres racionais, devemos ter razões para tudo o que pensamos, sentimos, valoramos ou fazemos, ainda que sejam razões estúpidas, inclusive e especialmente quando pensamos, sentimos, valoramos ou fazemos as coisas sem razão alguma. Coisas de uma mente desenhada para criar uma série picassiana de fabulações para explicar ou justificar qualquer coisa. Daí a cautelosa advertência D. Kahneman: “Não há que confiar em ninguém – incluídos nós mesmos – que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo”.
Assim as coisas, parece que o mais sensato é seguir o conselho que Richard Dawkins dá a sua filha: «La próxima vez que alguien te diga algo que parezca importante piensa para tus adentros: "¿Es ésta una de esas cosas que la gente suele creer basándose en evidencias? ¿O es una de esas cosas que la gente cree por la tradición, autoridad o revelación?" Y la próxima vez que alguien te diga que una cosa es verdad, prueba a preguntarle "¿Qué pruebas existen de ello?" Y si no pueden darte una respuesta, espero que te lo pienses muy bien antes de creer una sola palabra de lo que te digan.»
[1] No século XVIII, filósofos escoceses e ingleses (Shaftesbury, Hutcheson, Hume e Smith) começaram a discutir alternativas ao racionalismo. Defenderam que as pessoas têm um sentido moral incorporado que cria sentimentos agradáveis de aprovação às ações benevolentes e os correspondentes sentimentos de desaprovação para o mal e o vício (J. Haidt). David Hume (1751) em particular propôs que os juízos morais são similares enquanto à forma aos juízos estéticos. Os dois derivam do sentimento, não da razão, e logramos conhecimento moral por uma “sensação imediata e um sentido interno afinado”, não por uma “relação de argumento e indução.” O intuicionismo em filosofia e os enfoques intuicionistas em psicologia moral, por extensão, mantêm que em primeiro lugar se tem as intuições morais (incluindo as emoções morais) e estas causam diretamente juízos morais (J. Haidt, J. Kagan, J. Q. Wilson, R. C. Solomon). Esta posição concorda com que a boa neurociência nos ensina do cérebro (A. Damasio, J. Ledoux, M. Gazzaniga, P. Churchland), “o que é particularmente interessante porque vários autores (por exemplo, T. Jacobsen) já postularam a eventual existência no cérebro de mecanismos compartidos pelos juízos estéticos e morais (isto é, entre a apreciação moral e estética sensu stricto). Portanto, a coincidência entre as redes cerebrais morais e estéticas poderia ocorrer” (Camilo J. Cela-Conde et al.).
[2] A crítica racionalista tem aqui pouco que fazer: “Si alguien ha tomado una decisión emocional a favor de un determinado asunto, de nada valdrán todos los argumentos racionales en contra, es más, pueden servir justo para lo contrario: para reafirmarle en sus creencias”. (A. Carmona)
[3] Há que ter em conta que nosso cérebro não está evolutivamente preparado para a verdade, mas para a sobrevivência (mais exatamente, para o êxito reprodutivo). Nosso cérebro busca a verdade em função da sobrevivência, daí que possa sacrificar a primeira pela segunda se é necessário. Um exemplo são as ilusões ópticas: nosso cérebro “nos engana” para poder perceber de forma tridimensional (ou seja, ainda que entendamos que nos “impide tener momentos sostenidos de claridad”, não desaparecem). Mas também há ilusões cognitivas e emocionais. Nosso cérebro modifica e falseia a forma de compreender e sentir a realidade para adaptar-nos e sobreviver se é necessário (um exemplo seria a dissonância cognitiva). Somos o que somos, somos nosso cérebro.
[4] A partir daí pode resultar mais fácil entender que a imagem da interpretação, da argumentação e da tomada de decisões jurídicas como um processo puramente racional, analítico e dedutivo, uma busca da verdade objetiva e nada emocional, não é acertada, é um mito, já que se trata de “una empresa humana afectada por sombríos sesgos emocionales, cognitivos e ideológicos, incluyendo rasgos propios de mente de colmena” (D. Kahneman): uma racionalidade impura e falida (Fernandez, A. et al. «Razoamento moral, racionalidade jurídica e a neurobiologia da “razão impura”», 2014).