1 INTRODUÇÃO
Por vezes, crimes cometidos em um território nacional e soberano acabam por refletir em todo o globo, seja por sua gravidade ou representatividade. A defesa dos direito humanos não pode estar limitada por questões nacionais ou por muros que escondem atos de crueldade – deve ser uma luta de toda a humanidade.
Contudo, essa interpretação só tomou corpo após uma violenta quebra paradigmática, ocasionada pelas atrocidades cometidas em diversas partes do globo durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, onde se mostrava evidente a redução da vida humana a imensas pilhas de corpos e mutilações. Essa virada de pensamento fez surgir, no âmbito do direito internacional, mecanismos de controle, fiscalização e punição adequados às denúncias de crimes contra a humanidade. Nesse sentido, o direito internacional atua de forma bastante ampla, tanto em situações de conflito armado como na proteção global dos direitos da pessoa humana, assistindo a refugiados e vítimas de guerra.
Nesse contexto, a criação do Tribunal Penal Internacional foi um grande passo na defesa dos direitos humanos e causas humanitárias. Diferentemente de outras cortes e tratados internacionais, o TPI se ocupa da responsabilização penal individual[1], não mais estatal, preenchendo, assim, um vácuo de justiça por muitas vezes observado.
Após um longo processo de construção da jurisdição internacional, marcada pelos resultados dos julgamentos de Tóquio e Nuremberg e, mais recentemente, pelos Tribunais Penais Internacionais criados para Iugoslávia e Ruanda, o Estatuto de Roma, do TPI, se apresenta como documento chave para a solidificação do direito penal internacional e da proteção aos direitos humanos.
2 O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Dada a insatisfação com o resultado de julgamentos anteriores, como o de Nuremberg e o do Extremo Oriente, e a evidente constatação de que crimes contra os direitos humanos não são adequadamente julgados pelos Estados nacionais, tornou-se manifestamente necessária a criação de uma jurisdição penal internacional permanente. A instalação de tribunais ad hoc, como no caso da ex-Iugoslávia e de Ruanda, também apresenta problemas, principalmente no campo da legitimidade.
Todos esses anseios foram atendidos com o requerimento, por parte da Assembleia Geral da ONU, de um projeto de tribunal internacional permanente a Comissão de Direito Internacional (CDI). Após a apresentação de um esboço do estatuto do futuro tribunal, foi estabelecido um Comitê, com todos os Estados-Membros, para análise e discussão acerca do anteprojeto. Após diversas reuniões e modificações no projeto original da CDI, o estatuto do Tribunal Penal Internacional foi aprovado em julho de 1998, durante Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, ocorrida na cidade de Roma. Dessa forma, o documento ficou mundialmente conhecido como Estatuto de Roma.
3 O ESTATUTO DE ROMA
A aprovação do Estatuto foi o primeiro passo para a criação do TPI, contudo, ainda restava a ratificação do documento por, pelo menos, sessenta Estados. Esse número só veio a ser atingido em 2002, sendo, portanto, o ano oficial de criação do Tribunal Penal Internacional.
O Estatuto apresenta-se como um complexo documento que trata dos mais diversos ramos do Direito Internacional Público, abrangendo ditames do direito penal, processual penal, execução penal e também de administração e estrutura interna.
O Estatuto do TPI apresenta 128 artigos, que versam sobre: estabelecimento do Tribunal; jurisdição; admissibilidade e lei aplicável; princípios gerais de direito penal; composição e administração do Tribunal; investigação e persecução; julgamento; penas; recurso e revisão; cooperação internacional e assistência judicial; execução penal; assembléia dos Estados-Partes; financiamento e disposições finais.[2]
O Tribunal caracteriza-se por ser plenamente independente, sua relação com as Nações Unidas fica restrita a um tratado de cooperação mútua. Sua estrutura consiste nos seguintes órgãos: (i) Presidência; (ii) Divisões Judiciais (Pre-Trial Division, Trial Division e Appeals Division); (iii) Registro, órgão administrativo; e (iv) Promotoria.
Um aspecto relevante dessa divisão se encontra no papel da Promotoria, estabelecida como um órgão externo ao Tribunal, completamente independente. O Promotor detém prerrogativa de iniciar investigações por conta própria e apresentar situações à Corte, como também podem os Estados-parte e o Conselho de Segurança da ONU. Entretanto, a ação do Promotor possui entraves específicos. Tem de ser ratificada pela Pre-Trial Division, configurando um meio de controle interno, e também pode ser suspensa por determinação do Conselho de Segurança, pelo período renovável de doze meses.
3.1 O Princípio da Complementaridade
A problemática acerca da inter-relação entre a atuação do Tribunal e as jurisdições nacionais configura um relevante aspecto da soberania na atualidade. Ao voltar os olhos para as questões de direitos humanos, torna-se inevitável a reconsideração do conceito de soberania como absoluto e indiscutível. O cometimento de agressões a grupos humanos, pelos mais diversos motivos, concerne não somente aos diretamente envolvidos, mas a toda a população mundial, uma vez que configura um ataque ao âmago da pessoa humana. Dessa maneira, fica evidente que a jurisdição internacional deve intervir, quando especificamente cogente, em situações de cunho nacional.
A solução encontrada para essa discussão foi a adoção, por parte do Tribunal, do princípio da complementaridade, como disposto no preâmbulo e também no artigo 1º do Estatuto de Roma:
Artigo 1º. É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional ("o Tribunal"). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto.[3]
Destarte, o Tribunal não se caracteriza como Corte Suprema e última instância de todos os ordenamentos que a ele aderirem, só podendo atuar quando se mostrar clara a indisposição ou impossibilidade de agir do Estado nacional. Contudo, compete ao próprio TPI aferir a admissibilidade da ação, confirmando de há, ou não, disposição por parte do Estado.
Assim, percebe-se a preocupação das delegações, ao estabelecer o caráter complementar do TPI, de não esvaziar a competência do Tribunal, atribuindo-lhe a decisão sobre a admissibilidade de um caso, quando verificado se existe demora injustificada em um processo ou ausência de independência ou imparcialidade das autoridades judiciais domésticas.[4]
Esse entendimento é criticado em parte, uma vez que impõe uma intransponível barreira à implantação de uma jurisdição internacional irrestrita. Pode também configurar um fator de prejuízo à eficácia dos julgamentos da Corte. Por outro lado, é um relevante sinal de respeito à soberania dos Estados-parte e da confiança em seus ordenamentos.
3.2 Core Crimes
No Estatuto de Roma também estão assinalados e descritos os crimes que estão sob a competência ratione materiae do TPI, também conhecidos como core crimes. São eles o crime de genocídio, crime contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão – este último ainda dependendo de definição específica – dispostos nos artigos 6º, 7º e 8º.
A definição do crime de genocídio não enfrentou problemas maiores, uma vez que já havia sido firmada pelo artigo 2º da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, em 1948, sendo então esta acepção utilizada no Estatuto.
Art. 2º. Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como:
a) assassinato de membros do grupo;
b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;
d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.
Já os crimes contra a humanidade encontraram maior dificuldade de definição. Após intensas rodadas de negociação, o texto acabou por trazer no seu escopo as diversas maneiras de “ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil” já consagradas na Convenção de Genebra, em 1949. Trouxe, além disso, importantes avanços ao incluir no texto diferentes atos de violência sexual, proteção às mulheres e crianças, desaparecimentos forçados e o crime de apartheid.
O artigo 8º, que trata dos crimes de guerra, terminou por configurar uma sistematização das Convenções de Haia e de Genebra que já haviam versado sobre o tema. A inovação se deu por conta da abrangência, diferente dos ditames anteriores, de conflitos internos, respeitadas a ingerência e soberania de cada Estado. Um item que gerou grandes controvérsias foi o que tratava do emprego de armas proibidas nos conflitos armados. O texto final, contudo, não incluiu essa ofensa como crime de guerra.
Os crimes de agressão, por sua vez, restaram sem definição específica, tornando sua aplicação impossível e condicionada a delimitação específica, como previsto no artigo 5º.
Artigo 5º. 2. O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime. Tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas.[5]
4 O ESTATUTO DE ROMA COMO BASE DA CODIFICAÇÃO PENAL INTERNACIONAL
O Direito Internacional é historicamente reconhecido como um ramo jurídico determinado pela primazia dos costumes. Até o século XX, as relações jurídicas entre os Estados se davam por meras formalidades costumeiras ou simples tratados.
Após a segunda metade do século XX, dada a maior complexidade das inter-relações entre os mais diversos países do globo e tomada de foco para a questão dos direitos humanos, tornou-se essencial a sistematização e delimitação do Direito Internacional, atentando à segurança jurídica e eficácia de sua jurisdição.
Um significante passo para o estabelecimento de um âmbito jurídico internacional, factível e efetivo, foi a criação da ONU, em 1945. As Nações Unidas criaram um espaço, até então inexistente, de diálogo e resolução de conflitos, abrangendo quase a totalidade dos Estados Nacionais do planeta. Um ano após a criação da ONU, passou a funcionar, vinculado às Nações Unidas, O Tribunal Internacional de Justiça. O TIJ tem competência para atuar contra crimes cometidos por Estados. Sua contribuição para o aperfeiçoamento do sistema jurídico internacional e proteção dos Direitos Humanos é inegável.
Uma vez que a punição somente a Estados se mostrou, por vezes, insuficiente, tornou-se necessária a concepção de um órgão que punisse também indivíduos, não importando sua esfera de poder ou cargo estatal. Nessa conjuntura que se arquitetou a criação do Tribunal Penal Internacional.
Dessa maneira, considerando que o objetivo maior do estabelecimento do Tribunal Penal Internacional é o de acabar com a “cultura da impunidade” para os violadores dos direitos humanos, prevenindo, assim, a ocorrência de conflitos que atentem contra aqueles direitos, considera-se que, obviamente, o Estatuto de Roma é um “produto de seu tempo”, uma “fotografia” no estágio evolutivo do Direito Penal Internacional, com aspectos positivos e negativos.[6]
Todavia, o maior avanço observado na criação do TPI foi seu próprio Estatuto. O documento, firmado na cidade de Roma em 1997, foi histórico no sentido que trouxe em seu texto, pela primeira vez, delimitações do direito penal internacional, tipificando, inclusive, crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Um aspecto relevante a ter presente é que o título do documento é demasiado modesto para o seu conteúdo, já que o trabalho completado foi realmente ciclópico, pois, substantivamente, estamos, pela primeira vez na cena internacional, perante um Código Penal Internacional, um Código de Processo Penal, um Estatuto de um Tribunal e, em alguns aspectos, uma Lei Orgânica do mesmo, como se pode verificar pelas epígrafes das Partes referidas.[7]
A codificação e sistematização é um passo essencial na consolidação da jurisdição internacional. A rigidez dos códigos é necessária para a preservação de princípios básicos do direito penal, como a legalidade, nullum crimen sine lege e nullum pena sine lege.
4.1 Influência do Estatuto de Roma nos Ordenamentos Nacionais
Ao sistematizar em um só documento os mais variados ramos do direito penal internacional, o Estatuto de Roma tornou-se o texto base sobre o assunto em âmbito mundial. A partir da delimitação e especificação dos ditames da jurisdição internacional, os Estados nacionais puderam focar seus ordenamentos na direção do Estatuto. Essa novidade objetiva uma maior coesão e uniformidade ao direito internacional.
Contudo, ainda se mostra incipiente essa adequação. A Alemanha é o único país que realizou um esforço para transpor os ditames do Estatuto para o seu ordenamento, o que fez através da promulgação do Código Penal Internacional Alemão (Völkerstrafgesetzbuch), modelo de postura esperada com o estabelecimento do Estatuto de Roma.
Nos países latino-americanos, notadamente, esse esforço ainda é rudimentar, com raros exemplos de cooperação e adequação.
Em muitos países latino-americanos a assunção de compromissos internacionais mediante a assinatura e ratificação de tratados internacionais não os impeliu, a não ser em poucas ocasiões, a reformar suas legislações. Ainda que seja certo que a aprovação do Estatuto de Roma tenha originado uma discussão maior da que antes havia provocado outros instrumentos internacionais na matéria, até o momento não logrou mudanças efetivas nas legislações.[8]
5 CONCLUSÃO
A luta contra as violações dos direitos humanos deve ser constante e cada vez mais difundida. É um enorme desafio para a humanidade reconsiderar, não só sua própria existência, como também a do próximo.
Para a concretização e legitimação dessa luta, se torna essencial a busca de soluções pacíficas e coerentes na resolução de querelas que envolvem a soberania dos Estados-nação e os direitos da pessoa humana.
Como já provado por todo o desenvolvimento histórico das mais diversas culturas, o direito é a ferramenta ideal nessa luta. A ciência jurídica atua, essencialmente, no intuito de estabilizar conflitos e prover justiça, como sintetiza o preclaro Professor, e Juiz da Corte Internacional de Justiça, Antônio Augusto Cançado Trindade:
(...) a via judicial constitui efetivamente a forma par excellence da solução pacífica das controvérsias internacionais, que deve efetuar-se com base no Direito e não na força. A jurisdição penal internacional permanente (o Tribunal Penal Internacional) foi enfim estabelecida. Os tribunais internacionais (Cortes Interamericana e Européia) de direitos humanos têm construído uma rica jurisprudência de emancipação do ser humano vis-à-vis seu próprio Estado. Os Tribunais Penais Internacionais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e Ruanda vêm construindo uma já vasta jurisprudência de combate à impunidade por violações graves dos direitos humanos e do Direito Internacional Humanitário.[9]
O próximo passo para a real efetivação do conteúdo trazido pelo Estatuto de Roma é a sua absorção pelos ordenamentos nacionais. Somente com a uniformização e ampla disseminação dos ideias humanitários que se conseguirá exercer uma eficaz proteção da pessoa humana contra as crimes como os já observados em situações conflituosas do passado recente.
BIBLIOGRAFIA
AMBOS, Kai. MALARINO, Ezequiel (coordenadores). Persecução Penal Internacional na América Latina e Espanha. Trad. e org. IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, 2003.
ESCAREMEIA, Paula. Reflexões sobre Temas de Direito Internacional Público. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2001.
MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 79.
SOUZA, Artur de Brito Gueiros. O Tribunal Penal Internacional e a Proteção aos Direitos Humanos – Uma Análise do Estatuto de Roma à Luz dos Princípios do Direito Internacional da Pessoa Humana. B. Cient. ESMPU, Brasília, a. III – n. 12.
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A humanização do Direito Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
[1] Estatuto de Roma, artigo 25.
[2] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. O Tribunal Penal Internacional e a Proteção aos Direitos Humanos – Uma Análise do Estatuto de Roma à Luz dos Princípios do Direito Internacional da Pessoa Humana. B. Cient. ESMPU, Brasília, a. III – n. 12, p. 19.
[3] Estatuto de Roma, artigo 1º.
[4] MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 79.
[5] Estatuto de Roma, artigo 5º.
[6] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Op. Cit. p. 29.
[7] ESCAREMEIA, Paula. Reflexões sobre Temas de Direito Internacional Público. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2001. p. 268.
[8] AMBOS, Kai. MALARINO, Ezequiel (coordenadores). Persecução Penal Internacional na América Latina e Espanha. Trad. e org. IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, 2003. p. 94.
[9] TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A humanização do Direito Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 26.