1 Introdução
A filosofia analisa, tradicionalmente, a questão da verdade. Para alguns filósofos antigos (pré-socráticos), o debate em torno da verdade recaia sobre a natureza das coisas externas, ao universo material, com forte influência metafísica. Sócrates, entretanto, voltou-se para além do mundo visível, identificando no homem a sua capacidade de produção das coisas e do próprio conhecimento. E tudo isso se desenvolveu a partir da fala oracular de Delfos, que teria indicado Sócrates como o mais sábio dos homens em Atenas, segundo o recado transmitido por Querofonte. Com isso, tem-se a gênese do exercício filosófico socrático. Por intermédio da maiêutica (técnica de diálogo que valoriza a parturição de ideias), chegou-se ao questionamento das verdades consolidadas e das condições materiais do conhecimento consideradas inabaláveis, absolutas. A reação de Sócrates ao enunciado do oráculo desencadeou o surgimento da própria filosofia, com projeções para o pensamento de Platão. E, ainda, tais lições antigas contribuíram significativamente para a construção e reconstrução do pensamento moderno, em particular de Michel Foucault, no que toca às questões afetas ao poder, à verdade e à própria constituição do sujeito.
Chegada a idade contemporânea, ainda, indaga-se naturalmente: qual a essência da verdade? Tal pergunta sugere o suposto entendimento de que existiria algo universal, essencial, imodificável e único em torno do verdadeiro. E mais. Criam-se categorias, modulações e espécies de verdade, com diversas abordagens doutrinárias.
Michel Foucault rompe com essa perspectiva universalista e essencial da verdade, e isso repercute de modo singular na seara jurídica, de sorte a questionar conceitos jurídicos clássicos como “verdade formal” e “verdade material”. Pretende-se, a partir disso, realizar um exercício de análise do pensamento Foucaultiano, a fim de analisar a relação entre poder, direito e verdade.
2 Poder e verdade
Antes, porém, de se examinar mais verticalmente a linha de raciocínio desse complexo filósofo contemporâneo, mister se faz assinalar mais de perto a problemática que se pretende discutir.
Na comunidade jurídica, especialmente no âmbito do direito instrumental (civil e penal), muitas vezes é brandido o emprego das expressões “verdade formal” e “verdade real”, com certas variações terminológicas, sugerindo-se que ao intérprete caberia a difícil tarefa de desenvolver a atividade hermenêutica tendente a buscar, segundo o campo de forças imanente ao material probatório, a essência da verdade no caso concreto.
Diz-se, comumente, que no processo penal vigora o princípio da verdade real ou material, ao passo que no direito instrumental civil rege o princípio da verdade formal.
A propósito, veja-se a passagem de Nelson Finotti a tratar da distinção entre verdade formal e verdade real:
(...) adota-se a verdade formal como consequência de um procedimento permeado por inúmeras formalidades para a colheita das provas, por inúmeras presunções legais definidas aprioristicamente pelo legislador, tais como, preclusão, coisa julgada, revelia, confissão. Em outras palavras, enquanto no processo penal só a verdade real interessa, no processo civil serve a verdade aparente. [1]
Não é outro o entendimento de Fernando Capez relativamente aos fatos que se “passaram na realidade” e a “verdade formal”:
No processo penal, o juiz tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante dos autos (...) Esse princípio é próprio do processo penal, já que no cível o juiz deve conformar-se com a verdade trazida aos autos pelas partes, embora não seja um espectador inerte da produção de provas.[2]
Contudo, tal construção teórica não resiste a uma análise mais atenta, já que amparada em premissas equivocadas. E uma via possível de desconstrução desse entendimento, como já sinalizado, é a análise desenvolvida por Foucault.
Inicialmente, vejamos a questão do poder. O tema do poder, no prisma jurídico, é fortemente influenciado pela leitura de pensadores clássicos desenvolvida no período moderno, como despontam as obras de notáveis pensadores contratualistas, como Hobbes, Locke e Rousseau.
O contratualismo, como é de sabença geral, sustenta que a convivência humana em comunidade (a própria formação da sociedade civil) efetiva-se com base no pressuposto de que existiria um pacto social composto por regras sociais mínimas garantidoras da convivência harmônica entre os indivíduos.
Vê-se, pois, que a origem da sociedade contratual emerge a partir de uma construção racional, e não apenas de uma vontade imperiosa da natureza, como se sustentava com veemência na filosofia antiga, de índole estritamente metafísica.
E, por sua vez, a sociedade politicamente organizada é conduzida por meio de um aparelho administrativo (Estado) dotado de poder soberano para a resolução dos conflitos sociais.
Para o contratualismo, dentre outras características, o poder pertence ao Estado. O poder é visto como propriedade, como algo que pode pertencer a alguém. Identifica-se o poder como coisa, como substância.
Nessa linha de exposição, mais inclinada ao Direito Penal, o poder, portanto, seria pertencente ao Estado e precisamente localizado no interior de instâncias políticas hierarquizadas e repartidas junto à esfera estatal, em razão de critérios de fixação de competência estabelecidos na lei (lei, aqui, em sentido amplo, a envolver a Constituição e demais atos normativos infraconstitucionais).
E, ainda, no campo penal, veja-se a noção de crime e a intervenção punitiva, com destaque para o direito de punir pertencente (ressalte-se a noção de pertencimento, de propriedade do poder) ao Estado:
O crime é a violação de um bem juridicamente tutelado que afeta as condições da vida social, pelo que é imperativo do bem comum a restauração da ordem jurídica que com o delito foi atingida. Se o Estado tutela um bem jurídico em função do interesse social, cumpre-lhe reagir contra quem viola esse bem que a ordem jurídica ampara (...) Surge assim o direito de punir, o qual nada mais traduz que o direito que tem o Estado de aplicar a pena cominada no preceito secundário da norma penal incriminadora, contra quem praticou a ação ou omissão descrita no preceito primário, causando um dano ou lesão jurídica, de maneira reprovável. Abolida que está a vingança privada, a sanção penal é hoje monopólio do Estado, pois o Direito Penal tem uma função pública, achando-se fora de seu âmbito qualquer forma de repressão privada. Só o Estado, portanto, tem o poder de punir. O particular pode vigar-se de seu ofensor, reagir contra ele, nunca porém exercer a sanctio juris. Nem a legítima defesa (na qual é legalmente autorizado a defender-se, e não a aplicar sanções), nem nos crimes de queixa privada (em que apenas existe um fenômeno de substituição processual), pode encontrar-se exceção ao princípio enunciado. [3]
Pois bem. Expostas essas balizas do poder a partir da visão contratualista, cabe analisar a abordagem por uma perspectiva diametralmente oposta, com base em Michel Foucault.
Foucault rompe com os paradigmas do contratualismo e constrói uma “analítica” do poder, e não uma nova teoria do poder.
A propósito dessa diferença, é de se reproduzir a lapidar lição de Marcio Alves da Fonseca:
A analítica do poder em Foucault não representa a elaboração de uma teoria sobre o poder, nem se constrói em apenas um de seus trabalhos. A diferença entre uma ‘teoria’ e uma ‘analítica do poder’ é aqui fundamental. Uma teoria do poder supõe, de algum modo, a identificação de um objeto. Seu ponto de partida seria a determinação de algo como o ‘ser’ do poder, a partir do que, seria possível uma série de descrições de sua estrutura, suas regras de funcionamento, seus efeitos. Uma analítica do poder, por outro lado, não parte da pressuposição de uma essência, não procura definir ‘o’ poder, mas se limita a perceber diferentes situações estratégicas a que se chama ‘poder’. [4].
Segundo Foucault, o poder não existe. Há, sim, relações de poder. Relações difusas em todo o tecido social. A sociedade é composta por instituições sociais (instituições disciplinares) onde se constroem relações de poder.
Vê-se, a título ilustrativo, o que sucede no interior de algumas instituições. Na prisão, a relação de poder entre o recluso e o agente de poder encarregado de sua custódia. Na empresa, a relação de poder entre empregado e empregador. Na família, a relação de poder que se estabelece em torno do poder familiar.
Para Foucault, o poder não é algo que se possa pertencer a alguém. O poder não possui substância. O poder não é propriedade de alguém. Não é algo, coisa, que se adquire e que se pode transferir a outrem. Logo, não se fala em essência, substância ou, até mesmo, em origem do poder.
Há, isto sim, relações de poder que circulam em vários ambientes da sociedade. O poder é circular e operatório. Circula e opera (produz) efeitos de poder. Produz efeitos que interditam, que indicam uma proibição. Que diz “não”, isto é, efeitos que determinam a proibição de uma conduta pela via jurídica. Dá-se o nome de efeito negativo do poder. Os efeitos negativos do poder são de conhecimento notório dos filósofos clássicos. Foucault avançou. Construiu a ideia de efeito “positivo” de poder – eis a originalidade da empreitada Foucaultiana. Ele admite que os efeitos de poder teriam uma dimensão positiva. Os efeitos de poder produzem subjetividade. Atuam, inclusive, na constituição ética do próprio sujeito.
Mas não é só. Afasta-se, nesse prisma, a partir de Foucault, a noção de que o poder pertence ao povo, que o exerce por intermédio de seus representantes eleitos, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Carta Fundamental de 1988.
Rejeita-se, ainda, nessa toada, que o poder de punir o transgressor da norma penal é pertencente ao Estado, titular exclusivo do jus puniendi.
Registre-se que, nos escritos de Michel Foucault, a matéria jurídica é tema recorrente, ainda que de forma lateral (já que o centro de sua preocupação filosófica inclina-se à constituição do sujeito). Foucault, entretanto, como já dito, não constrói uma teoria jurídica. Ele analisa o fenômeno jurídico segundo as relações de poder que se estabelecem entre as pessoas. E os institutos jurídicos seriam mecanismos jurídicos de poder que produziriam certa enunciação do que é considerado verdadeiro segundo o caso concreto submetido à análise judicial.
3 Conclusão
Para Foucault, o Direito é uma produção histórica intimamente ligada à atuação dos mecanismos jurídicos de poder que se estabelecem no interior da sociedade moderna.
A atuação desses instrumentos de poder, em cada momento histórico, produz a constituição da verdade jurídica.
De tudo, não há verdade universalizante, estanque e acabada a ser perseguida no âmbito jurídico, como se propala na quadra doutrinária.
A verdade é construída com base em diferentes instrumentos jurídicos de poder.
Em tempos remotos, a verdade era extraída a partir da utilização de mecanismos jurídicos de poder que atuavam diretamente sobre o corpo do acusado, como a marca de ferro quente e outras tantas técnicas penais punitivas.
Atualmente, verbi gratia, atenta-se ao devido processo legal como forma de produção da prova, tudo em sintonia com o imperativo constitucional insuperável delineado no Texto de 1988.
Foucault, assim, relativiza a noção de verdade jurídica (escapando-se da atividade jurisdicional a possibilidade de extrair a essência da verdade), bem como relativiza a própria noção de sujeito de direitos. Para ele, o homem é uma produção histórica que se constitui ao longo de sua vida, sujeita aos efeitos positivos de poder que circulam por toda rede de poder que recobre todo o tecido social.
Do exposto, ante as incursões filosóficas de Foucault, não merece prosperar a diferença entre verdade formal e verdade material. A verdade é uma produção histórica e, portanto, cambiante, segundo a atuação de determinados mecanismos jurídicos de poder.
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