Resumo: A paternidade socioafetiva como causa de impedimento à elegibilidade consiste na forma de parentesco apenas afetivo como incidência na inelegibilidade. Tal parentesco não tem vínculos biológicos ou cíveis, possui apenas o afeto mútuo entre os seus integrantes. A inelegibilidade é referente ao vínculo de parentesco entre o chefe do poder executivo e o futuro candidato eleitoral. O tema se mostra de grande importância, vez que permite que o judiciário analise de forma objetiva uma relação de cunho puramente subjetivo, como o afeto sendo causa de inelegibilidade. A construção do tema se deu por meio da análise de julgados, visto que estes evoluíram bastante após o reconhecimento da paternidade socioafetiva como forma de construção familiar. Desta forma, o vínculo afetivo ganhou grande espaço no meio jurídico, quando do seu reconhecimento, e assim acabou por influenciar na inelegibilidade do Direito Eleitoral, dessa forma garantindo o preceito constitucional da impossibilidade de manutenção da chefia do executivo sob o comando de uma mesma instituição familiar.
Palavras-chave: paternidade socioafetiva; inelegibilidade; subjetividade; chefe do poder executivo.
INTRODUÇÃO
A finalidade do presente trabalho é a solução da problemática que envolve a paternidade socioafetiva no sentido de ser considerada causa de inelegibilidade, portanto será demonstrada esta interseção das citadas matérias por meio da análise de como o poder judiciário construiu este entendimento, bem como se há compatibilidade entre tal entendimento e as legislações pátrias, quais sejam a Constituição Federal e o Código Civil.
Para a elaboração desta pesquisa, será utilizada a forma de análise jurisprudencial, considerando que este tipo de pesquisa permite uma melhor elucidação da matéria a ser tratada, levando-se em conta a análise de casos reais como exemplos para demonstrar a existência de entendimento jurisprudencial no sentido de que há o impedimento à elegibilidade.
A pesquisa se fundamentará em duas legislações, sendo elas: a Constituição Federal e o Código Civil Brasileiro, que destrincham o tema de forma restrita. Dessa forma, diante da limitação imposta pelas normas brasileiras, é que se percebe como essencial o estudo conjunto de jurisprudências e doutrinas, que vêm fazendo uma mutação constitucional, sem que seja necessária a elaboração de uma nova Carta Magna, visto que em conjunto acabam por criar novos institutos que são conceituados por esta e aplicados por aquela.
Inicialmente a pesquisa se dará pela conceituação da nova instituição familiar, que é a paternidade socioafetiva, bem como dos princípios que regem as relações de parentesco, princípios estes que foram implementados na legislação brasileira pela Constituição Federal de 1988. Será, então, demonstrada como esta nova forma de constituição familiar ocorreu, visto que o Direito de Família é um instituto que esta em constante mutação e que necessita de que a doutrina e a jurisprudência se mantenham sempre atentas ao cotidiano vivido pela sociedade.
Em um segundo momento, se apresentará como ocorre a elegibilidade, que é regida pelo Direito Eleitoral, e a inelegibilidade do art. 14, § 7º da Constituição Federal, que visa a impossibilidade de parentes do titular do mandato se candidatarem na mesma jurisdição, vez que recebe influência dos princípios que foram instituídos pela Carta Magna, em especial o que prevê a negativa de permanência do poder executivo local no poderio de um mesmo instituto familiar.
No terceiro capítulo mostra-se a interferência do Direito de Família no Direito Eleitoral, que é como a paternidade socioafetiva é causa direta de impedimento à elegibilidade, sendo demonstrada a sua necessidade de reconhecimento diante dos princípios instituídos pela Constituição Federal, que não podem ser deixados de lado, visto que são normas gerais de condução da sociedade.
Por fim, será demonstrada a inevitável necessidade de impedimento de elegibilidade, quando o mesmo chefe do poder executivo permaneceu por dois mandatos consecutivos e vier a ser substituído por uma pessoa com quem nutre relação afetiva, ainda que não reconhecida perante a lei, que atualmente já é conceituada como paternidade socioafetiva, visto que o principal objeto da relação é o afeto.
Conforme é possível depreender da leitura do presente trabalho, a edição da Constituição Federal revolucionou o Direito como um todo, mas em especial o Direito de Família, ocorre que esta mudança não foi acompanhada pelo Código Civil de 2002, visto que este já foi editado de acordo com as concepções de sociedade de antes. Desta forma expõe-se que ficou a cargo dos ilustres julgadores o ônus de solucionar as questões que ficaram pendentes na legislação, cabendo, desta forma, a interpretação análoga, sempre objetivando a manutenção do bem comum.
1. A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
A paternidade socioafetiva advém da relação única e exclusivamente de afeto, independentemente de existir relação jurídica ou biológica1. Vale salientar que a relação socioafetiva está presente em qualquer tipo de constituição familiar, pois de acordo com o novo conceito de família, esta engloba os princípios da igualdade, melhor interesse da criança, afetividade e solidariedade2.
A questão socioafetiva tem como origem os primórdios da sociedade humana, bem como as bases sobre as quais foi formada a família. E é dentro deste contexto que esta inserida toda a construção jurídica do instituto familiar3.
Essa nova construção jurídica acerca da família já esta sendo consolidada no poder judiciário, vez que os magistrados têm dado preferência à relação socioafetiva à relação consanguínea, conforme exposto na ementa a seguir:
“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL ONDE CONSTA NOME DE QUEM NÃO É PAI BIOLÓGICO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE ERRO. PRESUNÇÃO DE AUTENTICIDADE DO REGISTRO CIVIL (ART. 1.604, CC). EXISTÊNCIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VERDADE REGISTRAL QUE PREVALECE SOBRE A VERDADE BIOLÓGICA. SENTENÇA MANTIDA.
1 . É sabido que o registro civil goza de fé púbica e se destina a conceder autenticidade aos atos, logo, só se pode vindicar estado contrário provando erro ou falsidade do registro, nos termos do art. 1.604, CC.
2 . O estado de filiação é a qualificação jurídica da relação de parentesco entre pai e filho que estabelece um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. Constitui-se em decorrência da lei, ou em razão da posse do estado de filho advinda da convivência familiar.
3 . Se o autor registrou as requeridas como filhas, sabendo que não era o pai biológico, estabeleceu uma filiação socioafetiva, que produz os mesmos efeitos que a adoção - ato irrevogável -, vez que inexistente vício material ou formal a ensejar a sua desconstituição.
4 . A desconstituição do registro civil de uma relação já consolidada no tempo acarretará muito mais danos que benefícios aos envolvidos. É o afeto perdendo espaço para critérios meramente biológicos. A desconstituição em si não gera apenas a exoneração das obrigações alimentares e sucessórias, mas uma ruptura com todos os vínculos, com todo o histórico de vida e condição social que nortearam uma realidade fática consolidada no tempo.
5 . A Constituição Federal, ao abolir qualquer discriminação imposta aos filhos, independentemente da origem, elegeu como paradigma e fundamento da relação paterno/filial a afetividade. A diretriz perseguida é a estabilidade das relações de família. Uma vez constituída a posse de estado (filho/pai), há de se considerar as relações fáticas consolidadas no tempo, de modo a assegurar a concretização dos princípios do melhor interesse e da convivência familiar.
6 . Recurso improvido. Sentença mantida.”
É, portanto, dentro deste liame que se pretende demonstrar a importância do instituto familiar, bem como dar o devido destaque para a relação socioafetiva entre seus integrantes.
1.1. INÍCIO DA FAMÍLIA
Neste ponto, não se pretende delimitar toda a história da família, vez que é longa e remonta a muitos séculos, por isso, destacam-se apenas as principais evoluções, que resultaram na atual forma a que a família se apresenta.
No início da constituição familiar se tinha uma estrutura patriarcal que legitimava o exercício dos poderes masculinos sobre a mulher e os filhos, poder esse denominado de pátrio poder. Entretanto também existiam as funções religiosas e políticas, porém estas não refletiram na atual concepção de família, ao contrário do pátrio poder5. Incluído no poder exercido pelo homem dentro da família se tinham algumas situações sob as quais os seus membros tinham que se sujeitar, visto que este pátrio poder era inquestionável.
Vale registrar que essa forma de poder dentro da família foi herdada da sociedade romana, a qual era bastante machista e elitista, portanto somente era admitida a perda do poder pátrio para o primogênito varão, e na falta deste o poder deveria ser direcionado a outro membro familiar, deste que fosse homem6.
Como a sociedade familiar brasileira sofreu forte influência da romana, também foi transmitido o valor do sangue para a relação de parentesco, ou seja, somente era tido como filho aquele que tivesse relação consanguínea com os seus ascendentes7, portanto é claramente demonstrado que desde o início da família já existia a distinção entre filho consanguíneo e não consanguíneo.
Conforme a evolução social, a família veio sofrendo inúmeras mudanças à qual se pode relacionar a progressiva emancipação econômica, social e jurídica da mulher, bem como a drástica redução da taxa de natalidade8, desta forma a mulher foi se tornando mais independente.
Portanto, diante destas questões apresentadas, a família foi se desenvolvendo até atingir o seu estágio atual, o qual deixa de lado a imagem da família-instituição para incorporar a imagem de família funcionalizada, a qual tem como preocupação a formação, o desenvolvimento da personalidade de seus componentes, a proteção, a educação e deixa de segundo plano o fator biológico e a unicidade patrimonial9.
A edição da Constituição Federal de 1988 trouxe para o direito de família um novo conceito, sendo que este ainda se limitava à união por meio do casamento entre homem e mulher, porém determinou que é dever do Estado, a proteção à família, pois esta é a base da sociedade. Diante disto, mesmo após a elaboração da Carta Magna, o conceito de família foi reformulado passando então a aceitar como forma de concepção de família, a proveniente da união estável, a qual não necessita do rito solene do casamento, bem como da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes10.
Segundo Paulo Lôbo, na promulgação da Constituição Federal de 1988 foram destacados os seguintes temas: fortalecimento da família tendo em vista ter o objetivo de unir afetos, equidade entre homem e mulher, guarda de filhos, proteção da privacidade da família, proteção estatal das famílias carentes, aborto, controle de natalidade, paternidade responsável, liberdade quanto ao controle de natalidade, integridade física e moral dos membros da família, vida comunitária, regime legal das união estáveis, igualdade dos filhos de qualquer origem, responsabilidade social e moral pelos menores abandonados, facilidade legal para adoção11.
Diante destas novidades trazidas pela Constituição de 1988 não há como deixar de lado a incrementação na legislação brasileira de princípios, os quais são até a atualidade os norteadores do direito brasileiro, sendo que dentre eles existem alguns que são específicos para o direito de família, são eles: princípio da dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar, igualdade, liberdade às relações familiares, afetividade, convivência familiar e melhor interesse da criança12.
1.2. PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA RECEPCIONADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A atual forma que se apresenta a instituição familiar é em decorrência da influência direta de alguns princípios constitucionais aplicáveis ao direito de família. Alguns destes princípios estão expressos no texto constitucional e outros estão implícitos, porém o importante é que todos foram recepcionados pelo legislador quando da edição da Carta Magna.
Como primeiro princípio aplicável ao direito de família pode-se enumerar o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como da família, onde este abarca o local no qual todos os seres humanos nascem, ou seja, no seio familiar, portanto este é inerente a todos13. Vale lembrar que para a atual concepção de família, esta pode ser advinda da relação matrimonial, da união estável, da relação homossexual, da adoção e pode ser monoparental ou anaparental14.
Este princípio tem caráter intersubjetivo e relacional, conforme entendimento da doutrina, determinando, portanto, a existência de um dever de respeito no âmbito da comunidade e dentro desta dimensão, dentro da família, que também é uma comunidade, porém onde as pessoas vivem em comunhão de vidas umas com as outras15.
Ainda dentro deste liame, de acordo com Lourival Serejo: “no Direito de Família, a dignidade da pessoa se espraia em todos os seus institutos, em toda a sua extensão, como forma de garantia e do reconhecimento da função que cada membro desempenha no seio da sua família”16.
Da mesma forma, Maria Helena Diniz expressa a sua interpretação acerca do princípio em cotejo no sentido de que é a “garantia do pleno desenvolvimento dos membros da comunidade familiar”17.
Dando continuidade a enumeração dos princípios do direito de família elencados na Constituição Federal de 1988, tem-se o princípio da solidariedade familiar, que segundo Paulo Lôbo “resulta da superação do individualismo jurídico, que por sua vez é a superação do modo de pensar e viver a sociedade a partir do predomínio dos interesses individuais, que marcou os primeiros séculos da modernidade, com reflexos até a atualidade”18.
Como já dito, este princípio esta previsto na Constituição Federal, no artigo 3º, inciso I, onde é expressamente colocado como dever do Estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, dessa forma transmitindo também às pequenas sociedades, como a família, o mesmo dever. Ressalta-se que antes do advento da Carta Magna esse princípio não era jurídico, era apenas um dever moral ou expressão de piedade19.
Como um dos princípios mais comentados na atualidade, pode-se considerar o princípio da igualdade, justamente por ter trazido inúmeros benefícios no âmbito jurídico, principalmente no direito de família. Ante a essa novidade a família matrimonial era a considerada legítima, e em decorrência disto, os seus frutos também eram os tidos como legítimos, já as relações familiares não provenientes da relação matrimonial eram classificadas como ilegítimas, bem como seus frutos. Entretanto, com a edição da Constituição Federal de 1988, que trouxe em seu texto a presença do princípio da igualdade, equiparou de forma geral os cônjuges entre si, assim como os filhos20.
Em relação a filiação, esta sofreu grande influência da evolução científica, que no caso esta expressa por meio do advento do exame de DNA, o qual permitiu que a verdade real sobre a paternidade biológica seja desvendada sem maiores dificuldades21.
Vale lembrar que neste momento dentro do conceito de família já existia a possibilidade de esta ser constituída por união estável, portanto, estas foram equiparadas às uniões que tinham como marco inicial o casamento. Da mesma forma, dentro deste pensamento, os filhos advindos destas relações foram igualados aos filhos fruto da relação matrimonial, dessa forma todos tiveram garantidos os seus direitos relacionados à filiação22.
Diante dessa equiparação geral, abarcam-se todos os filhos, independente da sua origem, conforme o legislador deixou expresso no artigo 1.593 do Código Civil “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, bem como que ficaram proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, sendo, portanto, a Constituição o verdadeiro estatuto da filiação23.
Como forma de demonstrar a aplicabilidade deste princípio, tem-se a jurisprudência que vem em conformidade com o esboçado pelos doutrinadores, de acordo com o que se verifica a seguir:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA - MILITAR - AUXÍLIO-NATALIDADE - FILHO NATURAL E ADOTIVO - PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO (CF, ART. 227, §6º) - PRINCÍPIO DA IGUALDADE. APELAÇÃO - IMPROVIMENTO.
1 . O bombeiro militar faz jus à concessão de auxílio-natalidade em face de filho adotivo, eis que a Constituição Federal veda a discriminação entre filhos naturais e adotados.
2 . Apelação desprovida.”24
Na esfera do direito de família, a primeira consequência direta que os filhos equiparados sofreram, foi com a obtenção dos direitos sucessórios dos seus ascendentes, com isso todos passaram a disputar em pé de igualdade, sendo que cada um teria direito a um quinhão hereditário de forma unificada25.
Ressalta-se que a evolução legislativa já vinha caminhando com tropeços e dificuldades, tendo em vista a sociedade altamente patriarcal, porém já era possível ver resquícios da tentativa dessa mudança na Constituição Federal de 1937, que dispunha no seu artigo 126 “aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais”. Verifica-se que ainda não havia a igualdade entre todos, inclusive os provenientes da adoção, porém foi um grande passo para a sociedade brasileira, visto que os filhos consanguíneos independentemente se eram fruto do casamento ou não, tinham os seus direitos e deveres em relação aos seus ascendentes26.
Em 1990, com a edição da Lei nº 8.069, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente, foi ratificado o texto constitucional em relação a igualdade entre os filhos, como o disposto no artigo 20, que traz o seguinte texto: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Conforme o entendimento de Maria Helena Diniz em relação a esse princípio, “não se faz distinção entre filho matrimonial, não-matrimonial ou adotivo quanto ao poder familiar, nome e sucessão”27.
É possível definir como majoritário na doutrina a conceituação de filiação nos seguintes termos: “relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se as tivessem gerado”28.
Outro princípio recepcionado pela Constituição e que tem total eficácia na esfera familiar, é o princípio da liberdade às relações familiares, que conforme o entendimento de Paulo Lôbo está descrito da seguinte forma:
“O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.”29
Seguindo o mesmo caminho delineado por Paulo Lôbo, Maria Helena Diniz explicita que dentro do princípio da liberdade no âmbito do direito de família estão: o livre poder de formar uma comunhão de vida, de decisão do casal no planejamento familiar, de escolha do regime matrimonial de bens, de aquisição e administração do patrimônio familiar e de opção pelo modelo de formação educacional, cultural e religiosa da prole30.
Como é facilmente demonstrado pelo entendimento dos doutrinadores citados, há uma unificação na doutrina a respeito deste princípio, vez que a sua interpretação é sólida.
Diante das mudanças protagonizadas pela sociedade, a legislação também necessitou de modificações, sendo que dentre estas se pode destacar o dever do direito de tratar as situações com maior subjetividade, visto que há a necessidade do indivíduo, dentro de cada ente familiar, em fazer prevalecer a sua aceitação no meio social, por meio da busca da realização pessoal, destaque dos valores pessoais, bem como a prevalência da sua dignidade como pessoa humana31.
Nesse sentido a jurisprudência vem seguindo a busca pela sociedade do preenchimento da lacuna antes deixada pelo legislador, no sentido de que nas situações onde a paternidade biológica não existe, a paternidade socioafetiva, que é fundamentada no princípio da afetividade, supre facilmente esta falta na vida familiar.
“AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DESCONSTITUIÇÃO DO RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO. AUSÊNCIA DE FILIAÇÃO BIOLÓGICA. PRESERVAÇÃO DA FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA.
I - O reconhecimento dos filhos é irrevogável, podendo, contudo, ser desconstituído o vínculo parental, no caso de erro ou de falsidade do registro, o que não foi comprovado.
II - Preservação do estado de filiação sócio-afetiva, não obstante a inexistência da biológica, demonstrado nos autos o vínculo paterno-filial, o afeto e o abrigo assistencial entre o autor e os filhos, por quase três décadas.
III - Apelação conhecida e improvida. Unânime.”32
Da mesma forma, Paulo Lôbo traz o seguinte conceito “é o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”33.
Vale ressaltar que este princípio esta implícito na Constituição Federal de 1988 e, assim como os demais princípios nela previstos, impulsionou a evolução da família brasileira no decorrer das últimas décadas do século XX34. Frente a esse desenvolvimento da sociedade como um todo, a família apesar de também progredir, buscou nas suas origens mais remotas a sua real função, qual seja, a de um grupo unido por desejos e laços afetivos que os interligam e que permite que convivam em comunhão de vida35.
Dentro do englobado pelo princípio supracitado, pode-se incorporar ao direito de família o princípio da convivência familiar, que concerne no sentimento recíproco e solidário de acolhimento e proteção, em especial das crianças36.
Envolvido neste princípio, tem-se a modificação interna que a família vem passando, como exemplo, é a forma como as relações intersubjetivas protagonizadas pelos integrantes da família foi modificada garantindo uma melhor convivência familiar, que é o cuidado, zelo com o bem estar, educação e amor distribuídos uns entre os outros37.
O Código Civil, em seu artigo 1.634, traz a determinação de que compete aos pais, em relação aos filhos menores de idade a obrigação quanto a criação, educação, bem como tê-los em sua companhia e guarda. O referido artigo trata sobre os deveres inerentes aos pais que são os titulares por direito do poder familiar, porém esses deveres se fazem presentes quando da convivência familiar.
Destaca-se que, a convivência familiar não é determinada pela vivência dia-a-dia dentro de um mesmo lar, o princípio da convivência familiar é mais amplo, sendo, portanto, no sentido de que por mais que a residência seja diversa, a convivência tem relação com a dedicação de cuidados e educação necessários a manutenção da vida38.
Como consequência de todas as mudanças ocorridas na sociedade e que foram incorporadas pela legislação, há o princípio do melhor interesse da criança. Importante salientar que o significado de criança neste contexto faz referência a criança e ao adolescente, os quais são menores de idade e que, portanto, necessitam de proteção jurisdicional39.
Conforme leciona Paulo Lôbo, este princípio concerne na obrigatoriedade que o Estado, a sociedade e a família têm de zelar pelos interesses do menor de idade quando da aplicação dos seus direitos, em especial na vida familiar, tendo em vista que neste meio elas são pessoas em desenvolvimento e dotadas de dignidade40.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar processos nos quais se discutem situações que envolvem o princípio em cotejo, entende por unanimidade que o processo deve ter o seu deslinde de acordo com o que for mais benéfico para os interesses da criança, visto que esta é a parte mais frágil e desprovida de meios para adquirir sozinha a sua proteção41.
Como um paralelo a esta questão, está o fato de ter sido possibilitado pelo Superior Tribunal de Justiça que um casal homossexual adotasse uma criança, visto que o casal já demandava cuidados a menor desde o seu nascimento e, portanto, o convívio com as duas mães seria o mais proveitoso para a criança. Dentro deste viés, professores e psicólogos deram o seu testemunho de que o menor dentro de uma família tem o seu desenvolvimento melhorado, portanto o que caracteriza claramente que a permanência da criança no seio familiar já estabelecido era o melhor a ser feito42.
Em relação ao princípio do melhor interesse da criança, a legislação não ficou omissa e, por isso, expressa no artigo 227, caput, da Constituição Federal que:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e á convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Diante de toda essa necessidade pela busca da absoluta prioridade dos interesses do menor, é dever do juiz, sempre que colidir a filiação biológica e a paternidade socioafetiva, verificar qual das duas que esta inserida no enunciado do princípio do melhor interesse da criança, ou seja, qual das duas verdades existentes é que é a mais benéfica para o correto desenvolvimento da criança pertencente ao caso real, visto que esta é uma pessoa dotada de dignidade e que esta em processo de formação43.
Portanto, diante dos princípios aqui apresentados é correto afirmar que com a evolução da entidade familiar foi necessário introduzir ao ordenamento jurídico a positivação de algumas situações as quais antes não eram protegidas pelo legislador, bem como dentro deste norte é possível verificar que todos os princípios se interligam e fazem menção a outro, visto que o direito de família é dinâmico e possui caráter subjetivo.
1.3. ESPÉCIES DE FILIAÇÃO
O avanço constitucional que promoveu o princípio da afetividade, que é justificado pela relação baseada no afeto, mostra que este é o principal elemento caracterizador da paternidade onde esta não pode estar em momento nenhum desvinculada da afetividade na relação, mesmo que esta paternidade não tenha como elemento a consanguinidade44.
Advindo das relações afetivas é possível caracterizar mais de um tipo de filiação, que conforme o entendimento de Pedro Welter se compilam em duas formas, quais sejam: biológica e socioafetiva. Com relação à primeira é advinda da mera relação consanguínea entre ascendente e descendente. Já em relação à segunda, há uma subjetividade que é pautada na relação meramente afetiva entre pai e filho. Vale salientar que neste caso da filiação socioafetiva esta relacionada igualitariamente com a primeira espécie apresentada, pois com a evolução constitucional, ambas foram equiparadas45.
Entretanto o entendimento de Paulo Lôbo com relação a espécie de filiação socioafetiva consiste em que “a família é sempre socioafetiva, em razão de ser grupo social considerado base da sociedade e unida na convivência afetiva”, porém, no Brasil, o significado que tem sido dado a filiação socioafetiva tem sido no sentido de que esta é advinda da relação de parentesco não biológico de parentalidade e filiação46.
É possível citar, ainda, outras espécies de filiação nesta subdivisão, como a paternidade registral e a paternidade advinda da inseminação artificial, podendo ser heteróloga ou homóloga47.
1.3.1. FILIAÇÃO COM ORIGEM BIOLÓGICA
A origem biológica é um tipo de paternidade facilmente comprovada por meio do exame de DNA, onde este concerne em uma prova de absoluta certeza quanto à filiação, a qual tem sido muito procurada na atualidade48.
Maria Helena Diniz define como parentesco consanguíneo o que é decorrente de vínculo entre pessoas descendentes de uma mesma linhagem ancestral, ou seja, provenientes de uma pessoa em comum, portanto ligadas umas às outras pelo laço sanguíneo49.
Pode-se considerar que a referência principal para o reconhecimento da paternidade biológica, foi a ruptura da suspeita de paternidade com relação ao casamento, porém o Código Civil de 2002 ampliou os casos em que presume-se esta paternidade, visto que os filhos foram concebidos na constância do matrimônio, conforme elencados no artigo 1.59750.
Importante ressaltar que para efeitos de paternidade considera-se convivência conjugal o período de relacionamento e não apenas desde a celebração do casamento51.
No entender de Paulo Lôbo, existem três verdades relacionadas a filiação, são elas: a biológica para fins de parentesco que determine a filiação; a biológica sem relação de parentesco, visto que já existe vínculo afetivo com outro pai; e a socioafetiva onde já existe o estado de filiação. Diante disto, é verificável que a filiação biológica não está ligada a efetivação da paternidade, por isso este é um fator que acarreta discussão doutrinária52.
1.3.2. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
Esta espécie de filiação consiste na junção de dois fatores: o fator social e o fator normativo. Com relação ao elemento social, este sofreu forte influência da norma, e esta se resume na incidência do princípio jurídico da afetividade, portanto a união destes dois elementos resultou no surgimento do termo socioafetividade53.
Assim sendo, há na atualidade uma maior busca pela verdade sociológica, visto que a verdade biológica não mais satisfaz os anseios humanos e por isso há a necessidade da busca pela real posse do estado de filiação, onde cada um dos seus integrantes assume o papel ou de pai, ou de filho, sendo que esta relação não necessita em nenhum momento de vínculo biológico para atender a verdade real da relação familiar54.
Corroborando com o exposto pela doutrina, a jurisprudência vem demonstrando que a verdade sociológica deve preponderar sobre a verdade biológica, in verbis:
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. INCOMPATIBILIDADE DE PERFIL GENÉTICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONSTATADA. INEXISTÊNCIA DE ERRO OU FALSIDADE DO REGISTRO. PREPONDERÂNCIA SOBRE O VÍNCULO BIOLÓGICO.
1 . Demonstrada a paternidade socioafetiva, bem como a inexistência de erro ou falsidade do Registro Civil, o vínculo afetivo formado entre o autor e a filha, hoje com 21 (vinte e um) anos, não deve ser desprezado, em razão de resultado negativo do perfil genético entre as partes.
2 . Deixando a parte de impugnar a tempo e modo oportunos o parecer técnico do Serviço Psicossocial Forense tem-se por configurada a preclusão.
3 . Recurso de Apelação conhecido e não provido.”55
Ressalta-se que a posse do estado de filho pode estar presente tanto na filiação socioafetiva, quanto na biológica, pois a afetividade deve existir em qualquer relação de filiação. Dentro deste entendimento inclui-se a relação de parentesco por meio jurídico, qual seja a adoção56. A adoção deve ser vista como um ato de amor, afeto e desprendimento, haja vista a existência do princípio da afetividade, que rege as relações familiares, dessa forma, é um incentivo a mais que a lei corrobora para a ocorrência de adoção57.
Portanto, pode-se dizer que o verdadeiro pai é aquele que dentro da esfera cultural, afetiva e jurídica exerce o estado de filiação, e não meramente aquela pessoa que foi apenas o genitor biológico58.
Tendo em vista a existência do princípio da igualdade, bem como o princípio da afetividade, não há como desfazer o vínculo afetivo formado entre as pessoas parte desta relação familiar pela verdade biológica, pois ambas foram equiparadas e, ademais, a vertente atual caminha no sentido de que a afetividade se sobressai a mera relação biológica59.
Em relação à paternidade socioafetiva, esta é caracterizada pela posse do estado de filiação, tendo como forma de fazer prova o disposto no artigo 1.605 do Código Civil:
“Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito:
I - quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente;
II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.”
De acordo com o entendimento de Flávio Augusto de Barros, o disposto no inciso II do artigo supracitado consiste em três requisitos: nominatio, ou seja, quando o filho possui o patronímico do pai; tractatus, que é o fato de o filho ser tratado como tal pelos pais; e, por fim, reputatio, quando o filho é tratado como tal pela família e pela sociedade60. Importante salientar que perante a maior parte da doutrina é possível o estabelecimento destes mesmos três requisitos para a caracterização do estado de filiação.
Ante a consagração dos princípios constitucionais, o afeto passou a ter valor jurídico, por isso, passando a filiação a ser vista por seus valores culturais, sociais, morais, bem como a existência de conflito entre o fato e a lei, onde no caso real o afeto deve se sobrepor a legislação, então a paternidade passa a ser caracterizada no momento em que há a efetivação da convivência afetiva. Da mesma forma o velho dito popular de que “pai é quem cria” se encaixa perfeitamente na atualidade, onde é mais importante que a norma se adapte ao caso concreto e não o contrário61.
Portanto, a paternidade socioafetiva já esta sendo efetivamente reconhecida por toda a jurisprudência, conforme demonstrado no capítulo, sendo assim se faz necessário que os demais ramos do direito se adequem a esta nova modalidade de paternidade, dentre elas o direito eleitoral, principalmente com relação a causa de inelegibilidade dos parentes do chefe do poder executivo, sendo ele federal, estadual, distrital ou municipal.