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Estagiários sem profissionalização:

trabalhadores de segunda classe

01/04/2003 às 00:00
Leia nesta página:

A legislação do estágio curricular foi modificada em 1998 por meio de medida provisória que acrescentou a expressão "de ensino médio" no rol de cursos que devem ser freqüentados pelo aluno para a validade da aprendizagem escolar. Essa alteração deu azo a várias interpretações, uma das quais vislumbrou no texto autorização legal para a prática de estágio por alunos que freqüentam o ensino médio (nomenclatura que substituiu a expressão "ensino de segundo grau") em estabelecimentos cuja organização curricular não tem carga teórica profissionalizante.

Essa análise a respeito da nova redação da Lei 6.494/77 atua como agente de distorções no mercado de trabalho, estimulando a contratação de estagiários para suprir postos de trabalho regulares e transformando-os em trabalhadores de segunda classe, com direitos trabalhistas burlados e sem a almejada profissionalização.

Permitido apenas a estudantes que freqüentam "cursos de educação superior, de ensino médio (de escolas que proporcionam habilitação profissional, nos termos preconizados pela Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional – LDB), de educação profissional de ensino médio ou escolas de educação especial", o estágio decorre da necessidade de uma complementação prática do estudo teórico. Esta é obtida por meio de aprendizagem em empresas, na qual o aprendiz consolida os conhecimentos adquiridos, isso porque as instituições de ensino, por melhor aparelhadas que sejam, não conseguem acompanhar a dinâmica da vida empresarial e suas inovações tecnológicas.

A formalização do estágio ocorre mediante a confecção de um "termo de compromisso", celebrado entre o estudante e a empresa, com intervenção obrigatória da instituição de ensino. Nesse documento deverão constar as atividades desenvolvidas pelo estagiário, obrigatoriamente harmonizadas com a carga teórica adquirida na escola.

A análise dos princípios e regras da formação técnico-profissional evidencia um umbilical paralelismo entre os conhecimentos científicos que são metodicamente adquiridos pelo estagiário na instituição de ensino e as atividades práticas desenvolvidas na empresa que concede o estágio. Sem tal simetria não há aprendizagem escolar.

Eis o grande equívoco de uma leitura distorcida ocasionada por essa alteração aqui analisada. A inserção da expressão "de ensino médio" no art. 1º da Lei do Estágio cria a ilusão de que a prática de estágio por alunos de instituições de ensino médio, cujos currículos não têm conteúdo profissionalizante, permitir-lhes-ia adquirir uma profissão (sendo a prática do estágio legítima). Infelizmente essa proposição é falsa e os adolescentes que estagiam nessas condições se ativam a troco de um projeto irrealizável: o aprendizado de um ofício.

Os defensores da nova redação da lei afirmam que os fins do estágio foram elastecidos e agora contêm horizontes mais amplos, como a aprendizagem social e cultural, adquirida no convívio social e decorrente de matérias de formação intelectual. Enfim, o estágio no ensino médio teria a função de assegurar ao estudante o desenvolvimento de sua personalidade e não profissionalizá-lo.

Esses argumentos não sobrevivem a uma interpretação sistemática e teleológica dos dispositivos da Lei 6.494/77, sucintamente exposta neste escrito, sendo inaceitável que se pincem da legislação expressões isoladas aqui e acolá para construir juízo que legitime estágio no qual não haja correlação da carga teórica com as atividades desenvolvidas na empresa.

Essa interpretação equivocada retoma o espírito do programa "Bom Menino", criado no governo Sarney, cuja lógica era a discriminação pela pobreza, rotulada de "situação irregular". A título de iniciação ao trabalho o legislador autorizava o adolescente à execução de tarefas simples, sem nenhum compromisso com a qualificação profissional. Pela ótica do programa, a relação de trabalho estabelecida entre o "menor assistido" e a empresa tomadora de seus serviços não se enquadrava na proteção do Direito do Trabalho. O adolescente trabalhava como qualquer outro empregado da tomadora, mas sem direitos trabalhistas, em troca do benefício de "freqüentar um local de trabalho" e, assim, adquirir experiência em atividades como office-boy, empacotador, contínuo etc.

Permitindo que adolescentes trabalhem sem nenhuma possibilidade de profissionalização, essa interpretação da nova legislação solidifica o preconceito arraigado em nossa sociedade de que o adolescente pobre deve ser mantido ocupado em alguma atividade que o coloque longe dos chamados riscos sociais, mesmo que tal confinamento lhe custe seu futuro.

Concluímos este artigo com a proposta de substituição da expressão "de ensino médio" pela "de ensino médio de escolas que proporcionam habilitação profissional", em sintonia com a proposta da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, que considera inaceitável a modificação legislativa ora discutida. Essa proposição harmoniza o texto da Lei 6.494/77 com a LDB, impossibilitando a exploração de adolescentes que procuram no estágio curricular um passaporte para sua inserção no mercado de trabalho.

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Sobre o autor
Tarcio José Vidotti

juiz titular da Vara do Trabalho de Ituverava (SP), mestrando em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista - UNESP, em Franca (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIDOTTI, Tarcio José. Estagiários sem profissionalização:: trabalhadores de segunda classe. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3909. Acesso em: 22 dez. 2024.

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