INTRODUÇÃO
A questão proposta pelo presente trabalho insere-se no cerne da teoria do delito, estando em um de seus pilares, que é a teoria da imputação. Trata-se de uma discussão essencialmente teórica, porém, é perceptível que suas implicações na prática são extremamente importantes. O entendimento pela possibilidade de coexistência entre a tentativa e o dolo eventual em uma mesma conduta pode levar a se imputar crimes mais graves em determinadas condutas, condutas essas que, caso se entenda pela impossibilidade de tentativa em dolo eventual, levaria a imputações menos gravosas.
Além desse fato, é preciso enfatizar que tais imputações trazem consequências processuais muito relevantes, haja vista que podem criar deslocamentos de competência, como, por exemplo, quando uma conduta que resultou em lesões corporais, no caso de se entender pela coexistência entre tentativa e dolo eventual, poder ser imputada como homicídio tentado na modalidade de dolo eventual, sendo, portanto, competente o Tribunal do Júri, que, no caso de se entender pela incompatibilidade entre os dois institutos, pode ser configurada como lesão corporal consumada, cuja competência é da vara criminal ou do Juizado Especial Criminal.
Assim, nosso trabalho pretende, perscrutando os institutos da tentativa e do dolo eventual através de análise bibliográfica e jurisprudencial sobre o tema, responder acerca da possibilidade, ou não, de coexistência entre tais institutos em uma mesma conduta. Tal questão é polêmica, possuindo na doutrina e na jurisprudência entendimentos a favor e contra tal compatibilidade, sob argumentos diversos, conforme veremos.
Com o fito de definirmos nossa posição sobre o tema, iniciaremos, no primeiro capítulo, abordando o fato típico e a sua estrutura, utilizando-se, para essa abordagem, do conceito analítico de crime, que entende ser o crime um fato típico, ilícito e culpável, sob o enfoque da teoria finalista da ação. Sob tal enfoque, analisaremos os elementos que compõe o fato típico para que seja possível entender de que forma uma determinada conduta pode ser definida como típica, e não um irrelevante penal. Após, será explicitada a diferença entre o fato típico consumado e tentado através da análise do chamado iter criminis e da norma prevista no art. 14, II, do Código Penal, que tipifica a tentativa.
Vencidas tais explanações, passaremos, já no segundo capítulo, a tratar do instituto do dolo sob o enfoque das teorias da vontade e do assentimento. Analisaremos as modalidades de dolo e seus elementos constitutivos, com principal enfoque no dolo eventual, buscando entender sua natureza e características imprescindíveis para sua configuração.
Por fim, no terceiro capítulo abordaremos a possibilidade, ou impossibilidade, à luz dos conceitos explanados nos dois primeiros capítulos, da coexistência entre a tentativa e o dolo eventual em uma mesma conduta. Para tanto, exporemos as argumentações a favor e contra a compatibilidade entre os dois institutos, ilustradas por jurisprudências, ocasião em que será exposta nossa posição acerca do tema.
O que depreendemos da análise do tema é a necessidade de que ultrapassarmos a polêmica existente, buscando uma solução que, à luz dos postulados da ciência penal, não dependa da discricionariedade de juízes e promotores públicos, trazendo a segurança jurídica e uniformidade de decisões que são tão caras à paz social.
1. O FATO TÍPICO, SEUS ELEMENTOS E A ESTRUTURA DOS CRIMES TENTADOS
Conforme se depreende da leitura do art. 14, inciso II, do Código Penal, o crime tentado ocorre “quando, iniciada a execução, [o crime] não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”.
Dessa simples leitura, salta aos olhos a necessidade de se voltar à estrutura da tipicidade, dentro do conceito analítico de crime, para que possamos entender como se opera o instituto da tentativa no âmbito do Direito Penal. Conforme ensina Greco (2008, p. 142-143),
a função do conceito analítico é a de analisar todos os elementos ou características que integram o conceito de infração penal sem que com isso se queira fragmentá-lo. O crime é, certamente, um todo unitário e indivisível. Ou o agente comete o delito (fato típico, ilícito e culpável) ou o fato por ele praticado será considerado um indiferente penal. O estudo estratificado ou analítico permite-nos, com clareza, verificar a existência ou não da infração penal; daí a sua importância.
Retomando a norma que prevê a tentativa, notamos que a mesma trás em si diversas elementares que necessitam explanação, a fim de que entendamos tal instituto. E tais elementares, não por coincidência, também compõem a tipicidade dentro da estrutura analítica de crime. Para entendermos a tentativa, é preciso que entendamos o que vem a ser “execução”, consumação”, “circunstância alheia” e, ainda, o que vem a ser “vontade”. Só assim estaremos aptos para entender a estrutura dos crimes tentados.
Portanto, de posse dessas noções, delimitaremos, por hora, nosso campo de estudos à análise dos elementos que compõe o fato típico.
1.1. O fato típico e seus elementos conforme o conceito analítico de crime
O fato típico, conforme entendem Rogério Greco (2008, p. 143), Führer e Führer (2004, p. 25), Zaffaroni e Pierangeli (2001, p. 399) e, ainda, "Heleno Cláudio Fragoso, Júlio Fabbrini Mirabete, Francisco de Assis Toledo, Damáseio E. de Jesus, Luiz Regis Prado, Cezar Roberto Bitencourt e outros" (ZAFFARONI; PIERANGELO, 2001, p. 399), partindo da teoria finalista, é composto pela conduta humana voluntária, dolosa ou culposa, omissiva ou comissiva; pelo resultado, que pode ser natural (material) ou jurídico; pelo nexo de causalidade entre a conduta e o resultado e, ainda, pela tipicidade.
Quanto à tipicidade, subdivide-se em tipicidade formal, que é a subsunção da conduta praticada ao tipo descrito na norma penal e, ainda, pela tipicidade conglobante, na qual é preciso avaliar se o resultado foi penalmente relevante e, ainda, se tal conduta é antinormativa (GRECO, 2008, p. 156), (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2001, p. 457-458).
Estando ausente qualquer destes elementos, diz-se que a conduta não constitui crime, por ausência de tipicidade e, por esse motivo, chama-se a conduta de atípica, sendo um irrelevante penal.
1.1.1 A conduta
São várias as teorias que, ao longo do tempo, pretenderam explicar a conduta tipicamente relevante. Podemos citar como mais relevantes a teoria causal da ação e a teoria finalista, existindo, ainda, a teoria social da ação. Contudo, essa "não tem despertado muito interesse", sendo que "os tratados nacionais de Direito Penal não costumam dedicar mais do que algumas linhas à teoria social da ação, quase como se a mesma não existisse" (FÜHRER; FÜHRER, 2004, p. 44).
A principal característica da teoria causal da ação é o fato de, para os adeptos de tal teoria, o dolo e a culpa não integrarem a conduta, mas sim a culpabilidade. Isso porque, conforme explica Greco (2008, p. 148), "no sistema causal-naturalista (...) a ação [era tida como] o movimento humano voluntário produtor de uma modificação no mundo exterior". O único requisito que se exigia ao agente no momento da ação era que tal fosse voluntária, posto que "não constituíam ação os atos não voluntários, como os atos reflexos ou os cometidos sob coação física" (FÜHRER; FÜHRER, 2004, p.40). Assim, continuam os citados autores, "o tipo era considerado como sendo um molde exclusivamente objetivo, destinado apenas a uma seleção preliminar das condutas penalmente relevantes" (FÜHRER; FÜHRER, 2004, p. 40), posto que a análise do dolo e da culpa só seriam realizadas em sede de culpabilidade.
Foi a teoria finalista a responsável por trazer o dolo e a culpa para o âmbito da conduta, pois, de acordo com essa teoria, a ação é sempre uma atividade psiquicamente dirigida. Em outras palavras,
para que a ação seja algo compreensível, é necessário ver o propósito com que foi praticada, ou seja, é preciso verificar desde logo se a ação tinha ou não, como fim, a realização do fato típico. Daí a máxima finalista de que a causalidade é cega, ao passo que a finalidade vê. (FÜHRER; FÜHRER, 2004, p. 41).
Ou, de maneira mais simples, podemos afirmar, juntamente com Greco (2008, p. 149), que, para o finalismo, a ação é "um comportamento humano voluntário, dirigido a uma finalidade qualquer".
Importante, ainda, ressaltarmos que o fim a que se refere o finalismo é o objetivo naturalisticamente considerado, e não um fim-motivo. Exemplificamos. Se um torcedor de futebol decidir comemorar um gol de seu time desferindo disparos de arma de fogo contra seu amigo, a "finalidade" a ser considerada em sua ação é a conduta de apertar o gatilho e disparar contra a vítima (objetivo naturalístico), conduta que se amolda ao fato descrito na lei como homicídio, e não a comemoração que, em sua "mente", o agente almejava no momento da ação. A finalidade, pois, é naturalisticamente considerada (Führer; Führer, 2004, p. 41) e (GRECO, 2008, p. 389-391), ou, conforme Führer e Führer, "o fim de que fala o finalismo é um fim neutro, naturalisticamente considerado, nada mais sendo do que a orientação psíquica dirigida à prática do fato descrito no tipo" (2004, p. 41).
Pelo motivo descrito acima, para a teoria finalista da ação, "no que se refere ao dolo eventual, tanto faz ter por fim o resultado (dolo direto), como ter por fim algo que leva necessariamente ou possivelmente ao resultado (dolo eventual)" (Führer; Führer, 2004, p. 41), posto que em ambos a ação do agente foi finalisticamente dirigida.
Quanto à teoria social da ação, em vista do já citado desinteresse da doutrina pátria e de seu desuso, passaremos ao largo de seus postulados para entrarmos na análise da conduta segundo a teoria finalista da ação, cuja aceitação na doutrina brasileira é quase unânime, conforme expõem Zaffaroni e Pierangeli (2001, p. 399), citando largo espectro de autores que se filiam a tal teoria e, ainda, Führer e Führer (2004, p. 44).
Pois bem, ao falarmos em conduta humana, a princípio imaginamos uma ação comissiva, porém, a conduta também pode ser omissiva. Ou seja, pode ser tanto uma ação quanto uma inação. O importante é que tal conduta seja finalisticamente dirigida para a produção, ou ao menos seja possível de produzir, o resultado danoso previsto no tipo penal, seja ele material ou jurídico.
Tendo isso em mente, é importante salientarmos que a conduta, conforme apontado pela teoria causal da ação, deve ser voluntária, não havendo que se falar em conduta nos casos de comportamentos reflexos, por exemplo. A voluntariedade da conduta, inclusive, nos leva a reafirmar a teoria finalista da ação, pois nos indica que o elemento subjetivo do tipo deve encontrar-se na conduta. Ou seja, é na conduta voluntária que poderemos encontrar o dolo ou a culpa do agente. Assim, entendemos, em conformidade com a teoria finalista, que a conduta não é meramente mecânica-causal, mas, sim, finalista. Toda conduta pressupõe que aquele que age visa algo com o seu agir.
1.1.2 O Resultado
O resultado, do qual depende a existência do crime, pode ser material ou jurídico, sendo que por "jurídico" estamos nos referindo aos chamados crimes de perigo, formais e de mera conduta (GRECO, 2008, p. 216) e, ainda, (NUCCI, 2010, p. 143). Por material, chamamos qualquer resultado que altere a realidade fática, concreta. Exemplificando, o resultado de um crime de dano será o objeto danificado; do homicídio, a morte de alguém, etc. Já o resultado jurídico é aquele que, por motivos de política criminal, ainda que não se altere a realidade fática, considerar-se-á atingido um determinado bem jurídico penalmente tutelado pelo simples fato do agente exercer a conduta descrita no tipo penal. É o caso do porte ilegal de armas, por exemplo, que não possui um resultado concreto, material. É, ainda, o caso dos crimes tentados quando o agente, apesar de sua conduta, não consegue produzir qualquer resultado naturalístico de relevância, como no caso de um agente, com animus necandi, desferir tiros contra sua vítima, à curta distância, errando a pontaria, vindo os projeteis a atingir uma árvore, sem maiores conseqüências. O agente, ainda que não exista o resultado exigido para o tipo “matar alguém”, terá praticado um homicídio, porém na modalidade tentada.
Deste modo, verifica-se que não há crime sem resultado, sendo este um dos elementos para a existência de crime.
1.1.3 O nexo de causalidade
Por este elemento, sabemos que não basta a existência de uma conduta, com todas as suas características, e do resultado, para a existência de um crime. É preciso que exista um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado.
O código penal, em seu art. 13, segunda parte, adotou a teoria da equivalência dos antecedentes causais, ou conditio sine qua non, ao afirmar que considera como "causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido" (GRECO, 2008, p. 218).
Essa afirmação, contudo, não pode nos levar a interpretações errôneas. Se tal fosse levado ao pé da letra, até mesmo a mãe do assassino seria considerada "causa" de um homicídio, tendo em vista que se não fosse sua ação que gerou sua gravidez, tal homicídio jamais teria acontecido. Porém, sagazmente, Frank, conforme explica Fragoso, desenvolveu o conceito de Regressverbot. Explica Fragoso (1984, p. 165) que
procurando estabelecer limitações à teoria, [Frank] formulou a chamada proibição de regresso (Regressverbot), segundo a qual não é possível retroceder além dos limites de uma vontade livre e consciente, dirigida à produção do resultado. Não seria lícito considerar como causas do resultado as condições anteriores.
Segundo Führer e Führer (2004, p. 49), seria a tipicidade a responsável por temperar a conditio sine qua non, "especialmente pela exigência do elemento subjetivo do dolo e da culpa, não bastando [para se considerar como causa] apenas a causação material de um resultado".
Quanto à causalidade por conduta omissiva, por óbvio, não se busca um nexo causal físico, naturalístico, mas, sim, normativo, por força do próprio art. 13 do Código Penal que considera como causa também a "omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido". Ou seja, não se pune o agente por causar um resultado (naturalisticamente falando), mas sim por não ter procurado evitá-lo nos casos em que a lei prevê a obrigação do agente em evitar o resultado.
Também o parágrafo 1º do art. 13 do Código Penal trás uma importante limitação à conditio sine qua non. Segundo tal parágrafo, de cristalina redação, "a superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado", ressalvando que "os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou".
Assim sendo, o nexo de causalidade não é mera relação mecânica de causa e efeito. Para a existência de nexo de causalidade, será imprescindível a existência do elemento subjetivo na conduta do agente e, ainda, que tal conduta praticada pelo agente seja apta, por si só, ou por seus desdobramentos naturais, de causar o resultado.
1.1.4 A tipicidade
A tipicidade, conforme Greco (2008, p. 65), divide-se entre tipicidade formal e conglobante, sendo que a primeira "é a adequação perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal", enquanto a segunda consiste em "verificar dois aspectos fundamentais: a) se a conduta do agente é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico".
Ou seja, quanto à tipicidade formal, resta saber se a conduta praticada pelo agente subsume-se ao tipo penal. Já em relação à tipicidade conglobante, devemos nos voltar para a análise do arcabouço legislativo vigente, buscando saber se tal conduta, no caso concreto, não estaria amparada por outra norma e, ainda, se o resultado advindo de tal conduta é materialmente relevante, ou seja, se há tipicidade material. É necessário que o dano ao bem jurídico penalmente tutelado tenha sido relevante, tendo em vista que o Direito Penal, "ultima ratio", somente foi planejado para coibir os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social (GRECO, 2008, p. 65).
1.2 A estrutura dos crimes tentados
De posse de tais conceitos trazidos nos tópicos descritos acima, podemos voltar ao já citado art. 14, inciso II, do Código Penal, que prevê a ocorrência do crime tentado “quando, iniciada a execução, [o crime] não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”.
Através da análise do fato típico e seus elementos, percebemos que para a existência de um crime, é necessário a existência de uma série de elementos que o compõe. A leitura do artigo acima citado nos remete a alguns desses elementos, senão vejamos: "iniciada a execução" nos remete à conduta; o "não se consuma", ao resultado; as "circunstâncias alheias", ao nexo de causalidade; e, por fim, "a vontade do agente" nos remete ao elemento subjetivo que permeia a conduta.
Essa breve leitura nos faz constatar que ao falarmos em crime tentado, estamos tratando de uma espécie de crime cujo fato típico não teve todos os seus elementos preenchidos. Assim sendo, trata-se de uma exceção ao conceito analítico de crime. Passaremos, então, à análise de como se dá essa exceção, estudando a estrutura dos crimes tentados. Iniciaremos tal estudo através da análise do chamado iter criminis, cuja estrutura é de essencial importância para a compreensão da distinção entre crimes consumados e tentados.
1.2.1 O iter criminis
Iter criminis, ou caminho do crime, segundo Zaffaroni e Pierangeli (apud Greco, 2008, p. 247) "significa o conjunto de etapas que se sucedem, cronologicamente, no desenvolvimento do delito".
Tal caminho pode ser dividido em duas etapas: a interna, que ocorreria na "mente" do agente, e a externa, que se traduziria em uma alteração na realidade fática. Segundo Greco (2008, p. 247),
na fase interna, o agente antecipa e representa mentalmente o resultado, escolhe os meios necessários a serem utilizados no cometimento da infração, bem como considera os efeitos concomitantes que resultarão dos meios por ele escolhidos, e em seguida exterioriza sua conduta, colocando em prática tudo aquilo que por ele fora elucubrado.
Esse caminho da fase interna à externa passa por algumas etapas, sendo elas a cogitação, preparação, execução, consumação e, por fim, o exaurimento. Há controvérsias doutrinárias quanto à existência do exaurimento enquanto elemento do iter criminis, sendo que autores como Bitencourt (2008, p. 264) e Führer e Führer (2004, p. 51) consideram supérfluo tal elemento. Seja como for, nota-se que não há que se falar em iter criminis em crimes culposos devido à impossibilidade lógica de se cogitar e preparar a prática de um crime culposo. (GRECO, 2008, p. 198).
A cogitação, como o próprio termo indica, é a fase mental do crime. Ocasião em que o agente "cria" a ideia criminosa em sua "mente". Bittencourt (2008, p. 362) chega mesmo a afirmar que é na fase preparatória que o agente pesa os prós e os contras de sua conduta, a fim de julgar pela realização, ou não, da conduta.
Já a preparação é o começo da externalização de tal ideia, na qual o agente "seleciona os meios aptos a chegar ao resultado por ele pretendido, procura o lugar mais apropriado à realização de seus atos" (GRECO, 2008, p. 248), e, enfim, prepara-se para a realização de seu intento. Conforme ensina Dotti (2001, p. 325),
os atos preparatórios constituem atividades materiais ou morais de organização prévia dos meios ou instrumentos para o cometimento do crime. Tanto pode ser a aquisição ou o municiamento da arma para o homicídio, como a atitude de atrair a vítima para determinado lugar para ser atacada.
Cumpre salientar que tais atos não são puníveis, posto que o Direito Penal não pune intenções, mas sim fatos concretos. É o que prescreve o inciso II do art. 14 ao afirmar que só é punível criminalmente uma conduta quando iniciada a sua execução. Apesar disso, é necessário lembrarmos que alguns atos preparatórios são tipificados legalmente, tal como ocorre com o crime de explosão, previsto no art. 251 do Código Penal, no qual a “simples colocação de engenho de dinamite ou de substância de efeitos análogos” já caracteriza o delito.
A execução, elementar presente no art. 14, inciso II, ocorre quando o agente, efetivamente, inicia a sua conduta rumo ao resultado querido, sendo que, caso obtenha intento em seus atos, entrará na fase de consumação, ocasião em que, com sua conduta, terá obtido o resultado almejado. Nucci (2010, p. 180) assim conceitua a execução:
é a fase de realização da conduta designada pelo núcleo da figura típica, constituída, como regra, de atos idôneos e unívocos para chegar para chegar ao resultado, mas também daqueles que representarem atos imediatamente anteriores a estes, desde que se tenha certeza do plano concreto do autor.
Por fim, o exaurimento, que ocorre somente em algumas infrações penais, "é a fase que se situa após a consumação do delito, esgotando-o plenamente" (GRECO, 2008, p. 248).
Pela importância para o trabalho, analisaremos, em tópico próprio, o elemento consumação.
1.2.2 A consumação
No tópico anterior vimos no que consiste a execução, que nada mais é do que o agente impetrar sua conduta com o objetivo de alcançar o resultado anteriormente cogitado. Já a consumação diz respeito ao fato típico que se completou através da conduta do agente. Por isso, o inciso I do art. 14 do Código penal prevê que o crime é consumado “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”.
Disso se nota que, necessariamente, o delito consumado é aquele que produz um resultado, sendo que este resultado, conforme já aludido, não é somente naturalístico, podendo ser, também, jurídico. Ademais, “conforme a sua classificação doutrinária, cada crime tem sua particularidade. Assim, nem todos os delitos possuem o mesmo instante consumativo” (GRECO, 2008, p. 249). Greco elenca ainda uma série de crimes que se diferenciam quanto à consumação:
a) materiais e culposos: quando se verifica a produção do resultado naturalístico, ou seja, quando há a modificação no mundo exterior;
b) omissivos próprios: com a abstenção do comportamento previsto no tipo, não se exigindo qualquer resultado naturalístico;
c) mera conduta: com o simples comportamento previsto no tipo, não se exigindo qualquer resultado naturalístico;
d) formais: com a prática da conduta descrita no núcleo do tipo, independentemente da obtenção do resultado esperado pelo agente, que, caso aconteça, será considerado como exaurimento do crime.
e) qualificados pelo resultado: com a ocorrência do resultado agravador.
f) permanentes: enquanto durar a permanência, uma vez que o crime permanente é aquele cuja consumação se prolonga, perpetua-se no tempo. (2008, p. 249).
O entendimento do que vem a ser a consumação no contexto do iter criminis é de suma importância para o entendimento dos crimes tentados, tendo em vista que o crime é tentado quando, por circunstâncias alheias à vontade do agente, o crime não se consuma.
1.2.3 As circunstâncias alheias à vontade do agente
Tudo isso dito, agora podemos entender a elementar constante no art. 14, inciso II, do Código Penal, “circunstâncias alheias à vontade do agente”. Tais circunstâncias são aquelas que, de forma independente à conduta do agente, impedem que ele alcance seu intento criminoso, impedindo a consumação do delito. É o que entende Luís Régis Prado, conforme explicita Marones, ao afirmar que
a ação tentada caracteriza-se por uma disfunção entre o processo causal e a finalidade que o direcionava. Para o autor, de acordo com a dicção legal, há tentativa quando, iniciada a execução do fato punível (tipo objetivo), este não se consuma por circunstâncias independentes do querer do agente. (MARONES, p. 3).
Segundo explica Ferreira dos Santos, a natureza destas circunstâncias pode até mesmo modificar a classificação doutrinária da tentativa. Segundo esse autor,
partindo-se do pressuposto que a vontade do agente pode ser interrompida no curso do processo causal ou mesmo não sofrer qualquer interrupção neste, de modo que o mesmo se complete, embora o resultado desejado não seja produzido, temos que há duas espécies de tentativa: a) tentativa imperfeita ou tentativa propriamente dita; b) tentativa perfeita ou crime falho. Ocorre tentativa imperfeita ou tentativa propriamente dita, quando, iniciada a execução, há um fracionamento no processo causal por circunstâncias alheias à vontade do agente. Nessa hipótese, o agente é interrompido no seu atuar, de sorte que não exaure sua “potencialidade lesiva”, não conseguindo levar adiante seu projeto criminoso. De outra banda, pode ocorrer que o agente realize todos os atos executórios, porém o resultado planejado não se concretiza. É a hipótese da tentativa perfeita ou crime falho. Aqui, o agente praticou todos os atos que estavam ao seu alcance, acreditando mesmo que o resultado estava concretizado, no entanto, o mesmo não se realizou por circunstâncias alheias à sua vontade. A execução se conclui, mas o resultado não se consuma. (SANTOS, 2014).
E, ademais, tal distinção também é relevante "para efeito do estudo dos Institutos da desistência voluntária (só admitido na tentativa imperfeita) e do arrependimento eficaz (admitido na tentativa perfeita)" (SANTOS, 2014).
Assim, conforme se depreende, no crime tentado, o que se pune não é o resultado que não ocorreu, mas sim a conduta que foi ofensiva ao bem juridicamente tutelado, conforme veremos no tópico abaixo.
1.2.4 Tentativa e fato típico
Conforme aduzido nos tópicos acima, no crime tentado, o fato típico não se completa devido à existência de um vício em um de seus elementos, qual seja, o resultado. E, nesse diapasão, se pergunta Greco (2008, p. 253):
Dissemos também que tipicidade formal é a adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei. Assim, se Alfredo dolosamente causar a morte de João, sua conduta se amoldará ao tipo do art. 121 do Código Penal. Agora, como adequar a conduta de Alfredo ao tipo do art. 121 se este não conseguir chegar à consumação do crime de homicídio? Se ele não consegue alcançar o resultado morte, embora tenha dirigido sua ação nesse sentido, como dizer que sua conduta se subsume ao modelo abstrato previsto pelo legislador?
Por este motivo foi criada a previsão legal, no art. 14, inciso II, do Código Penal, da tentativa. Conforme elucida Zaffaroni (2000, p.16),
os atos de tentativa são os que se estendem desde o momento em que começa a execução até o momento da consumação. Trata-se de uma extensão da proibição à etapa executiva do delito, que alcança, por conseguinte, desde o começo de execução até que se apresentem todos os caracteres da conduta típica. Esta ampliação da proibição típica ocorre em função de uma fórmula geral, existente na Parte Geral dos Códigos, em que nada mais se faz que recolher um conceito ôntico, pois a noção de tentativa não é uma criação legislativa.
Nesse sentido, Marones (2014) afirma que:
O fundamento jurídico e teleológico da punibilidade da tentativa encontra-se presente na defesa e pertinência repressiva dos bens jurídicos tutelados, bem como nos atos e omissões que lhes sejam ofensivos, tendo o Direito evoluído para uma noção eclética de sua repressão subjetiva e objetiva, passando da Teoria Subjetiva (a qual via no elemento subjetivo a razão da punibilidade do ato ilícito, pelo que a pena do conatus deveria ser idêntica à pena do delito consumado) para a Teoria Objetiva, que busca, predominantemente, reprimir o perigo ao bem jurídico tutelado.
Assim, o tipo contido no inciso II do art. 14 do Código Penal configura um tipo extensão, conforme ensina Costa Júnior ao afirmar que “o tipo contido no inciso II do art. 14 configura um tipo de extensão, como aquele descrito no art. 29 (concurso de pessoas. Isto porque, aglutinado aos vários tipos da Parte Especial, confere-lhes maior abrangência” (1989, p. 37).
1.2.5 Elementos que compõe o crime tentado
De tudo exposto no presente capítulo, podemos elencar os elementos que compõe o crime tentado.
De início, é necessário que a conduta do agente seja dolosa, posto a necessidade da existência de uma conduta realizada através de uma vontade livre e consciente de praticar determinada infração penal.
Como se percebe, não há um dolo específico para o crime tentado. O dolo é o de praticar a infração penal, que somente não e consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Franco (1997, p. 225) aduz que
se a tentativa é um tipo objetivamente incompleto, é, no entanto, do ângulo subjetivo, um tipo completo, tanto que o dolo que a informa é o mesmo dolo do crime consumado. De qualquer modo, para conceituar a tentativa, não basta o só desencadeamento do processo executivo de um fato, mas se exige também que se identifique a presença de uma vontade voltada na direção do resultado, que é a mesma do crime consumado.
Além da conduta dolosa, é necessário que o agente, com sua conduta, ingresse efetivamente na execução do crime. E, por fim, que o crime não seja consumado por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Conforme nos explica Greco, podemos entender por circunstâncias alheias à vontade do agente, qualquer fato externo que, de qualquer modo, venha influenciar a interrupção da execução que, caso não fosse interrompida, levaria, normalmente, à consumação da infração penal (GRECO, 2008, p. 255). E, continua:
Não importa, aqui, se o agente havia esgotado todos os meios que tinha à sua disposição para que pudesse alcançar o resultado inicialmente pretendido [...] ou se foi interrompido durante a execução do crime [...]. sendo a circunstância alheia à sua vontade a causa impedidora da consumação do crime, podemos falar em tentativa.
Tendo em mente a estrutura da tentativa, conforme descrito nos tópicos acima, agora passaremos a analisar o dolo, para que possamos entender em que consiste o dolo eventual e, por fim, analisarmos sobre a possibilidade, ou impossibilidade, de existirem crimes tentados em sede de dolo eventual.
2. O DOLO, SUAS MODALIDADES E SEUS ELEMENTOS
Vencida a explanação quanto à estrutura dos crimes tentados à luz do fato típico no conceito analítico de crime, abordaremos, no presente capítulo, o dolo, suas modalidades e seus elementos constitutivos. Frise-se que para tal análise, nos utilizaremos dos pressupostos das chamadas teorias da vontade e do assentimento do dolo, largamente utilizadas pela doutrina e a jurisprudência pátrias (NUCCI, 2010, p. 204), (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 481), (GRECO, 2008, p. 183), (FÜHRER; FÜHRER, 2003, p. 44), sem adentrar na questão relativa ao estudo crítico do dolo e suas diversas definições hodiernamente construídas.
De início, é preciso enfatizar que a grande maioria dos estudiosos da ciência penal identifica o dolo através de dois elementos que precisam existir concomitantemente, o elemento intelectivo e o volitivo, conforme se depreende da leitura dos autores acima citados. Em outras palavras, para existir dolo, segundo tais autores, é necessário que o agente, ao realizar a conduta, conheça a realidade fática à sua volta, realidade essa que se subsume a um tipo penal[1], e, além disso, que o agente queira, com sua conduta, produzir o resultado danoso. É este o entendimento adotado por nosso Código Penal. Tanto é assim que o próprio código prevê, em seu art. 20, o instituto do "erro de tipo", que ocorre quando há um vício no elemento intelectivo, e que tem como conseqüência a exclusão do dolo. Senão vejamos: o caput do citado artigo afirma que "o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo". Por isso podemos dizer que enquanto o art. 18, I, consagra legislativamente a chamada teoria da vontade, alçando o elemento volitivo como imprescindível ao dolo, quando aduz que o crime é "doloso, quando o agente quis o resultado"; o art. 20, por sua vez, consagra o elemento intelectivo, posto que, havendo vício no conhecimento fático que circunda o agente ao realizar sua conduta, restará excluído o dolo (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 494-496).
Mirabete, em consonância com o afirmado acima, ensina que em relação aos elementos volitivo e intelectivo componentes do dolo, devemos nos atentar para o fato de que
a consciência do autor deve referir-se a todos os elementos do tipo, prevendo ele os dados essenciais dos elementos típicos futuros em especial o resultado e o processo causal. A vontade consiste em resolver executar a ação típica, estendendo-se a todos os elementos objetivos conhecidos pelo autor que servem de base a sua decisão em praticá-la. (MIRABETE, 2008, p. 130)
Por fim, ao resumir o conceito de dolo e suas modalidades em nosso ordenamento, Luiz Flávio Gomes (2007, v. II, p.376) nos afirma ser o dolo
consciência e vontade de realizar (de concretizar) os requisitos objetivos do tipo que conduzem à produção do resultado jurídico relevante (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) desejado (querido, intencional – dolo direto) ou pelo menos esperado como possível (assumido pelo agente – dolo eventual).
Porém, tal explanação abarca apenas uma espécie de dolo, podendo o mesmo ser dividido em dolo direto de primeiro grau, dolo direto de segundo grau e, ainda, dolo eventual (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 497), também chamado de dolo indireto (NUCCI, 2010, p. 205), sendo essa espécie a que nos interessa no presente trabalho.
Explica-nos Zaffaroni e Pierangeli (2001, p. 497-498) que
Chama-se dolo direto aquele em que o autor quer diretamente a produção do resultado típico, seja como o fim diretamente proposto ou como um dos meios para obter este fim. Quando se trata do fim diretamente querido, chama-se dolo direto de primeiro grau, e quando o resultado é querido como consequência necessária do meio escolhido para a obtenção do fim, chama-se dolo direto de segundo grau ou dolo de consequências necessárias.
Quanto ao dolo direto de segundo grau, explicitando suas características, Nucci (2010, p. 205) afirma:
é a intenção do agente, voltada a determinado resultado, efetivamente desejado, embora, na utilização dos meios para alcançá-lo, termine por incluir efeitos colaterais, praticamente certos. O agente não persegue os efeitos colaterais, mas tem por certa a sua ocorrência, caso se concretize o resultado almejado.
Já em relação ao dolo eventual, Nucci (2010, p. 205) o conceitua como sendo
a vontade do agente dirigida a um resultado determinado, porém vislumbrando a possibilidade de ocorrência de um segundo resultado, não desejado, mas admitido, unido ao primeiro.
Conceito este compartilhado, a guisa de exemplo, por Zaffaroni e Pierangeli (2001, p. 499), Rogério Greco (2008, p.186-187) e Führer e Führer (2003, p. 45). Contudo, é necessário que esmiucemos tal conceito para que possamos entender a estrutura do dolo eventual e no que ele se difere do dolo direto, com o fim de que possamos analisar a possibilidade, ou não, de um crime tentado ser praticado pelo agente em sede de dolo eventual
2.1 O dolo eventual e suas características
Nelson Hungria (1978, p. 112), em seu clássico Comentários ao Direito Penal, no longínquo ano de 1948 já nos alertava acerca de alguns aspectos intricados subjacentes ao dolo eventual. Segundo relata o renomado penalista, a expressão "assumiu o risco de produzi-lo", contida no atual art. 18, I, do Código Penal é oriunda de uma tradução imprecisa do projeto do Código Penal da Alemanha Nacional Socialista. O citado projeto dizia sobre o dolo eventual: "vorätzich handelt auch, wer es zwar nur für möglich hält, aber doch in Kauf nimt, dass er Erfolg herbeiführt", que Hungria traduz como "também age dolosamente aquele que prevê apenas como possível o resultado, mas consciente do risco de causá-lo". E, continuando seu raciocínio, recorre à Hans Frank ao afirmar que "a expressão in Kauf nehmen, empregada nesta fórmula, quer dizer "estar consciente do risco" ("mit bewusstem Gefahrrisijo")". Porém, continua Hungria, "ao invés (..) de traduzir fielmente a expressão alemã in der kauf nimmt, o Código, mais restritivamente, fala em "assume o risco".
Apesar da ressalva de Hungria, cremos que o termo “consciente”, presente na tradução de "mit bewusstem Gefahrrisijo" nos remete ao elemento intelectivo, apenas, sendo, portanto, mais restrito; enquanto o “assumir”, criado na tradução, pressupõe em si mesmo a consciência do risco, em conjunto à assunção. Afinal, é uma impossibilidade lógica assumir um risco do qual não se tem consciência. Por esse motivo, cremos que a teoria do assentimento acaba por englobar a da probabilidade, posto não ser possível ao agente assentir com a produção de um resultado que não saiba ser provável de ocorrer. Em outras palavras, para existir assentimento é pré-requisito que o agente tenha consciência da probabilidade do resultado ocorrer.
Prosseguindo, há o problema da subjetividade inerente à palavra “assumir”. Todos nós assumimos riscos inerentes ao dia a dia, sem que, com isso, estejamos praticando condutas dolosas. Não existe gradação objetiva que distinga a assunção "comum" do risco, que deságua em condutas culposas, da assunção "mais grave", tida como dolosa na modalidade eventual. Pode-se argumentar, valendo-se da teoria do assentimento, que é necessário mais que a assunção do risco (no sentido da argumentação acima): é necessário que o agente consinta com o resultado. Tal solução é interessante, posto que, em conformidade com a teoria do dolo comumente aceita, busca-se recorrer à vontade para a caracterização do dolo eventual. É certo que todos nós assumimos riscos ao empreender determinadas condutas, mas não consentimos com os possíveis resultados advindos de nossas condutas arriscadas do dia a dia. Não consentimos com os possíveis resultados danosos advindos do ato de dirigir veículos automotores, por exemplo, apesar de sabermos dos riscos inerentes a essa conduta e os assumirmos, posto que, sabendo desses riscos, ainda assim dirigimos.
O consentimento, portanto, seria um plus à assunção, imprescindível à caracterização do dolo eventual. É este, inclusive, o critério normalmente utilizado para a distinção entre a culpa consciente e o dolo eventual, aduzido até mesmo por Hungria, tendo em vista que, em suas palavras:
Sensível é a diferença entre essas duas atitudes psíquicas. Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta a anuência ao advento dêsse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de supereminência do resultado e empreende a ação na esperança ou persuasão de que êste não ocorrerá. (HUNGRIA, 1978, p. 116).
Ou seja, diz-se que em ambos o agente prevê o resultado e sabe da possibilidade de sua ocorrência, porém, enquanto na culpa consciente o agente não consente com o resultado, apesar de assumi-lo (afinal, age sabendo da probabilidade de um resultado danoso ocorrer), no dolo eventual há este consentimento (o agente age sabendo da probabilidade de um resultado danoso ocorrer, e consente com esse resultado, caso ocorra).
Tomando certa liberdade, poderíamos dizer, então, que o dolo eventual seria uma “espécie” de dolo alternativo. A diferença estaria no fato de que enquanto no dolo alternativo o agente, com sua conduta, pretende alcançar ou um resultado danoso ou outro, no dolo eventual o agente pretende, com sua conduta, alcançar um resultado sem danos, ou com danos, pouco se importando com o resultado, assentindo, portanto, com a ocorrência desse possível resultado danoso. O agente prevê que poderá advir um resultado danoso de sua conduta e, ainda que não desejando diretamente tal resultado danoso, assente com o mesmo, e, por fim, age. É o que nos afirma Damásio de Jesus (2003, p. 290-291). Senão vejamos:
Ocorre dolo eventual quando o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza.
Também Masson (2010, p. 268) se utiliza da "aceitação" do resultado como característica diferenciadora entre a culpa consciente e o dolo eventual. Diz o autor que:
Na culpa consciente, o sujeito não quer o resultado, nem assume o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente ser capaz de evitá-lo, o que apenas não acontece por erro de cálculo ou por erro na execução. No dolo eventual o agente não somente prevê o resultado naturalístico, como também, apesar de tudo, o aceita como uma das alternativas possíveis.
E, ainda, Anibal Bruno (1967, p. 92-93) que também se utiliza do critério "aceitação do resultado" como o indicador do elemento volitivo imprescindível ao dolo, cerne da diferença entra a culpa consciente e o dolo eventual. Senão vejamos:
A forma típica da culpa é a culpa inconsciente, em que o resultado previsível não é previsto pelo agente. É a culpa sem previsão. Ao lado desta, Construiu a doutrina a chamada culpa consciente, em que o resultado é previsto pelo agente, embora este sinceramente espere que ele não aconteça. A culpa com previsão representa um passo mais de culpa simples para o dolo. É uma linha quase imponderável que a delimita do dolo eventual. Neste, o agente não quer o resultado, mas aceita o risco de produzi-lo. Na culpa com previsão, nem esta aceitação dos risco existe, o agente espera que o evento não ocorra.
Por fim, Luiz Regis Prado (2008, p. 331) apela para o fato de que
no dolo eventual, o agente presta anuência, consente, concorda com o advento do resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo a renunciar à ação. Ao contrário, na culpa consciente, o agente afasta ou repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do evento e empreende a ação na esperança de que este não venha a ocorrer – prevê o resultado como possível, mas não o aceita, nem o consente.
Como se depreende das afirmações acima transcritas, a grande maioria da doutrina brasileira assim se posiciona quanto ao dolo eventual, afirmando, em suma, tal como afirma Delmanto (2010, p. 152), que "no dolo eventual, não é suficiente que o agente se tenha conduzido de maneira a assumir o risco de produzir o resultado; exige-se, mais, que ele tenha consentido no resultado".
O que se percebe de tais afirmações é que o dolo eventual se diferencia do dolo direto unicamente pelo elemento volitivo do agente no momento da conduta. Nessa modalidade de dolo não há o “querer” o resultado, há outra atitude por parte do agente, atitude essa que, numa definição nebulosa, o Código Penal chama de “assumir” o resultado.
Luís Greco, no prefácio ao livro de Puppe (2004, p. XVII), adverte sobre o tema que
as palavras que a lei usa - o assumir o risco da produção do resultado - são ambíguas, podem ser compreendidas tanto no sentido de uma teoria meramente cognitiva, que trabalha tão-só com a consciência de um perigo qualquer, como no sentido de uma teoria da vontade, a qual pode ser teoria da anuência, como também qualquer outra. E a prova disso é que um dos maiores e mais importantes críticos de qualquer visão do dolo sempre como vontade, um defensor da teoria da possibilidade, alguém que considerava, portanto, suficiente que o autor reconhecesse o resultado como algo possível, e dizia inexistir qualquer culpa consciente, pois se há consciência, há dolo ("toda culpa é culpa inconsciente"), Horst Schröder, em seu clássico estudo na Festschrift em homenagem a Sauer, utiliza várias vezes a expressão do assumir o risco (Inkaufnahme des Risikos) para caracterizar o dolo.
Seja como for, apesar de concordarmos com Luís Greco quanto à ambiguidade do termo “assumir”, não pretendemos discutir no presente trabalho a prescindibilidade do elemento volitivo para a constituição do dolo. O que buscamos, aqui, é determinar os seus elementos de modo a caracterizá-lo com o mínimo possível de dúvidas. Em outras palavras, no que consiste o elemento volitivo do agente quando o mesmo age com dolo eventual?
Voltemos ao dito por Hungria. O próprio apresenta uma curiosa nota de rodapé, em seu Comentários ao Código Penal, em que cita um certo Donnedieu de Vabres, em sua obra La politique criminelle des Etats autoritaires, traçando um histórico do conceito de dolo eventual. Transcrevamos:
Os delitos culposos ocupam, entre os delitos puramente materiais e os delitos dolosos, uma situação intermediária. O problema delicado é relativo ao caso da culpa consciente, conhecida em França com o nome de dolo eventual. A maior parte dos Códigos modernos, notadamente o Código Penal francês e o Código alemão de 1871, deixam aos tribunais a tarefa de resolvê-lo. Nossa jurisprudência, inspirando-se no princípio de benignior interpretatio, soluciona a questão, com grave prejuízo de interesses cada dia mais respeitáveis, pela assimilação do dolo eventual à simples culpa. O moderno legislador penal alemão propôs-se, com muita felicidade, preencher a lacuna. O projeto de 1927 (§ 17) assimilava à intenção criminosa o caso de quem, sem ter interesse no evento lesivo, sem querê-lo, estava consciente dele e, por sua conduta, consentiu em que ocorresse (Einwilligungstheorie) [teoria do consentimento]. Mais rigoroso é ainda o projeto nacional-socialista. Entende ele que, mesmo faltando a consciência, já a indiferença leviana, o fato de quem se fia cegamente "em sua boa estrela", merece ser equiparado ao dolo. O projeto substitui a noção da Einwillingung ou do Einverstandensein pela fórmula in den Kauf nehmen. (HUNGRIA, 1978, p. 121).
Conforme se depreende do autor citado por Hungria, a fórmula in den Kauf nehmen, apontada por Hungria como a inspiração para o nosso "assumiu o risco", na verdade foi criada como um substituto à teoria do consentimento[2]. Hungria (1978, p. 122) é enfático ao afirmar que tal teoria foi adotada pelo direito pátrio, pois "assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado". Porém, a leitura da exposição de motivos de nosso Código Penal não nos leva a tal conclusão. Diz o Ministro Maurício Campos: "é inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu advento". Ora, se ao dolo é imprescindível o elemento volitivo, temos que “arriscar-se conscientemente” não é o mesmo que querer produzir um evento danoso, ou anuir com sua ocorrência. O fato do agente se arriscar demonstra, indubitavelmente, o elemento intelectivo necessário ao dolo, tendo em vista que para que o agente arrisque, ele tem que ter consciência da realidade fática que o circunda e que o faz saber que “está arriscando” ao agir, mas não necessariamente o volitivo. Quem arrisca não necessariamente deseja o resultado, ou mesmo assente com a ocorrência do mesmo. Portanto, tal caminho não é válido para encontrarmos a essência do dolo eventual.
Tal entendimento se coaduna ao de Juarez Tavares (2002, p. 346) quando o referido autor afirma que
o dolo eventual é, legalmente, equiparado ao dolo direto no tocante aos seus efeitos, o que quer dizer que no dolo eventual deve haver um grau de intensidade no tocante ao processo de produção do resultado que tenha carga equivalente àquela que se desenvolve com o dolo direto. Isto leva à conclusão de que o dolo eventual deve ter uma base normativa que justifique sua inclusão no âmbito volitivo do sujeito. Assim, na identificação do dolo eventual é preciso não perder de vista esse procedimento de equivalência, o que faz cair por terra, por conseguinte, qualquer teoria que pretenda equacioná-lo exclusivamente nos amplos limites de seu elemento intelectivo.
Portanto, nos limites a que se propõe o presente trabalho, é no elemento volitivo que devemos buscar a definição do dolo eventual.
2.2 O elemento volitivo no dolo eventual
Brandão (2005, p. 137-138), em sua dissertação de mestrado, ao discorrer acerca da diferença entre dolo eventual e culpa consciente, aduz ao cerne da questão, qual seja:
É necessária que a diferenciação do dolo eventual da culpa consciente seja muito mais do que duas ou três palavras formando uma expressão, pois a grandiosidade da discussão não se pode limitar a "chavões". Ademais, essas expressões ainda trazem uma carga de equivocidade, posto que todas asseveram que o agente assume o risco ou conforma-se com a produção do resultado, demonstrando sempre que, de uma forma ou de outra, o agente não se importa com a produção do resultado, o que não é totalmente verdade, podendo existir dolo eventual mesmo quando o agente não aceita a produção do resultado, conforme veremos a seguir. Sendo assim, inegável que o estudo sobre a vontade do agente é que deve ser tomado como fundamental para se aclarar a discussão em tela, devendo as expressões tomar apenas papel secundário na discussão.
Pois bem, tal qual se deve fazer ao diferenciar o dolo eventual da culpa consciente, é no elemento volitivo também que devemos buscar a diferenciação entre o dolo eventual e o dolo direto. Mas, para além dos chavões, no que consiste este elemento volitivo? Brandão (2005, p. 140) afirma que, na verdade, não são dois os elementos que compõe o dolo, mas sim três. Além do elemento volitivo e do intelectivo, ele aponta a “relação causal psíquica entre conduta e resultado” como um terceiro elemento do dolo. E afirma que, o mais das vezes,
grande parte da doutrina nacional apresenta apenas dois elementos do dolo, o intelectivo e o volitivo, desprezando o terceiro elemento por nós apresentado, ou incluindo-o no elemento volitivo, mas essa não nos parece a melhor solução. (BRANDÃO, 2005, p. 140).
Seja um terceiro elemento, ou esteja inserido no elemento volitivo, é na “relação causal psíquica entre conduta e resultado” que encontraremos a distinção entre o dolo eventual e o dolo direto.
Luís Greco faz eco com o acima afirmado, embora se utilizando de outros caminhos, em um artigo curiosamente chamado de Dolo sem vontade, cujo título é auto-explicativo quanto à teoria a qual o mesmo se filia. Segundo o citado autor (2009, p. 886), "há uma ambigüidade fundamental que nos permite questionar as certezas da postura dominante [que vincula o dolo ao elemento volitivo]. Esta ambigüidade diz respeito à palavra vontade".
Pois bem, segue o autor dizendo que o mais das vezes é atribuído à palavra "vontade" dois sentidos diversos, um "psicológico-descritivo" e outro "atributivo-normativo". Em suas palavras,
por vezes, designa-se por vontade um estado mental, algo que ocorre literalmente na cabeça do autor, uma entidade empírica que pertence ao universo psíquico de alguém. (...) Aqui “vontade” é entendida como conceito psicológico-descritivo". (...) É possível usar o termo vontade também num segundo sentido, não mais psicológico-descritivo, e sim atributivo-normativo. Aqui, vontade não é mais uma entidade interna à psique de alguém, mas uma atribuição, isto é, uma forma de interpretar um comportamento, com ampla independência da situação psíquica do autor. (GRECO, 2009, p. 887).
O que o autor quer dizer com isso? Explica Luís Greco (2009, p. 888) que
se imaginamos o caso do estudante que não estuda até a véspera da prova e, ao abrir livro, recebe um telefonema, sai, bebe, não dorme e chega direto da discoteca para fazer a prova. Pode ser que ele lamente com sinceridade a reprovação: “Minha vontade não era isso”, “foi sem querer”. O amigo honesto talvez responda: “não reclame, você quis ser reprovado”. Neste diálogo, o estudante usa o termo vontade em sentido psicológico-descritivo, o amigo em sentido atributivo-normativo.
O autor então se pergunta em que sentido quer a doutrina entender o elemento volitivo. Para isso, se referindo à legislação penal portuguesa, o autor aduz que "o Código Português nem sempre exige a presença de uma vontade em sentido psicológico para que se configure o dolo". O que nos resta óbvio, pois, como comprovado num pequeno exemplo clássico da doutrina alemã[3], não interessa o que se passa na "mente" do indivíduo para que se afira se o mesmo agiu com dolo eventual ou culpa consciente.
Assim, não podemos afirmar, como afirma Ney Moura Teles (2006, p. 157) sobre a diferença entre dolo eventual e culpa consciente, que "a diferença entre condutas com culpa consciente e com dolo eventual [...] situa-se exclusivamente no interior da psique humana, na aceitação, ou não, do resultado, uma atitude puramente interna". Ora, mesmo em relação ao dolo direto é preciso ressaltar que o elemento volitivo deve abranger a ação ou a omissão deliberada do agente. Conforme afirma Brandão (2005, p. 141), “nada adiantaria a vontade de matar alguém se, com a minha ação, não se puder chegar a um determinado resultado”. E, em contra partida, de nada adiantaria não ter vontade de matar alguém se, com a minha ação, eu puder chegar a esse resultado. Ou seja,
deve ficar bastante claro no elemento volitivo que o mesmo não pode ser visto separado da conduta. Melhor dizendo, a vontade de se fazer algo só será elemento do dolo se, e somente se, a partir dela, o agente agir de modo a alterar o mundo visível para que consiga o resultado que deseja ou que deveria conhecer. Tanto que a vontade deve abranger não só o resultado, mas também [...] é necessário que o agente que deseja ou assume o risco de produzir o resultado aja de forma a proporcionar a causação daquele resultado de maneira séria, influindo em seu curso causal, devendo as ações alterar o mundo exterior para que seja reconhecidamente doloso. (BRANDÃO, 2005, p. 143).
No mesmo sentido, fazendo uma curta modificação do famoso caso descrito por Lacmann, imagina Luís Greco (2009, p. 887-888) o seguinte:
Dois fazendeiros que brincam de tiro ao alvo numa feira popular decidem fazer uma aposta. O desafio: que o primeiro deles atire no chapéu da menina que se encontra vinte metros adiante, sem a ferir. O prêmio: todo o patrimônio do perdedor. O primeiro fazendeiro atira e ocorre o duplamente indesejado, a menina é atingida e morre. Neste caso, é óbvio que o atirador não quis, em sentido psicológico-descritivo, o resultado. Era-lhe sumamente indesejado sequer ferir a menina, uma vez que isso significaria a perda de todo o seu patrimônio. Ainda assim, parece que ninguém hesitará em afirmar o dolo, e se essa conclusão é correta, isso significa que tanto o Código, quanto a doutrina dominante conhecem casos de dolo sem vontade em sentido psicológico.
Como se explicará esse "ninguém hesitará em afirmar o dolo" no caso acima descrito? Para essa explicação, precisamos seguir os passos traçados por Brandão (2006, p. 168) e fracionar os elementos da vontade no dolo em dois principais: a representação do resultado e o controle dos meios causais da conduta. Se a representação do resultado está presente tanto no dolo direto, quanto no eventual, precisamos nos voltar ao controle dos meios causais da conduta dirigida a uma finalidade qualquer. É ai que encontraremos a distinção entre o dolo direto e o eventual, posto que no dolo direto há o controle desses meios dirigidos à uma finalidade específica, no qual o resultado somente deixará de ocorrer se ocorrer circunstâncias alheias à vontade do agente; em contra partida, no caso do dolo eventual, o controle dos meios causais entre a conduta e o resultado não é dirigido especificamente para o resultado, e, assim sendo, não é apenas as "circunstâncias alheias à vontade do agente" que impedem que o mesmo aconteça.
Assim sendo, o elemento volitivo que define o dolo eventual não está na "mente" do agente, não é mera disposição emocional. Tratando da distinção entre dolo eventual e culpa consciente, Brandão (2006, p. 169) afirma “que a problemática ora colocada se estabelece na possibilidade ou não de o agente controlar os meios causais da ação por ele praticada”. E, assim, quanto ao elemento volitivo, afirma que “isso não tem relação direta com o resultado, mas, sim, com os meios pelos quais se chegou a tal resultado”. Assim sendo, a busca pelo elemento volitivo que irá caracterizar o dolo eventual não se dará pela investigação do que “se passa na mente” do agente, mas sim pela análise objetiva das circunstâncias em que ocorreu o resultado. Utilizando-se do termo cunhado por Luís Greco, o elemento volitivo do dolo eventual deve ser pensado sob o caráter “atributivo-normativo”, e não “psicológico-descritivo”.
Senão vejamos, ainda sobre a distinção entre dolo eventual e culpa consciente:
Quando se age com culpa consciente, o agente, negligentemente, acredita que possui em suas mãos o efetivo controle dos meios causais, e, por ser assim, pensa, levianamente, que o resultado não se efetivará, pois será capaz de evitá-lo. Se é assim, podemos dizer que a culpa consciente é a leviana crença do agente de que possui o efetivo controle dos meios causais, sendo que o resultado só foi alcançado pelo fato de que o agente não possuía o controle dos meios como acreditava. (BRANDÃO, 2006, p. 169).
Enquanto que, quando o agente atua com dolo eventual,
Não possui o controle dos meios causais, sendo, ainda, sabedor de tal situação, deixando a produção do resultado à mercê da sorte. Ou seja, o agente atua de tal maneira que prevê a produção do resultado e nada faz para impedi-lo, deixando o resultado ao acaso, não tendo, pois, domínio sobre os meios causais. (BRANDÃO, 2006, p. 169).
Um exemplo trazido por Luís Greco, no prefácio ao livro de Puppe (2004), e por nós levemente modificado, é esclarecedor quanto à ideia de que é o controle dos meios causais, e não a “vontade”, o que realmente caracteriza o dolo eventual.
Ao discorrer sobre a distinção que usualmente é feita entre os tipos de dolo (direto, direto de segundo grau e eventual), o autor demonstra que é no controle dos meios causais, e não na “vontade”, que se torna possível imputar comportamentos tão diversos a título de dolo. Para isso, Luís Greco imagina a situação em que um agente, desejando a morte de certa pessoa, instala uma bomba no carro da vítima. Tal bomba é programada para explodir enquanto o carro trafega em direção à empresa onde a mesma trabalha, sabendo o agente que a vítima se utiliza de um motorista e sabendo, ainda, que o veículo circulará por ruas onde o trânsito de pedestres é intenso. O agente sabe que o motorista inevitavelmente será atingido pela explosão, tal qual a vítima, cuja instalação da bomba se destina. Prevê também a possibilidade de que algum transeunte seja atingido pela explosão. Nada tem contra o motorista e, sinceramente, não deseja a morte do mesmo, tampouco deseja a morte ou lesões de possíveis transeuntes que, infortunadamente, estejam nas proximidades da explosão. Porém, consegue êxito em seu intento e mata a vítima, a quem se destinava seu animus necandi; o motorista, cuja morte de maneira alguma desejava; e, ainda, fere dois transeuntes aleatórios. Ninguém negará a atribuição ao agente de tais resultados a título de dolo: direto, no caso da morte da vítima almejada, direto de segundo grau, no caso do motorista, e, por fim, eventual, quanto às lesões sofridas pelos dois transeuntes.
Quanto ao dolo direto, no caso acima, não há maiores celeumas se buscarmos sua fundamentação através da análise do elemento volitivo do dolo em sua forma psicológica (dolo como vontade). Mas e quanto ao dolo direto de segundo grau e o dolo eventual? A doutrina diz que há dolo direto de segundo grau, neste caso, pelo fato do resultado, ainda que não desejado, ser "conseqüência necessária do meio escolhido" (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 498) para se alcançar o resultado almejado. Como notado, apesar de instituir o dolo como a junção do elemento volitivo com o intelectivo, a grande parte da doutrina não se utiliza do critério volitivo (em sua acepção psicológica) para conceituar o dolo direto de segundo grau. Nas palavras de Puppe (2004, p. 65), a teoria que prevê a vontade no dolo como elemento psicológico puro "pensa poder extrair do dolo direto de segundo grau a conseqüência de que também resultados não almejados são resultados queridos, em sentido amplo". E, por fim, quanto aos transeuntes atingidos pela explosão, o dolo eventual se caracterizaria pelo fato do resultado ter sido previsto pelo agente e, ainda que previsto e altamente provável de ocorrer, não impediu o agente de realizar seu intento.
A imputação a título de dolo dos resultados acima descritos se coaduna com o que ensina grande parte da doutrina brasileira, disso não há dúvidas. As dúvidas existem quanto à fundamentação teórica que embasaria essas imputações. É por isso que encarar o problema da distinção entre dolo eventual e culpa consciente pelo viés do controle dos meios causais acarreta muitas vantagens, posto que não se procurará, diante de um caso concreto, o que se passava na "mente" do agente no momento da realização da ação, tanto pela impossibilidade de se penetrar na "mente" de outrem, quanto pela inutilidade de tal pensamento.
Exemplo maior da dispensabilidade da volição, neste sentido, são encontradas nos casos de atipicidade por ausência de nexo causal, o que, em outras palavras, podemos afirmar ser sinônimo de ausência absoluta de controle dos meios causais. Exemplificamos: ainda que presente o animus necandi do agente que, para realizar seu intento, compra passagem aérea regular para dar de presente à sua vítima, não poderá ele ser responsabilizado pela morte da mesma em caso de desastre aéreo que, por acaso, tenha ocorrido justamente com o avião no qual a infortunada vítima viajou. Ora! Ainda que deseje ardentemente a morte da vítima, e tenha comprado a passagem aérea que levou a vítima à morte, o agente não possui controle dos meios causais que culminaram no desastre. Foi o acaso, uma coincidência, que uniu o "dolo" do agente e o resultado por ele pretendido.
De outra feita, no exemplo dado acima referente à distinção entre dolo direto, dolo direto de segundo grau e dolo eventual, percebemos que, ainda que o agente não tenha agido com dolo (não tenha "querido") todos os resultados obtidos por sua conduta, era ele, ao agir, detentor do controle dos meios causais e, por isso, deverá responder pelos resultados a título de dolo. Quanto à morte da vítima e do motorista, ambos se encontravam no mesmo panorama causal, do qual o agente tinha completo domínio, devendo ser tais resultados imputados a título de dolo. Já quanto aos transeuntes atingidos pela explosão, notamos que o agente detinha parcialmente o controle dos meios causais, posto que possuía completo controle quanto à bomba, porém não possuía controle sobre os possíveis transeuntes que, conforme o mesmo previa, podiam ser atingidos pela explosão. Contou com o acaso para que os transeuntes que estavam no entorno do trajeto do veículo não fossem atingidos quando da explosão da bomba, que não hesitou detonar. Por isso o resultado quanto aos transeuntes atingidos deve ser imputado a título de dolo eventual.
Dessa feita, podemos resumir a distinção entre dolo direto e dolo eventual da seguinte maneira: no dolo direto o agente detém o controle dos meios causais no momento de sua conduta, conduta essa que é dirigida (conforme explicado no capítulo 1) à obtenção de um determinado resultado penalmente lesivo a um bem juridicamente tutelado; já em relação ao dolo eventual, o agente não possui o controle dos meios causais no momento da sua conduta, e, além disso, não dirige sua conduta finalisticamente para a obtenção de um determinado resultado penalmente lesivo a um bem juridicamente tutelado, o agente apenas atua prevendo como possível que tal resultado possa advir de sua conduta e, sem nada fazer para impedir a produção do resultado, age, deixando ao acaso a produção, ou não, do resultado.
Tal distinção, conforme veremos no próximo capítulo, é de crucial importância para compreendermos a questão acerca da possibilidade, ou impossibilidade, da existência de crimes tentados cuja conduta do agente se deu com dolo eventual.
3. SOBRE A (IN)COMPATIBILIDADE ENTRE A TENTATIVA E O DOLO EVENTUAL
Vencidas as considerações acerta do instituto da tentativa e sua estrutura, além do dolo e, mais especificamente, do dolo eventual conforme o entende a teoria finalista, trataremos agora sobre a compatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual. Afinal, é possível a imputação de um crime tentado cujo elemento subjetivo do agente, no momento de sua conduta, seja o dolo eventual?
A doutrina nacional, assim como a jurisprudência, diverge sobre tal possibilidade, utilizando-se de argumentos diversos. Não é à toa que Greco (2008, p. 264) chega a afirmar que “o raciocínio não flui de forma tranquila” quando o assunto é a possibilidade de tentativa em dolo eventual. Para iniciarmos o presente capítulo, abordaremos os argumentos utilizados pela doutrina, tanto a favor quanto contra a compatibilidade entre os dois institutos, para somente após tecermos nossos comentários. Primeiramente, vejamos os argumentos daqueles que admitem a compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa.
3.1 Argumentos a favor da compatibilidade
De início, advogando pela possibilidade de convivência entre os dois institutos, temos Zaffaroni (2001, p. 700-701), renomado penalista argentino e ministro da Suprema Corte de seu país, que conjuga a tentativa com o dolo eventual nos seguintes termos:
A tentativa requer sempre o dolo, isto é, o querer do resultado. Não há razão alguma para excluir o dolo eventual da tentativa: há tentativa de homicídio quando se joga uma granada de mão sobre alguém e não se consegue matá-lo, mas, também, quando se lança uma granada de mão contra um prédio, sem preocupação com a possível morte do morador, que dorme próximo à janela. Há tentativa de fraude quando se usa um ardil, mas ela também ocorre quando se usa uma publicidade, que pode ter esta mesma eficácia em relação a um certo número de pessoas, não importando que elas efetivamente deixem enganar.
Entendemos que apenas equiparar abstratamente o dolo direto ao eventual, com uma afirmação peremptória, e após se utilizar de exemplos para fundamentar sua posição teórica, nada explica. Ainda mais quando, um parágrafo após, afirma que "o dolo da tentativa é o mesmo dolo do delito consumado, isto é, o querer do resultado morte é o mesmo, tenha a bala causado a morte ou não" (ZAFFARONI, 2001, p. 701). Ora! O mesmo autor, ao discorrer acerca do dolo eventual, diz com todas as letras que
no dolo direto, o resultado é querido diretamente (como fim ou como consequência necessária do meio escolhido), e esta forma de querer é diferente do querer um resultado concomitante quando o aceitamos como possibilidade: este é o dolo eventual cujo embasamento legal acha-se na segunda parte do art. 18, I, do CP [...] O dolo eventual, conceituado em termos correntes, é a conduta daquele que diz a si mesmo "que aguente", "que se incomode", "se acontecer, azar", "não me importo". Observe-se que aqui não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade. (ZAFFARONI, 2001, p. 498).
Como conciliar a necessidade do "querer o resultado", tido por Zaffaroni como o necessário para a tentativa, e o fato de que no dolo eventual o agente não quer o resultado, mas, ao contrário, aceita como possibilidade a ocorrência do resultado? Como se tenta realizar algo para o qual a conduta não se dirige diretamente? Nucci que, conforme veremos a seguir, também advoga pela ideia de ser possível a convivência entre os dois institutos, tenta resolver a questão da seguinte maneira:
Há, em nosso entender, zonas cinzentas do querer, totalmente compatíveis com a previsão legal do dolo eventual. Em outras palavras, é perfeitamente viável a atuação do agente que, buscando determinado resultado, admite como possível a ocorrência de outro, que, embora não desejado diretamente, é assimilado, acolhido, sufragado, ainda que camufladamente. (NUCCI, 2010, p. 184).
Nucci, argumentando sobre a possibilidade de coexistência entre tentativa e dolo eventual em uma mesma conduta, cita até mesmo Nelson Hungria, aduzindo que
é perfeitamente admissível a coexistência da tentativa com o dolo eventual, embora seja de difícil comprovação no caso concreto. É a precisa lição de Nelson Hungria: 'Se o agente aquiesce no advento do resultado específico do crime, previsto como possível, é claro que este entra na órbita de sua volição: logo, se, por circunstâncias fortuitas, tal resultado não ocorre, é inefável que o agente deve responder por tentativa'. E arremata, quanto à dificuldade probatória: 'a dificuldade de prova não pode influir na conceituação da tentativa'. (NUCCI, 2010, p. 182).
Prossegue o autor afirmando que também Marques (Tratado de direito penal, v.II, p. 384) e Monteiro de Barros (Direito penal - Parte Geral, p. 238) compartilham da mesma opinião (NUCCI, 2010, p. 182). Por fim, recorre à Welzel, afirmando que o citado autor alemão afirmava que
na tentativa o tipo objetivo não está completo. Ao contrário, o tipo subjetivo deve dar-se integralmente, e por certo do mesmo modo como tem que aparecer no delito consumado. Se, por isso, para a consumação é suficiente o dolo eventual, então também é suficiente para a tentativa. (NUCCI, 2010, p. 182).
Em artigo sobre o tema, Leczinieski e Cidade (2012) afirmam que também Damásio de Jesus, Bitencourt e Munõz Conde admitem a possibilidade de tentativa em dolo eventual, sendo que Bitencourt e Conde "fazem referência à teoria do consentimento" para fundamentar tal posição e, com isso, afirmam que consentir na ocorrência de um resultado é o mesmo que querê-lo, sendo, portanto, perfeitamente possível a compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa. Citam ainda Monteiro de Barros (2008, p. 205), cujo entendimento é de que
admite-se também a tentativa constituída de dolo eventual, quando o agente realiza a conduta assumindo o risco da consumação do crime, que não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade. Desde que o nosso Código equiparou o dolo direto e o dolo eventual é incontroverso esse raciocínio.
Tal entendimento, inclusive, é ilustrado por um julgado do STJ, cuja ementa passamos a transcrever:
PENAL. PROCESSUAL. INEPCIA DA DENUNCIA. AUSENCIA DE SUPORTE PROBATORIO PARA A AÇÃO PENAL. CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL. POSSIBILIDADE DA FORMA TENTADA. "HABEAS CORPUS". RECURSO. [...] 3. ADMISSIVEL A FORMA TENTADA DO CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL, JA QUE PLENAMENTE EQUIPARADO AO DOLO DIRETO; INEGAVEL QUE ARRISCAR-SE CONSCIENTEMENTE A PRODUZIR UM EVENTO EQUIVALE TANTO QUANTO QUERE-LO. 4. RECURSO CONHECIDO MAS NÃO PROVIDO. (RHC 6.797/RJ, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 16/12/1997, DJ 16/02/1998, p. 114).
Conforme relatório do Acórdão, foram estes os fatos que ensejaram o Habeas Corpus apreciado:
Dia de jogo no Maracanã; Flamengo e Vasco da Gama, um dos mais acirrados clássicos cariocas, enfrentavam-se mais uma vez. Fora do estádio, a briga entre as torcidas era comum naquelas circunstâncias.Jefferson Rodrigues de Oliveira, à época com 22 (vinte e dois) anos, fanático torcedor do time do Vasco, doi denunciado sob a acusação de ter tentado matar um torcedor do outro time, o Flamengo. Narra a denúncia que Jefferson, assumindo o risco de matar alguém, disparou tirous em direção a uma multidão, toda formada de torcedores de seu time rival. Não conseguiu matar, mas feriu. Entendeu o MP Estadual que o "animus" do agente era mesmo o de matar, e por isso pediu sua condenação por tentativa de homicídio. Sua advogado pediu, em "habeas corpus", o trancamento da ação penal sob 03 (três) argumentos: [...] 3) incompatibilidade entre o crime cometido com dolo eventual e a tentativa. (RHC 6.797/RJ, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 16/12/1997, DJ 16/02/1998, p. 114).
Insurgiu-se o paciente contra a decisão que apreciou o Habeas Corpus impetrado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que assim se pronunciou sobre a possibilidade de coexistência entre tentativa e dolo eventual, conforme citado no Acórdão:
HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL - INADIMISSIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA - INOCORRÊNCIA. DOLO EVENTUAL - COEXISTÊNCIA COM A TENTATIVA - AUSÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE. [...] O elemento subjetivo que integra o dolo eventual é a anuência do agente ao resultado que possa ter sua ação, seja ele provável ou não, bastando que seja possível. Daí, assume o agente o risco de produzir esse possível resultado, que pode ser a incidência numa infração penal consumada ou tentada, inexistindo qualquer incompatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa. Não havendo qualquer coação ilegal a ser reparada, denega-se a ordem. (RHC 6.797/RJ, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 16/12/1997, DJ 16/02/1998, p. 114).
Fundamentando a posição de primeira instância acima transcrita, o Ministro Edson Vidigial apresenta uma interessante análise da teoria do dolo. Aduz o Ministro:
Duas correntes se dividem a respeito, embora quase escassas. A primeira, aqui invocada pela defesa, considera tal incompatibilidade baseada especificamente na norma que prevê a figura da tentativa. Segundo a mesma o crime é tentado quando, iniciada a execução, o delito não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Logo, deve haver o elemento subjetivo "vontade', e o crime cometido apenas com dolo eventual não possuí, dentre os seus elementos formadores, a vontade de praticar a conduta delituosa, mas apenas a assunção do risco. Não é esse o meu entendimento. (RHC 6.797/RJ, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 16/12/1997, DJ 16/02/1998, p. 114).
E continua, fundamentando sua posição quanto à possibilidade de conjugação entre o dolo eventual e a tentativa:
A conjugação da consciência e da vontade representa o cerne do dolo, e esses dois momentos definidores não são estranhos ao dolo eventual. Por ser dolo "lato sensu", deve exigir os dois momentos, não podendo ser conceituado com o desprezo de um deles, como fazem os adeptos da Teoria da Probabilidade, que se desinteressam, por completo, do momento volitivo. Assim, não basta para que haja dolo eventual, que o agente considere sumamente provável que, mediante seu comparecimento, se realize o tipo, nem que atue consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado, e nem mesmo que tome a sério o perigo de produzir possível consequência acessória. Daí a posição pela qual me filio, a dos defensores da Teoria do Consentimento, que se preocupa em identificar uma manifestação da vontade do agente em relação ao resultado. Tolerar o resultado, consentir em sua provocação, assumir o risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar o momento de aprovar o resultado alcançado, enfim, o de querê-lo. [...] Levado por esse entendimento, é de se reconhecer a possibilidade da tentativa nos crimes cometidos com dolo eventual. Se é possível sua consumação, e seu agente responderá como se fosse dolo direto, mas ainda se aparenta possível sua tentativa, pois dentro do "iter criminis", essa se apresenta em fase anterior à própria consumação, como também acontece nos crimes cometidos com dolo direto. (RHC 6.797/RJ, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 16/12/1997, DJ 16/02/1998, p. 114).
Tal posição do STJ, esposada acima, encontra respaldo na doutrina penal. Rogério Greco, tratando sobre o tema, cita alguns doutrinadores que também advogam pela compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa sob os mesmos aspectos. De início, aduz à doutrina espanhola, em especial aos autores Muñoz Conde e José Cerezo Mir. Quanto a Muñoz Conde, informa que o mesmo acreditava que
na medida em que o tipo do respectivo delito admita a comissão doloso eventual, (...), caberá também a tentativa com esta forma de imputação subjetiva, ainda que o normal na tentativa seja o dolo direto, pelo menos de segundo grau. (GRECO, 2008, p. 264).
Quanto a Cerezo Mir, aduz Greco que “sem enfrentar o tema com profundidade, afirma que ‘a tentativa é compatível, segundo a opinião dominante, com o dolo eventual’”. Sendo que “no Brasil, Frederico Marques também entende como perfeitamente admissível a tentativa no dolo eventual” (GRECO, 2008, p. 264).
Como se percebe dessa brevíssima enumeração de argumentos, o que existe em relação aos mesmos é uma mera presunção de compatibilidade, haja vista que não há uma argumentação sólida que embase essa posição teórica. Há duas vertentes de argumentação. Em uma delas, os autores simplesmente afirmam que se o dolo eventual é equiparado, para todos os efeitos, ao dolo direto, e se no dolo direto é cabível a imputação por tentativa, então para o dolo eventual também é cabível a tentativa. Na outra, afirmam que pela teoria do consentimento (ou assunção), o assumir equivale-se a querer o resultado e, assim sendo, se cabe tentativa quando o elemento subjetivo da conduta é o “querer”, caberá igualmente quando o elemento subjetivo for o “assumir”.
Agora trataremos dos argumentos trazidos por aqueles que entendem não ser possível tal compatibilidade.
3.2 Argumentos contra a compatibilidade e nossa posição
De início, sucintamente, Busto Ramirez e Hormazábal Malarée, citados por Greco, não admitem tal compatibilidade, argumentando não ser possível “a tentativa com dolo eventual, pois (...) o dolo eventual tem a estrutura de uma imprudência a que, por razões político-criminais, se aplica a pena do delito doloso” (RAMIREZ; MALAREÉ apud GRECO, 2008, p. 264). Greco complementa tal raciocínio, utilizando para isso da teoria finalista, aduzindo ao fato de que o próprio texto legal do Código Penal, em seu art. 14, II, vinculou a tentativa à conduta finalisticamente dirigida para a produção de um resultado. Em suas palavras:
a própria definição legal do conceito de tentativa nos impede de reconhecê-la nos casos em que o agente atua com dolo eventual. Quando o Código Penal, em seu art. 14, II, diz ser o crime tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, nos está a induzir, mediante a palavra vontade, que a tentativa somente será admissível quando a conduta do agente for finalisticamente e diretamente dirigida à produção de um resultado, e não nas hipóteses em que somente assuma o risco de produzi-lo, nos termos propostos pela teoria do assentimento. O art. 14, II, do Código Penal adotou, portanto, para fins de reconhecimento do dolo, tão somente, a teoria da vontade. (GRECO, 2008, p. 265).
No mesmo teor, ainda que tratando do contexto português, é interessante o afirmado por Maia Gonçalves, conforme nos explica Nucci (2010, p. 182), para o autor português
não há tentativa no contexto do dolo eventual, porque o art. 22 do Código Penal português expressamente se refere à prática de atos de execução de um crime que decidiu cometer, logo, não pode o agente ter assumido o risco.
Também partindo dessa premissa de que a tentativa exige uma vontade finalisticamente dirigida a alcançar determinado fim, mas desdobrando-a em dois pontos fundamentais, temos o escólio de Faria Costa, também português. De início afirma o autor que a tentativa, em seu âmago, exige uma “irrecusável e inequívoca decisão de querer praticar um crime” (COSTA, 1996, p. 102), sendo que, por esse motivo, não existe possibilidade lógica em se ter um crime tentado através de uma conduta praticada em sede de dolo eventual, posto que o assumir o resultado é deveras diferente de se querê-lo.
Nucci aduz também que para a existência de um crime tentado, é necessário “a prática de atos idôneos para atingir o resultado – fator de destaque para o ingresso na fase executória do crime” (NUCCI, 2010, p. 183), sendo que, segundo Costa (1996, p. 103),
o certo é que se o agente representa o resultado unicamente de modo eventual é manifesto que, pelo menos para o infrator, os atos que levariam ao fim desejado não podem ser tido como idôneos. Pois, por mais plasticidade que se atribua ao conceito de idoneidade, este não se compadece com a dúvida que a representação como possível acarreta. Contudo, argumentar-se-á: estamos no domínio da pura objetividade, não tendo, por conseguinte, aqui, cabimento o apelo a qualquer elemento do dolo, mesmo que da zona da pura cognoscibilidade.
Além desses argumentos, Mirabete enfatiza o fato de que ainda que se admita hipoteticamente a compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa, há casos específicos em que tal compatibilidade mostra-se inviável. Diz o autor que
há hipóteses evidentes de impossibilidade da tentativa com dolo eventual nos crimes de homicídio e de lesões, pois quem põe em perigo a integridade corporal de alguém voluntariamente, sem desejar causar a lesão, pratica fato típico especial (art. 132); quem põe em risco a vida de alguém, causando-lhe lesão e não querendo sua morte, pratica o crime de lesão corporal de natureza grave (art. 129, §1º, II). Deve-se entender que, diante do texto legal, se punirá pelo crime menos grave quando o agente assume o risco de um resultado de lesão ou morte, respectivamente, que ao final não vem a ocorrer. (MIRABETE, 2008, p. 154).
Pois bem, o art. 14, II, do nosso Código Penal é enfático ao vincular a tentativa à vontade do agente. Segundo esse dispositivo legal, o crime tentado somente irá se caracterizar quando, por circunstâncias alheias à vontade do agente, o crime não se consumar. Ora, ao fazer referência à vontade, cremos que o texto legal quer se referir à intenção finalisticamente dirigida, e não ao elemento subjetivo propriamente dito presente no dolo, que pode ser a vontade finalisticamente dirigida (dolo direto) ou a anuência (dolo eventual). No dolo eventual não existe vontade de produzir o resultado, a conduta do agente não se volta finalisticamente para a produção do resultado, se fosse assim estaríamos falando de dolo direto, não de eventual. Assim sendo, não há a elementar “vontade”, prevista no art. 14, II, apta a caracterizar a tentativa. Leczinieski e Cidade (2012) possuem entendimento semelhante, dizem os autores:
Entendemos pela incompatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual, uma vez que, para a configuração do crime tentado, é necessária a vontade do agente em produzir o resultado lesivo, o qual não veio a ocorrer por circunstâncias alheias a essa vontade. Tal elemento volitivo, ou seja, o querer produzir o fato descrito no tipo penal, não se encontra presente no dolo eventual, pois neste, como visto acima, há apenas a anuência de que determinado resultado possa ocorrer, isto é, o agente prevê o resultado como possível ou provável e não se importa com a sua ocorrência, aceitando-a. Não há, assim, no dolo eventual, a real vontade de produzir o resultado, o que o torna incompatível com o conceito dado pelo nosso Código Penal à tentativa.
Ademais, conforme visto em nosso capítulo acerca da tentativa, para que o crime tentado possa ser caracterizado é necessário que o agente ingresse na execução do mesmo. O próprio art. 14, II, do Código Penal traz como elementar “iniciada a execução”, o que nos remete, por óbvio, ao iter criminis. Resta saber como é possível que o agente cogite, prepare e depois execute uma anuência a algum resultado danoso.
Portanto, para falarmos em execução é necessário que a vontade do agente seja externada, com o fim de produzir o resultado, sendo que, ainda que externada através da conduta, o resultado não ocorra, por circunstâncias alheias à vontade do agente. No caso do dolo eventual, como será possível aferir o momento em que se inicia a execução da conduta, já que não existe uma vontade que dirige a conduta para um determinado fim? No caso do dolo direto é relativamente fácil encontrarmos o momento em que se inicia a execução, pois será no momento em que a conduta do agente se dirigir para obter o resultado almejado. Mas no caso do dolo eventual não há essa vontade dirigida a um fim, vontade essa externada através da conduta, assim sendo, de que forma o agente ingressaria, em dolo eventual, na execução de um crime?
O dolo eventual, conforme explanamos no capítulo anterior, nada mais é do que um delito de imprudência que, por motivos político-criminais, é punido como se doloso fosse. No dolo eventual, portanto, ocorre a mesma impossibilidade de iter criminis existente nos delitos culposos, posto que não é possível se cogitar, preparar e executar um crime de imprudência. Se o agente cogitasse, preparasse e executasse um delito imprudente, estaria, isso sim, agindo com dolo direto, utilizando de sua provada imprudência como “arma” para o cometimento do delito! Por isso, também, mostra-se um verdadeiro absurdo lógico imaginar-se um iter criminis para o dolo eventual, supondo que o agente iniciou a execução do delito que só não veio a se consumar por circunstâncias alheias.
Há ainda uma importante consideração trazida por Leczinieski e Cidade (2012) em seu artigo. Os autores lembram que
o instituto da tentativa sempre comporta a hipótese de desistência voluntária por parte do agente, em que, desistindo de continuar na ação criminosa, somente responderá pelos atos já praticados. Não há possibilidade, assim, de alguém desistir de assumir o risco, pois, uma vez assumido, impossível desistir.
Os autores se referem ao disposto no art. 15 do Código Penal, que dispõe sobre o “agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução (...) só responde pelos atos já praticados”. O disposto neste artigo é mais uma demonstração de que o termo “vontade” presente no art. 14, II, se refere à vontade do dolo direto, jamais à assunção presente no dolo eventual. Como muito bem observam Leczinieski e Cidade, de que forma se encaixaria o instituto da desistência voluntaria e a tentativa em dolo eventual? Como se desiste de se assumir o risco? Fica claro que a tentativa pressupõe uma vontade finalisticamente dirigida a um fim, tanto é assim que o próprio Código Penal prevê que se o agente muda sua vontade durante a execução, desviando sua conduta para a não realização do resultado, não respondera pela tentativa.
Como se percebe pelo o que foi aqui argumentado, a análise técnica dos institutos da tentativa e do dolo nos leva a concluir pela impossibilidade de uma conduta cujo elemento subjetivo seja o dolo eventual possa caracterizar um crime tentado. Não por acaso que os argumentos a favor da compatibilidade entre esses institutos se resumem à afirmação de que o dolo eventual foi equiparado ao dolo direto, ou que o termo “vontade” presente no art. 14, II, do Código Penal engloba a anuência. São argumentos que não respondem a questão levando em conta os aspectos teóricos da ciência penal, tampouco os aspectos práticos. Dizer que o dolo eventual é equiparado ao dolo direto, e que por isso cabe tentativa em dolo eventual, não elimina as diversas contradições e absurdidades lógicas de se imaginar um iter criminis em um delito de imprudência. Tampouco harmoniza os dois institutos perante a sistemática penal de nosso Código. Por isso, julgamos ser mais acertada a corrente que advoga a incompatibilidade entre os institutos, sendo impossível a existência de um crime tentado cujo elemento subjetivo do agente no momento de sua conduta tenha sido o dolo eventual.
Há um interessante julgado, de um crime que ganhou repercussão nacional, que aborda os pontos por nós aduzidos no presente trabalho, ilustrando de forma prática a importância de se abordar o tema com a precisão científica que ele merece. Trata-se do caso de Alex Siwek, preso em flagrante pelo atropelamento do ciclista Davi Santos Souza, que teve o braço arrancado ao ser atingindo enquanto circulava na ciclofaixa da Avenida Paulista, em 10 de março de 2013, na cidade de São Paulo.
O Acórdão em questão foi fruto de um Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público contra a decisão na qual o Juiz de Direito da 1ª Vara do Júri da Comarca de São Paulo entendeu ser o Tribunal do Júri incompetente para apreciar e julgar o caso ao argumento de ser inadmissível o crime de tentativa de homicídio sob a forma de dolo eventual, determinando o retorno dos autos ao Departamento de Inquéritos Policiais DIPO, a fim de que fossem redistribuídos a uma das Varas Criminais da Capital. Conforme relatório do desembargador relator:
No caso vertente, ALEX KOZLOFF SIWEK, ora recorrido, foi preso em flagrante delito, porque, no dia 10 de março de 2013, por volta das 05:45 horas, na Avenida Paulista, nesta Cidade e Comarca da Capital, conduzindo o automóvel marca Honda, modelo Fit, placas DAS-1543/SP, supostamente em estado de embriaguez e ziguezagueando pela pista, adentrou na faixa esquerda da aludida via pública, que estava cercada por cones e reservada aos ciclistas, onde atropelou a vítima Davi Santos Souza, ocasionando-lhe ferimentos. Consta, ainda, que logo após o acidente, o indiciado empreendeu fuga do local sem prestar imediato socorro à vítima e que, momentos depois, dispensou o braço dela em um córrego situado na Avenida Ricardo Jafet. Manifestando-se sobre a regularidade formal da prisão, o Ministério Público afirmou que se tratava do crime de tentativa de homicídio, requerendo, assim, a conversão da prisão em flagrante em preventiva, com fundamento no artigo 313, inciso I, do Código de Processo Penal (fls. 154/156). (Recurso em Sentido Estrito nº 0832268-64.2013.8.26.0052, Décima Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Breno Guimarães, Julgado em 01/08/2013).
Em seguida, o Juiz de Direito da 1ª Vara do Júri da Comarca de São Paulo prolatou sua decisão pela incompetência de juízo, transcrita no Acórdão e que passamos a citar:
No caso em tela, já de pronto se verifica que o Tribunal do Júri não é competente para apreciar e julgar o caso. Com efeito, a Autoridade Policial, assim como a Promotora de Justiça que se manifestou nos autos, embora não façam menção expressa, deixam claro que o caso não é de dolo direto, ou seja, que o indiciado tenha, deliberadamente, atropelado a vítima com seu veículo, pretendendo matá-la. Em sua manifestação de fls. 60 a Promotora de Justiça consigna: “Segundo se depreende dos autos, ALEX conduzia seu veículo Honda Fit, de forma tresloucada, sob a influência de álcool, em alta velocidade e fazendo ziguezague pela pista, inclusive, conduzindo pela pista destinada à ciclovia, momento em que atropelou a vítima Davi Santos Souza, que se dirigia ao trabalho em sua bicicleta. Com o impacto do veículo a vítima teve o braço decepado. ALEX, por sua vez, sem demonstrar o mínimo sentimento de piedade, compaixão e humanidade, evadiu-se do local, sem prestar socorro, deixando a vítima largada na via pública”. Considerasse o crime doloso, na modalidade do dolo direto, obviamente não teria utilizado as expressões que utilizou, a princípio características da culpa e não do dolo direto. Muito menos tanto a Autoridade Policial quanto a Promotora de Justiça, falariam em omissão de socorro do Código de Trânsito Brasileiro, pois, esta, à evidência é reservada para os casos de acidente de trânsito com culpa. Quem age com dolo direto, ou seja, quer o resultado, não é obrigado a prestar socorro, ou seja, não pode ser punido por não ter prestado socorro para a vítima. Portanto a única conclusão a que se pode chegar é que, para a Autoridade Policial e para a Promotora de Justiça o indiciado agiu com dolo eventual, ou seja, assumindo o risco de produzir um resultado. É justamente por isso que a competência do Tribunal do Júri deve ser de plano afastada, pois, se o caso fosse de homicídio consumado, seria perfeitamente possível o dolo eventual. Mas, o dolo eventual é incompatível com a tentativa. [...] Se não há resultado morte, como no caso em exame, impossível falar em homicídio tentado pelo dolo eventual. O resultado foi lesão corporal e se o indiciado agiu com dolo eventual, por lesão corporal consumada ou outro delito cuja descrição e capitulação caberá ao Ministério Público, ele deve responder. E como o Tribunal do Júri é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, bem como porque não se pode admitir o dolo eventual na forma tentada, os autos devem ser, imediatamente, remetidos ao DIPO para redistribuição a uma das Varas Criminais da Comarca, cujo juiz singular é competente para apreciar e julgar o caso. (Recurso em Sentido Estrito nº 0832268-64.2013.8.26.0052, Décima Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Breno Guimarães, Julgado em 01/08/2013).
Concordando com a posição esposada pelo juízo de primeira estância, afirma o desembargador que se filia aos que acreditam existir uma impossibilidade lógica de se admitir a compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa, argumentando que
para a configuração do crime tentado, é necessária a vontade do agente em produzir o resultado lesivo, que não se consuma por circunstâncias alheias àquela mesma vontade (art. 14, inc. II, do CP). Tal elemento volitivo, ou seja, o querer produzir o fato descrito no tipo penal, não se encontra presente no dolo eventual, pois nele há apenas a anuência de que determinado resultado possa ocorrer. Em outros termos, no dolo eventual o agente prevê o resultado como possível ou provável, mas não se importa com a sua ocorrência, aceitando-o. Não há, portanto, a real vontade de produzir o resultado, o que o torna incompatível com o conceito de tentativa insculpido no Código Penal. Em linguagem simples e direta, não há nenhuma lógica em tentar fazer algo que não se quer com consciência e vontade. (Recurso em Sentido Estrito nº 0832268-64.2013.8.26.0052, Décima Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Breno Guimarães, Julgado em 01/08/2013).
E, à luz desse entendimento, analisa o caso em tela da seguinte maneira:
Com renovada vênia, salta aos olhos que a peça inaugural veicula uma capitulação que extrapola o bom senso jurídico e a razoabilidade, porquanto nega vigência ao Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), ao indicar uma classificação jurídica dos fatos diversa e mais gravosa do que o caso sugere, fazendo, com isso, tábula rasa acerca da dificílima diferenciação entre o dolo eventual (onde o risco é assumido como possível) e a culpa consciente (onde o risco é desconsiderado), como se tal questão fosse meramente opinativa e não demandasse extrema ponderação e cautela. Ora, cediço que em tema de acidentes de trânsito, como inexoravelmente o caso deve ser tratado, a regra é a ocorrência de culpa (negligência, imprudência ou imperícia), sendo o dolo (direto ou eventual) aceito em situações excepcionalíssimas. Logo, não se pode transformar, sob nenhum pretexto, a legislação especial em simples apêndice do Código Penal, ou seja, não se pode tomar a exceção como regra, sob pena de ofensa ao princípio da especialidade ou até mesmo ao princípio da legalidade. Decerto, a representante do Ministério Público se valeu das circunstâncias do caso concreto para, em sua concepção, supor que o increpado, com sua irresponsável conduta, para dizer o mínimo, assumiu o risco de produzir o resultado morte, já que o dolo eventual, em casos desse jaez, é impossível de ser extraído da mente do autor (a menos que ele confesse). Todavia, em uma leitura perfunctória dos depoimentos colhidos no inquérito policial, constata-se uma nociva carga de subjetividade em alguns deles, especialmente acerca das circunstâncias fundamentais do fato delituoso, tais como velocidade excessiva, direção perigosa e sob a influência de álcool por parte do condutor do veículo, o que torna tais elementos de convicção inseguros e controversos para se concluir, com diminuta margem de erro, pela existência do dolo eventual no limiar do processo. (Recurso em Sentido Estrito nº 0832268-64.2013.8.26.0052, Décima Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relator: Breno Guimarães, Julgado em 01/08/2013).
Tal argumentação faz eco com o afirmado por Lopes Junior (2013, p. 426-427), quando o mesmo alerta-nos para o fato de que
muitas vezes, fazem verdadeiras manobras de ilusionismo jurídico para, por exemplo, denunciar por homicídio doloso (dolo eventual), qualificado (recurso que impossibilitou a defesa da vítima?!), o condutor de um automóvel que dirigia em velocidade excessiva ou estava embriagado, por exemplo. Elementar que estamos diante de um crime grave, mas jamais nem por mágica acusatória podemos transformar um homicídio culposo (culpa grave, consciente até se quiserem) em doloso e qualificado! Esse absurdo serve para quê(m)? Para criar o rótulo de crime hediondo, com toda a carga que isso representa. Sem falar no que representa o deslocamento de competência para o Tribunal do Júri, com o imenso risco que representa e constitui essa forma de administração da (in)justiça.
Em que pese o entendimento do STJ, abordados no tópico anterior, contrários às argumentações aqui elencadas, podemos notar que a jurisprudência tem se tornado sensível à argumentação que inviabiliza a coexistência entre os institutos da tentativa e do dolo eventual. Além do julgado acima comentado, podemos citar, ainda, à guisa de exemplo, as seguintes ementas de decisões que abordaram o tema:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DELITOS COMETIDOS NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. HOMICÍDIO TENTADO COM DOLO EVENTUAL E EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO CONTRA A VIDA PARA OUTRO DE COMPETÊNCIA DO JUIZ SINGULAR. IMPOSSIBILIDADE LÓGICA DE ADMITIR-SE A TENTATIVA NO DOLO EVENTUAL. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. MANUTENÇÃO DA DECISÃO DE 1º GRAU. Recurso improvido. (Recurso em Sentido Estrito nº 70034503961, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 31/03/2010).
E ainda:
PRONÚNCIA. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. DELITO DE CIRCULAÇÃO NO TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. PROVA. A submissão de quem se envolve em delito de circulação de veículos no trânsito ao julgamento popular, através de imputação de dolo eventual, exige a presença de circunstâncias excepcionais, bem determinadas, visto que a regra, em casos do gênero, é a culpa. Circunstâncias não presentes na espécie. Dificuldade, outrossim, de conciliar conceitos de crime tentado, cujo resultado só não se obtém por circunstâncias alheias à vontade do agente, com o dolo eventual, onde não há essa vontade de obtenção do resultado lesivo. Recurso provido para a desclassificação da infração. (Recurso em Sentido Estrito nº 70001042415, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Hirt Preiss, Julgado em 31/08/2000).
Assim, à luz do exposto no presente tópico, entendemos que a argumentação que fundamenta a incompatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa possui maior respaldo na atual dogmática penal, e, portanto, advogamos pela tese de incompatibilidade entre os dois institutos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi visto no decorrer do presente trabalho, a resposta à questão acerca da coexistência da tentativa e do dolo eventual em uma mesma conduta encontra-se nos pilares da teoria do delito, em especial nas minúcias que envolvem o estudo da imputação dentro do espectro teórico do conceito analítico de crime, da teoria finalista da ação e, em especial, das teorias que embasam o conceito de dolo, quais sejam, a teoria da vontade, quanto ao dolo direto, e a do consentimento, quanto ao dolo eventual. Analisando tais teorias, percebemos a necessidade de que nos voltemos ao significado da "vontade" descrita no art. 14, II, do Código Penal, para que possamos entender como se dá a imputação de um crime tentado, haja vista que a tentativa ocorre "por circunstâncias alheias à vontade do agente".
Neste diapasão, analisamos o fato típico no contexto do conceito analítico de crime, sob o enfoque da teoria finalista da ação, e ressaltamos que o elemento subjetivo inerente ao fato típico encontra-se na conduta do agente, e que tal conduta somente poderá ser considerada típica se satisfazer determinadas características, contidas nos elementos que compõe a tipicidade. Entre tais elementos, destacamos o resultado através da análise do iter criminis e suas etapas, com o fito de explicitarmos de que forma ocorre a tipificação do crime tentado e quais são seus pressupostos.
Nessa análise demonstramos que para a ocorrência de um fato típico tentado é necessário que nos voltemos para o elemento subjetivo do agente no momento de sua conduta, que somente poderá ser o dolo, haja vista que, ao se iniciar a execução, para que se configure um delito tentado é necessário que o crime somente não se consume por circunstâncias alheias à vontade do agente, conforme afirmado acima. Foi visto também que é justamente no termo “vontade” que se instaura a celeuma quanto à possibilidade de um delito tentado ter como elemento subjetivo no momento da conduta o dolo eventual.
Tal vontade, no caso do crime tentado, vem a ser o elemento volitivo que é frustrado por circunstâncias externas alheias ao agente e deve ser dirigida finalisticamente para um fim determinado, fim este que, conforme já dito, não se consuma apesar da vontade do agente. Tal enunciado está claramente descrito no art. 14, II, que tipifica a tentativa. Ora! Um crime é tentado quando o agente tenta consumá-lo, mas, por motivos alheios à sua "vontade de consumar o crime", não consegue seu intento. Assim, é claro que se trata de uma vontade direta e especificamente voltada à consumação do delito. Querer admitir que o dolo eventual, que tem como característica justamente a ausência de uma vontade dirigida finalisticamente para um fim determinado, possa admitir a norma extensiva da tentativa, é o mesmo que sustentar a possibilidade de tentativa em crimes culposos, uma absurdidade lógica que não encontra respaldo na teoria penal. A tentativa exige um elemento volitivo específico, que é a vontade dirigida a um fim, vontade essa que se traduz na conduta humana em busca de um determinado resultado, resultado que só não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente. No dolo eventual não há essa vontade, a conduta não é dirigida a um determinado fim penalmente relevante. Há apenas a anuência, a assunção do resultado e, assim, no caso de uma conduta em dolo eventual que não produz resultado, não há como se argumentar que foram circunstâncias alheias à vontade do agente que impediram que o crime se consumasse, pelo simples fato de que a vontade do agente não se dirigia a um fim específico, havendo, no máximo, a previsão (e anuência) de que, caso tal resultado ocorresse, o agente não se importaria. O agente não age para obter determinado fim, e, assim, nota-se que, nas condutas cujo elemento volitivo é o dolo eventual, o que impede que o resultado ocorra não é uma vontade impedida pelas circunstâncias alheias; essa vontade simplesmente não existe, ao menos não na forma exigida pelo dolo direto, elemento que, conforme nosso entendimento, é o exigido no termo "vontade" presente no art. 14, II, do Código Penal.
Não é à toa que aqueles que sustentam a possibilidade entre os dois institutos tenham como argumento apenas o fato de que o dolo eventual é equiparado pela nossa legislação, para todos os efeitos, ao dolo direto. Afora esse argumento, que na verdade nada explica, não há como conjugar os dois institutos. Conforme explanado no segundo capítulo, entendemos que o dolo eventual é, na verdade, uma modalidade de culpa que por motivos político-criminais é apenado como dolo. Ou seja, o elemento volitivo do dolo eventual assemelha-se mais ao da culpa do que ao do dolo direto, ainda mais se pensarmos na chamada culpa consciente, cuja diferenciação do dolo eventual reside unicamente na “atitude de espírito” do agente no momento da conduta que, no caso da culpa consciente, acredita sinceramente que nenhum resultado ocorrerá da sua ação.
A jurisprudência discutida no terceiro capítulo, em especial o Recurso em Sentido Estrito nº 0832268-64.2013.8.26.0052, demonstra a fragilidade com que se sustenta a imputação de uma conduta a título de crime tentado em dolo eventual. Como foi visto nesse julgado, a própria característica do dolo eventual faz com que a descrição dos fatos se utilize de jargões típicos para a descrição de crimes culposos, cujo elemento subjetivo, como sabemos, inviabiliza a existência da tentativa.
Ademais, urge salientar que pelo aspecto indeterminado do elemento volitivo no dolo eventual, haja vista a vontade não ser dirigida a um determinado fim, surgiriam diversas questões práticas de difícil resolução caso se admitisse a possibilidade de tentativa em dolo eventual. A principal delas seria o problema acerca da determinação do início da suposta execução do crime tentado nessa modalidade, o que dificulta também determinar quem seriam as vítimas de tal tentativa. Em um exemplo simples, suponhamos que um motorista, agindo com dolo eventual de homicídio, percorra em alta velocidade uma extensa avenida repleta de transeuntes e outros veículos, vindo a perder o controle do veículo, atingindo um ponto de ônibus lotado sem que, contudo, provoque qualquer tipo de lesão nas pessoas que ali se encontram. Deverá o motorista responder por tentativa de homicídio somente em relação aos que se encontravam no ponto de ônibus atingido ou, se levarmos em conta que a tentativa se iniciou no momento em que o autor dirigia perigosamente, com dolo eventual de homicídio, deverá ser imputado a ele a tentativa de homicídio contra todos os transeuntes e ocupantes de outros veículos que poderiam ter sido atingidos em um hipotético acidente, mas não foram?
Como se pode perceber, as características inerentes ao dolo eventual impedem que analisemos os fatos da mesma forma como são analisados quando se trata do dolo direto. A ausência de uma vontade dirigida a alcançar um determinado fim impede a existência do iter criminis e, por extensão, impossibilita uma execução que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Ainda que a lei equipare o dolo eventual ao direto, excluindo a assunção do risco do âmbito da culpa, é preciso ter em mente que essa equiparação não possui o condão de anular as especificidades inerentes ao dolo eventual, que precisam ser levadas em conta sob pena de se construir um discurso jurídico-penal ilógico, irracional, de duvidosa legalidade.
Não olvidamos a existência de diversas condutas graves, que trazem grandes riscos sociais, e que devem ser combatidas se queremos alcançar a tão sonhada paz social. Contudo, entendemos que, em relação às condutas irresponsáveis de alguns cidadãos cujo comportamento evidencia o total desinteresse pela incolumidade alheia, a solução não será encontrada no recrudescimento do punitivismo estatal através do desprezo aos postulados do Direito Penal. Tal desprezo acaba por causar insegurança jurídica ao criar amplo espaço para a discricionariedade de promotores públicos e juízes que, à luz de entendimentos pessoais, denunciam e julgam inviabilizando a possibilidade de defesa por parte do réu, haja vista não considerarem a argumentação jurídica fruto de décadas de evolução da ciência penal.
Assim, por todo o exposto neste trabalho, advogamos pela incompatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa em uma mesma conduta.
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[1] Importante destacar que este conhecimento a que nos referimos diz respeito à realidade fática que circunda o agente no momento da realização de sua ação, não se referindo ao conhecimento da lei. Conforme adverte Bitencourt (2007, p. 256), "é desnecessário o conhecimento da configuração típica, sendo suficiente o conhecimento das circunstâncias de fato necessárias à composição da figura típica”.
[2] Ademais, é interessante notar que Hungria reclama justamente da má tradução da fórmula nacional-socialista. Ou seja, ele defende a teoria do consentimento e, ao mesmo tempo, lamenta não terem traduzido corretamente a fórmula que, no nacional-socialismo, superou tal teoria!
[3] O caso relatado por Lacmman, que será logo citado neste trabalho.