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Reforma do Judiciário:

sem outorga de poder soberano ao Judiciário este não pode obrigar o Estado e Mercado a acabar com a fome, a pobreza e a miséria

01/04/2003 às 00:00
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Para a surpresa de muitos o Ministro da Justiça deste novo governo anunciou de modo enfático que a PEC da Reforma do Judiciário que, por pouco não foi aprovada nos estertores do Reinado de FHC, é completamente inútil e é preciso recomeçar a tarefa a partir do ponto zero. Tal anúncio faz renascer o entusiasmo daqueles que esperneavam de infrutífera indignação diante do fúnebre desfile carnavalesco daquela PEC grotesca pelas avenidas do Parlamento.

Construiu-se sólido consenso de que há uma crise do Judiciário a ser resolvida e daí é que surge a gritaria geral pela urgente necessidade de reforma. No entanto, o impasse dentro dos solenes muros do Judiciário, constitui um mero segmento da crise geral da sociedade brasileira; nem o Estado e nem o Mercado conseguem apresentar respostas para a enorme quantidade de demandas populares geradas pelos efeitos devastadores das políticas perversas implementadas na chamada década perdida do neoliberalismo.

Na base do problema, o grande desafio está em que os cidadãos precisam de algumas necessidades básicas: um posto de trabalho, alimento, um lugar para morar, saúde, água, esgoto, luz, educação, segurança pública.

Não dispondo de um posto de trabalho, não conseguem acesso a nenhuma das suas necessidades básicas. Evidentemente, porque para ter acesso a tais bens da vida é preciso dispor de dinheiro e só se obtém esta chave mágica que abre as portas da vida, conseguindo um posto de trabalho. Quando muitas dezenas de milhões de cidadãos não tem acesso a este caminho para a felicidade, evidencia-se que o país real não oferece para todos a oportunidade de obter a satisfação destes itens.

Os direitos necessários para subsistir, limitam-se a habitar o país de papel que está desenhado nas leis. A esta altura, depois de se falar tanto do tema na recente eleição presidencial, não há quem não saiba que cinqüenta milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza e, destes, vinte e dois milhões estão no nível da indigência absoluta.

Para tantos, a única forma de subsistir sem dinheiro é comendo sem pagar, morando sem pagar, tendo luz e água sem pagar, e assim por diante. No andar de baixo temos 20% dos cidadãos que tem de sobreviver com 2,2% da renda nacional, enquanto que lá no andar de cima, aqueles 20% mais ricos abocanham 64,2% da riqueza nacional. Com grande estabilidade, este é o cenário, pelo menos, dos últimos vinte anos.

O Judiciário recebe o encargo de gerir este universo de normas, pressupondo um país formal que se baseia no fetiche da reserva da lei como o núcleo duro da democracia política. No entanto, no país real não há outro modo de subsistir, a não ser apoderando-se de algo que não é seu e pelo qual, não se pode pagar.

A Constituição não prevê que haja esta zona do não-Direito habitada pelos sujos, feios e malditos, vicejando ao lado do Estado Democrático de Direito que existe para os cidadãos que tem acesso aos bens da vida. Naquele mundo de regras feito de papel, todos estes vultos são reconhecidos como seres humanos, classificados (em tese) como cidadãos e tem o direito de sobreviver à escassez a que estão submetidos. O cenário resultante é esquizofrênico: é ilegal que as pessoas sejam obrigadas a violar a legalidade para continuar existindo.

Esta é a grande crise da sociedade e do Estado e podemos ver, de um lado, que o Judiciário não poderá resolvê-la expedindo sentenças da mesma forma que os demais Poderes não poderiam decretar que "doravante, não existirá mais a pobreza no país".

De outro lado, contudo, se é a este Poder que a carta política atribui a missão de obrigar Estado e Mercado a concretizar os direitos proclamados no direito positivo, qualquer projeto de Reforma teria que ficar centrado na perseguição do objetivo de dotar este Poder de poderes para cumprir com o encargo que lhe é constitucionalmente atribuído.

Em todo o projeto em votação no Congresso não há uma única proposta que seja esboçada para atender a esta necessidade.

O conteúdo da PEC dirige seu olhar para o lado oposto, apontando para dois objetivos: a) proteger o Judiciário da crise que o aflige; b) proteger o Estado e o Mercado para impedir que o Judiciário saia de controle e tente cumprir sua tarefa constitucional de obrigar os demais poderes a respeitar a Constituição.

Estes verdadeiros pólos centrais que estão na PEC que o Ministro quer jogar no lixo, permanecem ocultos dos olhares do Povo. A cortina que os encobre está no carnaval promovido pela mídia em torno da questão da morosidade do Judiciário. Esta paralisia progressiva da maquina do Judiciário é problema que atinge, apenas, a dois segmentos: a) os operadores da máquina que se afundam sob a sobrecarga de demandas às quais não conseguem dar resposta rápida e eficaz; b) o pessoal do andar de cima, a quem Estado e Mercado propicia, em maior ou menor grau, dispor de renda suficiente para desfrutar efetivamente da totalidade ou, ao menos, de uma parcela dos direitos estatuídos pela Ordem Jurídica.

A visibilidade do questionamento a este nível faz com que a parte visível da Reforma resida no mesmo território. Procura-se resolver os problemas dos operadores da máquina que saltitam enervados por não conseguir dar conta de prestar o serviços devidos ao povo. Ao invés de prover meios para o atendimento a tais demandas, o alívio é perseguido através da privatização de uma série de tarefas que, antes, eram desempenhadas pelo Judiciário.

Larga parcela das atividades jurisdicionais foi ou, está sendo, repassada ara partes privadas através da criação dos juizados de pequenas causas, arbitragem, mediação, comissões de conciliação prévia, etc.

Ao invés de resistir à paralisia, investindo-se para dar à estrutura o dimensionamento necessário para bem atender ao povo, opta-se por suprimir prestação de uma parte dos serviços. Para coroar a obra, a PEC sugere que a morosidade judicial seja "proibida". Algo assim como decretar que fica revogado o rio Amazonas.

O outro eixo central da Reforma, ou seja, a sua parte oculta (e já largamente concretizada) está na contenção da pressão popular pela concretização dos direitos constitucionais porque, ceder a tal pressão exigiria uma efetiva transferência de renda.

A contenção manifesta-se, basicamente, em recusar ao Judiciário, poderes para atacar as omissões do Poder Legislativo e do Poder Executivo. A primeira linha de defesa contra as pressões do povo está em que se mantenha o "status quo" atual em que o Legislativo e o Executivo, não implementam o que seria necessário para fazer valer os direitos constitucionais.

Para aperfeiçoar a contenção, vai se criando uma rede de proteção aos governantes, através da implantação da chamada "mordaça" que impedirá a divulgação dos escândalos e pela ampliação do julgamento em foro privilegiado, mesmo depois de findo o mandato.

Além disto, busca-se reprimir o fenômeno da germinação de uma pequena safra de juízes de primeira instância que vem optando por reconhecer os direitos constitucionais para os habitantes das zonas de não-direito. Enquanto todos olhavam para o lado errado, implantaram a ação avocatória com outro nome e, agora, caminham para implantar as súmulas vinculantes.

Mantem-se o poder imperial e autocrático da Segunda Instância, criando-se um simulacro de controle externo da magistratura e rejeitando-se a reivindicação de eleição direta entre os juízes para a direção dos tribunais. Tudo para reprimir arroubos de independência de uns poucos magistrados isolados mas, incômodos.

Até o momento, portanto, os passos dados em relação à Reforma do Judiciário, tinham como objetivo resolver os problemas do Judiciário, do Estado e do Mercado. Se vamos voltar ao ponto zero, é hora de nos perguntarmos como construir algo que venha para servir aos interesses do povo.

É preciso reverter o processo de privatização da entrega da prestação jurisdicional, dotando o sistema de meios concretos para atender à população, através do incremento das dimensões do aparelho existente e da introdução massiva do uso do processo eletrônico e da telemática.

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Diante do crescimento das demandas, o correto é aumentar a capacidade de seu atendimento, ao invés de repassar o ônus para as partes privadas, ou seja, entregar a solução dos conflitos às mãos do Mercado.

De outro lado, impõe-se a necessidade de afastar as restrições à atuação progressista da primeira instância, democratizando-se a escolha dos dirigentes dos Tribunais, afastando-se "lei da mordaça" e foro privilegiado, revogando-se a ação direta de constitucionalidade, recusando-se a proposta das súmulas vinculantes.

Esta é a parte visível do problema e não devemos desprezá-la em razão de ser a menos importante. No entanto, é chegada hora de discutir aquilo que tem ficado invisível e neste ponto, o grande problema está em reverter os mecanismos de contenção das pressões sociais.

O primeiro tema que nos parece importante é o do controle da inconstitucionalidade por omissão. O sistema prevê dois mecanismos que, pela sua inoperância e inutilidade, vieram a mostrar-se inúteis e grotescos: o mandado de injunção e a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão.

Neste tema, o grande passo é retomar a proposta originária de introduzir na carta política, poderes para o Supremo Tribunal Federal expedir preceitos que possam suprir as omissões do Legislativo e do Executivo. É preciso fazer cessar esta situação exasperante em que, ambos estes instrumentos de tutela se esgotam na singela declaração da inconstitucionalidade por omissão.

Na mesma linha, é preciso implantar mecanismos de controle difuso, também, no campo da inconstitucionalidade por omissão. Neste ponto, seria uma grande alavanca dotar os juízes (à exceção da jurisdição criminal), dos poderes imputados no inciso 3 do artigo 10 do Código Civil Português: "Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema".

É preciso, também, imputar claramente aos juízes, os poderes para impor comandos aos agentes concretizadores das normas. Ao juiz deve ser deferido o dever/poder de impor ao Administrador Público que atenda a comando que faça cessar uma situação de desrespeito aos direitos dos cidadãos, sem que esteja limitado ao alvedrio e à eventual boa vontade da administração pública.

Cumpre registrar que grandes personas que pontificam no campo das concepções progressistas do Direito, consideram este tipo de reformas como desnecessário, porque tudo isto já estaria implícito na Constituição em vigor. Para muitos "as normas de direitos e garantias fundamentais não mais se encontram na dependência de uma concretização pelo legislador infraconstitucional" e já existe esta plenitude dos efeitos dos direitos fundamentais.

O óbice concreto estaria no fato de que o Poder Judiciário, especialmente, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não pensa deste modo. Por esta concepção, bastaria trocar os ministros do STF e não precisaríamos de reforma constitucional. Num país como o nosso, contudo, costuma ocorrer o contrário: os tribunais superiores resistem a aplicar a norma jurídica quando a mesma confronta sua reacionária visão de mundo.

Para um exemplo corriqueiro veja-se a atual resistência do Tribunal Superior do Trabalho que continua a manter a jurisprudência sumulada (enunciado 310) que não aceita a substituição processual ampla deferida aos sindicatos no artigo 8º, III da CF, mesmo diante de várias decisões do STF que proclamam tal amplitude. Ou o mesmo TST, manter a jurisprudência de que os sindicatos não podem cobrar contribuições de não-associados (precedente normativo 119) mesmo após o STF pronunciar-se em sentido contrário.

É claro que a crise fora dos muros do Judiciário tem sua dinâmica própria e não será possível eliminar a miséria através de sentenças judiciais pelo mesmo motivo de que não seja viável legislar pela sua extinção. No entanto, uma reforma construída nesta direção irá permitir ao Judiciário intervir permanentemente nas grandes questões da sociedade, apoiando a implementação dos direitos fundamentais de modo concreto e possivelmente eficaz.

O fundamental é compreender que se a nossa grande crise de legitimidade do sistema reside em que os direitos constitucionalmente atribuídos não saem do papel pela omissão dos legisladores e dos administradores públicos, o caminho para superar este impasse, ao nível do Poder Judiciário, reside em dotá-lo dos poderes necessários para que se constitua como Poder autônomo com força para suficiente para obrigar Estado e Mercado a acabar com a fome, a pobreza e a miséria.

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Sobre o autor
João José Sady

advogado trabalhista em São Paulo (SP), professor associado doutor no curso de Direito da Universidade de São Francisco, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SADY, João José. Reforma do Judiciário:: sem outorga de poder soberano ao Judiciário este não pode obrigar o Estado e Mercado a acabar com a fome, a pobreza e a miséria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3921. Acesso em: 19 dez. 2024.

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