1. No momento em que um magistrado soluciona uma demanda qual o papel dos textos normativos (Constituição, Tratados, Leis, Decretos, Regulamentos, Contratos etc.)? Os textos normativos se revelam como parâmetros de decidibilidade ou como pretextos justificadores da decisão? Qual a diferença entre esses usos (parâmetro ou pretexto)? Como distinguir se o texto normativo é utilizado como parâmetro ou como pretexto? É possível estabelecer um critério de controlabilidade externa desses usos (parâmetro ou pretexto)?
2. As nossas hipóteses são as seguintes: a) os textos normativos são parâmetros de decidibilidade todas as vezes que os magistrados solucionam uma demanda a partir do que efetivamente está escrito e prescrito nos textos normativos; b) os textos normativos são pretextos justificadores todas as vezes que os magistrados solucionam uma demanda distorcendo ou ignorando o que efetivamente está escrito e prescrito nos textos normativos; c) o texto normativo é parâmetro de decidibilidade todas as vezes que o magistrado gostaria de solucionar a demanda em um sentido mas, em face do que escrito e prescrito no texto normativo, soluciona a demanda em outro sentido, contra a sua própria vontade ou interesse; d) o texto normativo é pretexto justificador todas as vezes que o magistrado soluciona a demanda no sentido que gostaria de solucionar e utiliza o texto normativo apenas para justificar a sua solução previamente tomada, independentemente do que esteja efetivamente escrito e prescrito nesse texto normativo; e) o texto normativo é parâmetro de decidibilidade todas as vezes que o magistrado se coloca “abaixo das Leis e das Instituições”; f) o texto normativo é um pretexto justificador todas as vezes que o magistrado se coloca “acima das Leis e das Instituições”; g) o texto normativo é parâmetro de decidibilidade todas as vezes que o magistrado subordina a sua vontade ao que efetivamente está escrito e prescrito no texto; h) o texto normativo é pretexto justificador todas as vezes que o magistrado subordina o que está escrito e prescrito no texto normativo à sua vontade.
3. Essas questões perseguem todos quantos colocam o tema da “decisão judicial” como objeto de suas atenções, sejam as acadêmicas, sejam as profissionais. Tenha-se, por exemplo, o magistério doutrinário de Hans Kelsen[1], no famoso Capítulo 8 de sua Teoria Pura do Direito, intitulado “A Interpretação”, para quem o ato de “interpretar” (e de decidir) consiste em um ato de “vontade”. Ou seja, grosso modo, no final das contas, o magistrado decide do jeito e modo que quer decidir, independentemente do que esteja escrito e prescrito no texto normativo. Essa linha doutrinária foi praticamente assimilada por quase todos os juspositivistas. Isso quer dizer que para o juspositivismo, na prática, o texto normativo tem sido utilizado como um pretexto justificador. A decisão já está tomada. O texto normativo apenas justificará o quanto decidido. E, na prática, se for necessário distorcer ou ignorar o texto normativo essa distorção ou ignorância será feita. A prática judicial brasileira tem dado razão histórica aos juspositivistas: o texto normativo como pretexto de justificação, em vez de ser um parâmetro de decidibilidade.
4. Nada obstante essa crua realidade, Lênio Luiz Streck[2] tem quixotescamente brandido contra essa prática nefasta da jurisprudência brasileira. Segundo esse ilustrado professor o ato de decidir não pode ser um ato de vontade do magistrado, mas um processo de construção a partir de uma hermenêutica sinceramente vinculada com a busca da “verdade”.
5. Como distinguir o uso do texto normativo como parâmetro de decidibilidade ou como pretexto justificador? Pela eventual correspondência entre a decisão judicial e o texto normativo, bem como pela correspondência dessa decisão judicial em face das tradições jurídicas (precedentes jurisprudenciais e magistério doutrinário). A coerência do magistrado consiste em outro componente relevante para verificar se o texto normativo é parâmetro ou pretexto.
6. É possível a criação de um critério controlador da fidelidade entre o magistrado e o texto normativo? A resposta é negativa. Não há qualquer possibilidade de se tirar do magistrado o poder/direito de interpretar o texto em sentido diverso a eventuais interpretações ou soluções distintas das outras, salvo em relação às decisões ou precedentes das instâncias superiores. Mas, por exemplo, em relação a um ministro do STF, não há como subordinar a sua decisão (ou voto) ao fiel e milimétrico cumprimento dos textos normativos. Ou seja, se um ministro do STF começar a julgar as demandas utilizando o texto normativo como simples pretexto justificador para as suas soluções, não há remédio judicial para neutralizar essa postura. Restam apenas as instâncias políticas (Casas Parlamentares) que podem modificar o quanto escrito e prescrito no texto normativo e as instâncias livres da sociedade civil (imprensa e academia) para criticar o Tribunal todas as vezes que os textos normativos, em vez de serem parâmetros de decidibilidade, foram utilizados como pretextos justificadores.
7. O fato inquestionável consiste no aspecto civilizatório da força vinculante dos textos normativos. Todas as vezes que um indivíduo, seja uma pessoa de poucas letras e luzes ou de baixa condição econômica ou uma pessoa ilustrada ou de boas condições econômicas, subordina a sua vontade, os seus desejos, os seus interesses, ao quanto escrito e prescrito nos textos normativos é sinal de que estamos a viver em uma sociedade civilizada. O fiel e milimétrico respeito às Leis e às Instituições é um componente indispensável para uma convivência civilizada entre as pessoas e ingrediente fundamental para o progresso de qualquer sociedade. Para comprovar essa assertiva basta comparar o valor que as pessoas que vivem nos Países com os melhores indicadores sociais e econômicos dão às suas Leis e às suas Instituições, com o valor que as pessoas que vivem nos Países com os piores indicadores sociais e econômicos dão às suas respectivas Leis e Instituições. Nada como a realidade para verificar a força das teorias.
Notas
[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 7ª ed. São Paulo. Martins Fontes: 2006, pp. 387-397.
[2] Toda semana Lênio Luiz Streck publica um texto em sua coluna no CONJUR (www.conjur.com.br) discutindo os problemas da epistemologia e da hermenêutica jurídica.