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Receptação: análise doutrinária e jurisprudencial

23/05/2015 às 11:33
Leia nesta página:

Análise profunda do crime de receptação, previsto no artigo 180 do Código Penal, à luz da doutrina e da jurisprudência, discutindo-se as principais polêmicas.

– Conceito

Trata-se de crime autônomo, não se podendo falar em autoria ou participação quando o agente pratica a conduta após a consumação do delito antecedente.

Com a redação que lhe foi dada pela Lei 9.426, de 24 de dezembro de 1996, tem-se para o crime de receptação dolosa (artigo 180 do Código Penal):

¨Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte.¨

 Pena: reclusão de um a quatro anos e multa.

A ação penal é pública incondicionada e pode ser proposta no local em que se consumou a receptação ou, havendo conexão, diante da regra constante do artigo 76, III, do Código de Processo Penal.

Para o caso, a  teor do artigo 89 da Lei 9.099/95, poderá ser oferecido pelo Ministério Público o beneficio de suspensão condicional do processo.

Trata-se de crime comum; doloso, na receptação simples e na qualificada; culposo no caso do § 3º, do art. 180 do CP; material na receptação própria; formal na receptação imprópria; comissivo, salvo na modalidade de ocultar que é omissivo; instantâneo, salvo nas formas de transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito e expor à venda que é permanente; unissubjetivo;  plurissubsistente e acessório, pois depende do crime antecedente.


– Sujeito ativo e sujeito passivo

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de receptação. O autor, coautor, partícipe do crime antecedente responde apenas por este e não pelo crime acessório. O partícipe do furto que influi para que o terceiro adquira a coisa subtraída responde apenas pela infração prevista no artigo 155 e não pela receptação que é considerada post factum não punível.

Interessante a lição de Magalhães Noronha[1] quando traz à colação o fato de o proprietário da coisa receptada poder ser sujeito ativo do crime, como no caso daquele que adquire do ladrão a própria coisa que dera em penhor por um empréstimo, a fim de frustrar a garantia pignoratícia.

Sujeito passivo é o titular da coisa que foi objeto de crime antecedente.


– Objetividade Jurídica e tipo objetivo

O objeto jurídico do crime é o patrimônio uma vez que há uma nova violação do direito do proprietário, já anteriormente atingido pelo delito antecedente, afastando, ainda mais, a coisa do legítimo proprietário, que dela foi antes desapossado.

Questão curiosa a ser enfrentada envolve o fato da receptação  ter como pressuposto um crime culposo.

A lição de Manzini, que é acompanhada por Magalhães Noronha[2], é no sentido de que a receptação é, em regra, relacionada a coisas provenientes de delitos dolosos; mas, não é de excluir-se de modo absoluto que se possa cometer em relação a crimes culposos. Ora, o artigo 180 do Código Penal fala em produto de crime.

Daí vem outra pergunta: Se a lei fala em produto de crime, é mister que esteja o crime anterior consumado ou basta ter havido simplesmente tentativa?

Como delito de fusão, a receptação, crime acessório, parasitário, somente se caracteriza quando a coisa é produto do crime[3]. Torna-se indispensável a prova de sua ocorrência, sem que se fale na necessidade de existência de inquérito policial, sentença em que se ateste a ocorrência do crime antecedente (RT 606/396, 718/425).

Para tanto, responde Magalhães Noronha[4]:

¨Nossa lei fala em produto do crime. Ora, produto é coisa produzida, é resultado, pelo que não nos parece fácil admitir haver receptação, sem que essa disponibilidade pelo agente anterior, visto ser graças a ela  que se opera a transferência do poder deste para o do receptador. Fora disso, cremos que a ação do agente subseqüente concretizará antes o favorecimento ou coparticipação no crime principal, que não tendo se consumado ainda, comporta a intervenção do segundo indivíduo.¨

Discute-se a questão da prejudicialidade do crime principal e antecedente com relação a receptação.

A sentença absolutória do agente anterior, uma vez que não tire do fato o seu caráter delituoso, como é o caso da absolvição por carência de provas, não impede o processo e a condenação do receptador.

Tal não acontecerá se houver absolvição quanto à falta de provas quanto à existência do fato como delito.

Se provado que a coisa foi adquirida por terceiro de boa-fé, que por sua vez a transmite a outrem, não comete este receptação ainda que tenha conhecimento de que a coisa provém de crime (RT 508/362).

Se houver anistia com relação ao crime anterior? Para Nelson Hungria, a anistia do crime anterior não afeta a existência da receptação.[5]

É indiferente que se tenha julgada extinta a punibilidade, pela incidência da prescrição da pretensão condenatória, por exemplo, ou outra causa(artigo 108, parágrafo único, CP).

Se o agente no crime anterior houver agido em estado de necessidade, causa de exclusão da antijuridicidade, não há que falar em ilícito penal. Assim, não se pode falar em receptação.

A receptação pode estar ou não relacionada a crime patrimonial anterior. Ao contrário de Crivellari e Pessina, que sustentam a necessidade de que seja contra a propriedade, Von Liszt e Manzini, dentre outros, entendem que não só os delitos patrimoniais pode a receptação ter como antecedentes, mas outros dos quais possa provir "cose reccetabili". Nessa linha de pensar, tem-se que a lei penal não exige que o crime esteja relacionado entre os crimes patrimoniais. Pode-se praticar receptação de coisa produto de peculato, contrabando, descaminho (RTJ 27/86) e ainda de receptação(RF 265/363).

Acentuo que, se o agente atua no exercício de atividade comercial ou industrial, ainda que irregular, e a coisa é produto de contrabando, pratica crime definido no artigo 334, parágrafo primeiro, ¨d¨, do Código Penal, onde se diz: ¨adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos (incluído pela Lei 4.729, de 14 de julho de 1965).

A receptação é punível ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa (artigo 180, § 4º, do CP). Basta a prova da receptação ainda que praticada por menor ou inimputável (RT 628/362) ou ainda por pessoas enumeradas no artigo 181 do Código Penal, que têm imunidade absoluta ou relativa.

Pode a receptação envolver bem imóvel?

Magalhães Noronha[6] diz que a lei fala em "coisa", o que necessariamente não exclui o imóvel, e daí pode tirar-se a conclusão de que ele está incluído no vocábulo compreendido.

Mas, após, diz:

¨Não o cremos, todavia.¨

Para Hungria, [7] o dispositivo se refere apenas a coisa móvel. Assim, só as coisas móveis podem ser ocultadas.

No entanto, Heleno Cláudio Fragoso[8] distoa ao dizer, com base em doutrina alemã e suíça, que é possível ocorrer a receptação de coisa imóvel.

Que dizer de crimes de estelionato ou de falsidade cujo objeto é coisa imóvel?

O Supremo Tribunal Federal decidiu pela impossibilidade de receptação de bem imóvel (RTJ 97/148, 102/48; RT 546: 413 e 554/425).

Não se descaracteriza o crime de receptação se a coisa produto do crime é transformada em outra, mesmo em dinheiro, para depois ser transferida ao receptador.

A receptação pode ser própria (crime material) ou imprópria (crime formal).

Na receptação própria as condutas típicas são adquirir (receber a propriedade, por compra, dação em pagamento, permuta, doação, herança), receber (a conduta de quem toma a posse da coisa), transportar (levar, transferir, carregar a coisa), conduzir ou ocultar (esconder)[9]. O herdeiro, na sucessão, quando adquire a coisa, pratica o delito; o credor que, para se pagar, aceita o que sabe ser produto de crime, comete receptação.

Praticado o crime por uma ou mais modalidades de conduta o agente responderá por um só delito e, se vender a coisa, o fato irá caracterizar um post factum não punível(JTACrSP 44/40).

Na receptação imprópria o agente influi (convence, estimula, induz alguém) para que terceiro, de boa fé, adquira, receba ou oculte a coisa. Pode até haver bilateralidade, se o adquirente também estiver de má-fé.

Na receptação própria admite-se a tentativa[10], o que não ocorrerá na forma de receptação imprópria. Pune-se a tentativa uma vez que é posta em perigo a segurança e com isso foi produzido um dano público, uma vez que a ação é objetivamente perigosa, pondo no estado de perigo, repito, um bem tutelado pela lei penal e, formalmente, nela se inicia a execução do tipo.

Há um crime único de receptação de objetos produtos de vários crimes (RTJ 65/57).

Poderá haver crime continuado nas diversas aquisições de coisas produto de vários crimes.

Há concurso material. Haverá concurso material com o crime previsto no artigo 288 do Código Penal, se o agente participa de associação estável para adquirir e vender objetos furtados, por exemplo.

O crime é comissivo e não omissivo.


– Elemento subjetivo

O artigo 180, caput, do Código Penal, refere-se a dolo genérico.

Na dúvida, e não na certeza, sobre a origem da coisa, há incidência de receptação culposa (RT 619/347).

Observo a lição de Nelson Hungria[11] quando ao elemento subjetivo do tipo penal: 

“O elemento subjetivo compreende a ciência de que se adquire, recebe ou oculta coisa procedente de crime ou de que se influi para tal aquisição, recebimento ou ocultação por parte de terceiros bona fide (dolo genérico) e o fim de proveito próprio ou alheio (dolo específico).”


– Receptação qualificada pelo objeto material

É a que se vê diante da redação do artigo 180, § 4º, do Código Penal, sempre que se trate de bens e instalações do patrimônio da União, Estados, Municípios, empresas concessionárias de serviços públicos ou sociedade de economia mista, quando a pena se aplica em dobro, uma vez que a ilicitude praticada interessa a toda a coletividade.


– Receptação qualificada na atividade comercial ou industrial

É crime de receptação qualificada: "Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime" (artigo 180, § 1º, do Código Penal com a redação que foi dada pela Lei 11.343/06). A pena é de reclusão de três a oito anos e multa.

Aqui o sujeito ativo deve ser comerciante ou industrial.

Na matéria é conhecida a lição de Damásio Evangelista de Jesus[12] e ainda de Celso Delmanto e outros[13] que consideravam que efetivamente a conduta descrita no preceito primário do artigo 180, parágrafo primeiro, do Código Penal é mais branda do que a receptação simples, prevista no caput do artigo 180 do Código Penal. Isso porque no delito de receptação qualificada, a lei comina abstratamente a pena de reclusão de três a oito anos, para o comerciante que deveria saber da proveniência ilícita do objeto material. Mas, se efetivamente o comerciante soubesse dessa origem ilícita, a pena só poderia ser de um a quatro anos, o que se mostra incongruente e paradoxal, pois impõe pena mais grave para quem assume uma conduta mais branda. Não teria, assim, sentido inflingir punição gravosa á receptação qualificada (artigo 180, § 1º, do CP) que supõe, em sua configuração típica, mero dolo eventual, e impor sanção penal mais branda à receptação simples (artigo 180, § 1º), cuja tipificação requer dolo direto, como ainda disse o próprio Damásio de Jesus[14], para quem o parágrafo primeiro do artigo 180 do Código Penal, descrevendo crime próprio, pune o comerciante ou industrial que comete a receptação, empregando a expressão ¨que deve saber ser produto do crime¨. Como o caput prevê o conhecimento pleno (coisa que sabe ser produto do crime), onde doutrina e jurisprudência conectam ao dolo direto, e o parágrafo terceiro descreve a forma culposa, o parágrafo primeiro só pode tratar de crime doloso com o chamado conhecimento parcial da origem ilícita da coisa, seja por dúvida, insegurança, incerteza, o que faz a doutrina ligar ao dolo eventual.

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O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 95.525/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJe de 04 de abril de 2008, deferiu medida liminar naquele "writ", por entender que houve em face da norma inserida no artigo 180, § 1º, do Código Penal, um desrespeito aos princípios da proporcionalidade e individualização in abstrato da pena.

Haveria, pois, inconstitucionalidade em face do desrespeito aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e individualização da pena.

No julgamento do HC 109.780/SP, Relatora Ministra Jane da Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), Relator para o acórdão o Ministro Nilson Naves, j. em 16 de dezembro de 2008, entendeu-se que aquele artigo 180, § 1º, do Código Penal, reveste-se de imperfeições de ordem formal e material. Da mesma forma, tem-se o julgamento do HC 140.227/MS, Relator Ministro Celso Limongi, Desembargador Convocado do TJ/SP, DJe de 10 de maio de 2010.

Sucede que, no julgamento do EREsp 772.086/RS, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 13 de outubro de 2010, adotou o entendimento de ser inviável impor ao acusado pela violação do artigo 180, § 1º, do Código Penal, a sanção prevista ao infrator do caput do artigo referenciado.

Para tanto, por maioria, conclui-se que a pena mais severa cominada a forma qualificada do delito foi opção do próprio legislador atento aos reclamos da sociedade de reprimir mais duramente a conduta praticada no exercício da atividade comercial ou industrial, ante a lesividade exponencial de que é dotada.

Em posição distinta na matéria, Guilherme de Souza Nucci[15] considera que a expressão ¨deve saber¨ prevista no tipo penal do parágrafo primeiro do artigo 180 do Código Penal, não deve ser interpretada de forma literal, pois deve ser entendida não só como dolo eventual, mas ainda como dolo direto, englobando a expressão ¨sabe¨. No mesmo sentido, Fernando Capez[16] e Rogério Greco.[17]

A matéria, pois, passa pelo próprio conceito de dolo.

Uma divisão tradicional distingue dolo direto e dolo indireto. O dolo chamado dolo direito é o propriamente dito, aquela forma em que concorrem a previsão e a vontade. Segundo a intensidade do querer, ainda se fala em dolo determinado e dolo indeterminado. Determinado diz-se o dolo em que o resultado corresponde perfeitamente à previsão e à vontade. O agente previu e quis o resultado que realmente ocorreu. No dolo indeterminado, o querer do agente se degrada, pois não é tão definido em relação ao resultado como no determinado. O agente prevê e admite a ocorrência eventual de um resultado, ou quer um outro entre vários resultados previstos. O dolo indeterminado compreende o dolo eventual e o dolo alternativo. No dolo eventual, o agente não quer propriamente o resultado, mas o admite e aceita o risco de produzi-lo. No alternativo, o agente quer um ou outro entre dois os mais resultados previstos. Mas o resultado será sempre doloso, porque previsto e querido pelo agente.

No dolo indireto, que tem origens no direito canônico e nos práticos, não há concorrência da  vontade, não é um verdadeiro dolo, razão pelo qual tal conceito deve ser repudiado pela ciência penal, com bem advertiu, de há muito, Aníbal Bruno[18]. Ali quem praticasse o ato devia responder penalmente por todas as suas consequências, mesmo as não previsíveis.

Fiquemos com a dicotomia dolo direto e dolo eventual: no dolo direto, o agente prevê o resultado como consequência necessária do seu ato e quer que ele ocorra. Já, no dolo eventual, o agente prevê o resultado apenas como provável e possível, mas apesar de prevê-lo, age, aceitando o risco de produzi-lo.

A disparidade de tratamento trazida pela lei, no caso da apenação para quem age com dolo eventual e daqueles que estão em dolo direto, leva a resultado não harmônico com a razoabilidade, razão pela qual há a inconstitucionalidade material aqui trazida à colação.


– Receptação dolosa privilegiada

No caso da receptação dolosa, tanto a prevista no caput, como no § 1º cabe o dispositivo constante do artigo 155, § 2º, do Código Penal.

Poderá haver a incidência do privilégio se o autor for primário e a coisa receptada for de pequeno valor, caso em que o juiz pode substituir ou reduzir a pena.

Já se entendeu que não se aplica o privilégio quando o bem tem valor superior a um salário mínimo (JTAERGS 92/31).


– Receptação culposa

Prevê o artigo 180, § 3º, do Código Penal, uma espécie de receptação culposa: ¨Adquirir ou receber coisa que por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso.¨

A pena é de1 (um)  mês a 1 ( um)  ano ou multa.

É crime de menor potencial ofensivo podendo ser oferecida a hipótese do benefício de transação.

Mister que se lembre o tipo culposo onde a previsão e a vontade não informam todo o processo delituoso.

Consiste a culpa em praticar de forma voluntária, sem a intenção e o cuidado devido, um ato do qual decorre um resultado definido na lei como crime, que não foi querido e nem previsto pelo agente, mas que era previsível, como ensinou Aníbal Bruno.[19]

É a falta do dever de cautela necessária de forma a não resultar dano a bens jurídicos alheios. Há uma posição contrária ao dever, pois a todos são dadas a diligência e a precaução necessárias diante dos atos da vida. Há a falta de um dever de cuidado que se impõe.

O fato culposo pode ser decomposto em seu processo nos seguintes elementos:

a)      um ato inicial voluntário, praticado com imprudência, negligência ou imperícia;

b)      um resultado de dano ou de perigo definido em lei como crime;

c)       ausência de vontade e até de previsão quanto a este resultado;

d)      possibilidade de prevê-lo.

Fala-se que na culpa inconsciente o resultado não deve ter sido nem querido nem previsto pelo agente. Na culpa consciente, o agente prevê o resultado, mas pratica o ato inicial na esperança de que o mesmo não ocorra. Se previsto e querido, ou previsto e aceito pelo agente, o risco de produzi-lo, há dolo – dolo direto, no primeiro caso e dolo eventual, no segundo.

Ora, quem adquire a coisa deve se munir de elementos com relação a certeza da origem ou da proveniência dela, o que leva a indagações, exigências e até investigações que levem a saber com relação a proveniência do móvel. e com relação a pessoa que vende.

Trata-se de crime comissivo.

Aqui colho a lição de Magalhães Noronha[20] para quem o elemento psicológico, na receptação culposa, consiste na vontade consciente de adquirir ou receber a coisa e na culpa em descuidar do conhecimento preciso de sua proveniência; em outras palavras, na imprudência, negligência ou imperícia, relacionadas  ao desconhecimento da origem da coisa.  A culpa fulcra-se na procedência da coisa receptada. 

Há culpa quando o sujeito ativo, por certos indícios, tem dúvida quanto à origem legítima da coisa, mas ainda assim a adquire ou recebe. Há três elementos que podem conduzir o agente a essa situação: a) a natureza da coisa; b) a desproporção entre o valor e o preço; c) a condição de quem oferece a coisa.

Considero que tais indícios podem ter valor relativo, devendo ser apreciado o fato no conjunto de seus elementos.

De toda sorte, o valor que se considera é o exclusivamente econômico, levando em conta o valor de uso e o de troca.

Registro um caso que chama a atenção, em um julgamento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (RT 516/392), quando se observou a brutal desproporção entre o preço e o valor a levar a presunção de que a coisa foi obtida por meio criminoso.

De outro modo, já se entendeu que a compra de veículo de desconhecido, por preço inferior ao valor real, não seria suficiente para embasar condenação mormente se o agente teve a cautela de consultar o despachante sobre a regularidade da documentação (TACrSP, RJTDACr 20/153).

Optou a lei por um critério objetivo quando disse: ¨deve presumir-se obtida por meio criminoso.¨[21]

A lei se refere ao agente, a sua diligência e o necessário cuidado que deve ter.

E se o conhecimento da procedência criminosa é posterior? Para Bento de Faria[22] há o ilícito, ao dizer: ¨Ao contrário, se o indivíduo, não tendo esse conhecimento no ato de receber, comprar a coisa, porém, posteriormente, chega a saber da procedência criminosa, e, não obstante, continua a deter essa coisa, é responsável.¨

Em opinião contrária, Magalhães Noronha[23] ao aduzir que o conhecimento posterior não pode dar lugar ao delito do parágrafo. A receptação culposa não pode se fundar em resultado posterior a esses atos. Assim o que se pune é o ato culposo, e se depois de consumado, circunstâncias mostram a origem delituosa da coisa, não têm elas a força de retroagir àquele momento, tornando culposo um ato quando culpa não houve. Correto esse entendimento à luz da razoabilidade.

Não parece possível a tentativa de receptação culposa.

Outro ponto a considerar se dá com relação a venda por camelôs de coisa que se julga objeto de receptação. Era caso de pequena quantidade de relógios em ambulante, reconhecendo-se a aplicação do princípio da insignificância do dano (TRF 2ª Região, Ap. 1.166 – RJ, DJu de 12 de novembro de 1996).

A jurisprudência tem entendido haver insignificância. Refiro-me a entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no HC 191.067/MS, Relator Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador Convocado do TJ/CE), Sexta Turma, DJe de 26 de março de 2012, onde se entendeu que, em caso de receptação culposa, de um celular, avaliado em R$55,00 (cinquenta e cinco reais), sendo o objeto devidamente restituído à vítima, é de rigor o reconhecimento da atipicidade da conduta.


– Perdão judicial

Em se tratando de receptação culposa, a teor do artigo 180, parágrafo quinto, do Código Penal, pode o juiz deixar de aplicar a pena, tendo em consideração as circunstâncias do caso.

É caso de perdão judicial, sentença declaratória de extinção da punibilidade.


Notas

[1] NORONHA, E.Magalhães. Direito penal,  Saraiva, volume II, 13ª edição, pág. 512 a 513.

[2] NORONHA, E. Magalhães. Obra citada, pág. 504.

[3] Se a infração anterior for contravenção, certamente não se pode falar em crime de receptação, como crime posterior.

[4] NORONHA, E. Magalhães. Obra citada, pág. 504.

[5] Hungria, Nelson. Comentários ao código penal, volume VII, Forense, 1955,pág. 315.

[6] NORONHA, E. Magalhães. Obra citada, pág. 512.

[7] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, volume VII, pág. 304.

[8] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, volume III, José Bushatsky, volume II, 1977, pág. 163.

[9] Nas hipóteses de conduzir e ocultar há um crime permanente, aquele que se protrai no tempo.

[10] A tentativa é a figura truncada de um crime. Deve possuir tudo o que caracteriza o crime, menos a consumação. A substância material típica da tentativa é a execução iniciada de um crime. Ela se torna possível desde o momento em que a ação penetra na fase executória. Os fatos preparatórios são insuficientes para configurá-la. Para haver tentativa, é preciso que o ato de execução iniciado se interrompa antes da fase da consumação, e se interrompa por circunstância alheia à vontade do agente. O elemento subjetivo da tentativa é o dolo do crime consumado. Sendo assim é cristalino que não há tentativa no crime culposo, que ainda não ocorre nos crimes omissivos próprios e nos unissubsistentes, como é o caso da injúria verbal.

[11] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código penal, volume VII,  Forense, 1980, pág. 306. 

[12] JESUS, Damásio E. de. O saber e o dever saber no crime de receptação, Bol. IBCCr n. 52, março de 1997, pag. 5 a 7.

[13] DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JR;  Roberto; DELMANTO; Fábio M. de Almeida. Código penal comentado, 6ª edição, Renovar, pág. 431.

[14] JESUS, Damásio E. de. Direito penal, volume 2/490-494, 23ª edição, Saraiva.

[15] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, 7ª edição, Revista dos Tribunais, pág. 1.215.

[16] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial, volume II, 4ª edição, Saraiva, 2004, pág. 549 e 550.

[17] GRECO, Rogério. Curso de Direito penal,: parte especial,volume III, 5ª edição, Impetus, 2008.

[18] BRUNO, Aníbal. Obra citada, pág. 72.

[19] BRUNO, Aníbal. Obra citada, pág. 80.

[20] NORONHA, E.Magalhães. Obra citada,pág. 518.

[21] É a orientação já encontrada no Anteprojeto Nelson Hungria(artigo 193), quando adota não o sistema misto, mas o objetivo.

[22]FARIA, BENTO de. Código penal comentado, 1959, pág. 266. 

[23] NORONHA, E .Magalhães, obra citada, pág. 521. . 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Receptação: análise doutrinária e jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4343, 23 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39289. Acesso em: 21 nov. 2024.

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