Evolução da legislação aplicada ao desporto no Brasil

26/05/2015 às 16:16
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A regulamentação estatal do desporto no Brasil não é recente. O caráter abusivo das legislações antigas foi trocado por princípios e garantias de índole constitucional que se voltam para uma maior preocupação com a integridade e autonomia desportivas.

O esporte, a partir de diferentes pontos de vista, possui múltiplos significados, sendo certo que o critério do melhor benefício é bastante decisivo para a construção dessas acepções. Pode ser simples meio de manutenção de uma vida saudável, forma de entretenimento ou investimento empresarial organizado que visa o lucro financeiro. Destaca-se que tais visões não são exaustivas, pois o esporte, visto como fenômeno social, é objeto de estudo e compreensão de diferentes atores sociais que de alguma forma se vinculam a ele.

Por mais que coexistam as mais variadas intepretações, é certo que sua prática surge como algo espontâneo e voluntário, uma vez que é fruto da criatividade e comportamento humanos e, portanto, a motivação é uma qualidade essencial. Não há desporto sem impulso e/ou desejos pessoais ou coletivos.

A primeira forma de regulamentação estatal do esporte no Brasil, mormente no que diz respeito à sua prática profissional, foi por meio do Decreto-Lei 3.199 de 14 de Abril de 1941, editado pelo ex-presidente Getúlio Vargas. Não existia anteriormente em nossa Nação um regulamento, decreto ou norma que se preocupasse em abordar o tema. O Brasil vivia a ditadura do Estado Novo e, nesse contexto, a intenção por parte do governo de propagar ao máximo o sentimento de patriotismo era manifesta. Sobre o Decreto de Getúlio Vargas, merece destaque o apontamento de Carlos Miguel Castex Aidar:

“Ele pegou o modelo da lei Italiana vigente à época, que era uma lei autoritária, extremamente autoritária do regime fascista de Benito Mussolini, ou seja, outra figura ditatorial, copiou aquela lei e trouxe-a para o Brasil, vertendo-a, do Idioma Italiano, é muito parecida com o Decreto-Lei 3.199.”1

De caráter eminentemente patriótico, o Decreto concebia o desporto como fenômeno de identidade nacional e integração social. Ademais, vedava-se qualquer manifestação esportiva de natureza profissional que almejasse a obtenção de lucro. O intervencionismo estatal era intenso, fato que se percebe pela leitura textual de alguns dos seguintes artigos, in literris:

Art. 12. As confederações, imediatamente colocadas sob a alta superintendência do Conselho Nacional de Desportos, são as entidades máximas de direção dos desportos nacionais;

Art. 51. As diretorias das entidades desportivas serão compostas de brasileiros natos ou naturalizados; os seus conselhos deverão constituir-se de dois terços de brasileiros natos ou naturalizados pelo menos.

Art. 48. A entidade desportiva exerce uma função de carater patriótico. É proibido a organização e funcionamento de entidade desportiva, de que resulte lucro para os que nela empreguem capitais sob qualquer forma.

As entidades desportivas, órgãos de organização e administração das diferentes modalidades esportivas, estavam diretamente subordinadas ao Conselho Nacional de Desportos. Percebe-se que o Estado ao mesmo tempo que reconhecia o esporte como patrimônio nacional, coibia sua expansão que não atendesse aos preceitos normativos do Decreto. Desse modo, o reconhecimento das relações esportivas era diretamente subordinado ao Estado.

O Decreto foi um reflexo do seu tempo, todavia não se atentou para a natureza do esporte como fenômeno social voluntário. O Direito não cria o esporte, pois quem o produz é a própria sociedade por meio de condutas e interações espontâneas. Cumpre também ressaltar que o Direito também é fruto da organização social, porém seu caráter predominantemente técnico é um fator peculiar. A realidade social do esporte, seja ele visto como investimento empresarial ou mero lazer, apresenta-se como manifestação que nasce precipuamente no berço das relações privadas e, portanto, são os próprios particulares que o desenvolvem no sentido de fornecer um valor significativo à sua prática.

Em 1975, foi editada a lei 6.251/75, sob o contexto político da ditadura militar. De perfil semelhante ao Decreto de Getúlio Vargas, em quase nada mudou em relação a este, como bem obtempera Miguel Castex Aidar2:

“O que mudou nesses 34 anos, de 1941 para 1975? Muito pouca coisa. Essa Lei, embora fosse uma cópia daquele Decreto-Lei, veio com uma roupagem diferente, mas prevalecia um forte intervencionismo do Estado dentro do esporte. O Estado dizia, nesta lei de 1975, só para os senhores terem uma idéia do absurdo, que os clubes ou associações de prática, todos tinham que se organizar igualmente, pouco importando se eles estivessem no interior da Paraíba – ou estivessem na capital de São Paulo...”

Não obstante o intervencionismo estatal ainda fosse marcante, o reconhecimento de uma parcela de autonomia ao esporte, ainda que incipiente, começava a surgir. Nos termos da Lei, ao Cômite Olímpico Brasileiro, concebido como uma associação civil, são reconhecidos autonomia e independência, assim como às confederações nacionais.

O esporte, principalmente a partir da década de 1980, começou a ser visto como uma grande indústria capaz de gerar uma mídia avassaladora e, consequentemente, um grande investimento. Tal visão foi crescendo internacionalmente de modo que no Brasil não foi diferente. Começaram a surgir diversos patrocinadores do desporto profissional de modo que sua prática tornou-se cada vez mais reconhecida e admirada pela sociedade. Outrossim, investimento privado trouxe grande contribuição para uma maior flexibilização das normas estatais.

Com a Constituição Federal de 1988, houve uma inédita inserção do esporte no texto constitucional, algo que jamais ocorreu na história das Constituições Brasileiras. A existência de princípios constitucionais aplicados ao desporto o elevou à categoria de um direito autônomo do indivíduo e o Estado passou a ter certos deveres no intuito de reconhecer e preservar esse direito, nos termos do art. 2173.

A autonomia das entidades desportivas bem como das associações ligadas ao esporte foi uma atribuição de grande relevância. As entidades estão mais próximas dos praticantes do desporto profissional, seu público e demais apaixonados pelo esporte, sendo certo que seu maior contato com as camadas sociais é capaz de promover o diálogo entre os interessados. Dessa forma, a administração do desporto profissional se torna mais flexível na medida em que os dirigentes dessas entidades estão mais livres para exercerem um gerenciamento que esteja em contato frequente com as necessidades e transformações das modalidades esportivas.

A destinação de recursos públicos para a promoção do desporto educacional e o de alto rendimento bem como o tratamento diferenciado para o desporto profissional e não profissional também são princípios basilares para uma nova compreensão do esporte. Não pairam dúvidas de que o incentivo às atividades esportivas tornou-se um dever estatal e um direito manifestamente inerente aos cidadãos brasileiros.

A institucionalização da Justiça Desportiva também trouxe valiosa contribuição para o desenvolvimento de uma compreensão do esporte como um fenômeno dinâmico e célere. Acerca do tema, merece destaque a lição de Álvaro Melo Filho4:

“A constitucionalização da Justiça Desportiva tornou-se necessária face ao crônico congestionamento da Justiça Estatal que, regra geral, perturba o normal andamento, continuidade e dinâmicas das disputas desportivas, trazendo mais problemas do que soluções. Demais disso, há um evidente despreparo da Justiça Comum para o trato das questões jus-desportivas que exigem dos julgadores o conhecimento e a vivência de normas e práticas desportivas, dado que não estão familiarizados com as nuances e peculiaridades dos regulamentos esportivos, de que são exemplos concretos:

Magistrado, em Rondônia, concedeu ‘habeas corpus’ para que um jogador, suspenso por cinco partidas, pudesse atuar em jogo decisivo, alegando que se tratava da ‘liberdade de ir e vir dentro de campo...”

É importante ressaltar que a autonomia dessas entidades não se confunde com independência. Nesse diapasão, há um exercício limitado de poderes dentro das balizas legalmente postas pelo ordenamento jurídico, porém, cumpre esclarecer que este espaço delimitado pela lei foi amplamente alargado de modo a proporcionar uma menor interferência estatal.

Percebe-se claramente que a Carta Magna de 1988 introduziu um novo sistema de proteção do desporto nacional o qual se rompe com o modelo de regulação anterior. O esporte, visto como fenômeno social por excelência, requer uma regulação mais aberta em que os preceitos normativos são capazes de regulamentar a atividade sem, contudo, sufocar as manifestações desportivas a ponto de desestimular sua prática voluntária e comprometer seus princípios norteadores.

O paradigma de regulamentação estatal do desporto inaugurado pela Constituição vigente é um modelo que se compatibiliza com as características do esporte, pois estabelece limites aos órgãos estatais com o escopo de preservar sua integridade. Há um incentivo à prática desportiva, seja ela profissional ou não profissional, sem a indevida intenção de construir um projeto de regulamento estatal rígido capaz de exaurir textualmente todos os campos em que o desporto produz seus efeitos, quais sejam, por exemplo, educacional, lazer, econômico, entre outros.

Já sob a égide da Constituição de 1988, foi editada a Lei nº 8.672/93 (Lei Zico) que instituiu um modelo de organização do desporto pautado na sua privatização. Os atletas, entidades de prática desportiva e entidades de administração do desporto passaram a ser livres para organizar a atividade profissional de sua modalidade e as relações do atleta com o time passaram a ser feitas obrigatoriamente pela forma contratual. Ademais, as entidades de prática desportiva foram concebidas como pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos.

Posteriormente, nasceu a Lei nº 9.615/98, chamada Lei Pelé, a qual, também com arrimo no artigo 217 da Constituição, procurou melhor institucionalizar a Justiça Desportiva no Brasil com independência da máquina pública estatal, proporcionou o reconhecimento expresso dos clubes como entidades autônomas e independentes e procurou melhor estruturar as entidades de direção do esporte brasileiro.

O referido diploma normativo nada mais fez do que reiterar princípios e normas da Lei Zico, contudo acrescentou demais aspectos de gerenciamento do desporto. A Lei Pelé, ao estabelecer a coexistência de confederações e federações esportivas, ampliou a autonomia das entidades no tocante à fiscalização das regras aplicáveis às diferentes modalidades. Cumpre ressaltar que tal medida em muito contribuiu para a promoção de uma gestão aberta capaz de dialogar com a sociedade, uma vez que tais entidades são administradas por pessoas físicas desvinculadas do aparato estatal e, por conseguinte, em constante contato com a dinâmica e rotatividade do esporte.

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Hodiernamente, no que diz respeito ao arcabouço legal vigente de regulamentação do desporto, temos o artigo 217 da Constituição Federal, a Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé) e a Lei nº 10.671/03 (Estatuto do Torcedor). Com relação a o Estatuto, foi instaurado um modelo de proteção e respeito ao Torcedor a partir da transparência das competições e a preservação da competitividade e imprevisibilidade dos jogos como formas de legitimidade dos torneios, assim vejamos:

“Art. 5º São assegurados ao torcedor a publicidade e transparência na organização das competições administradas pelas entidades de administração do desporto, bem como pelas ligas de que trata o art. 20 da Lei n º 9.615, de 24 de março de 1998”

O esporte no Brasil, sob a regência legal das normas em referência, passou a ser visto como um fenômeno a ser tutelado pelo Estado, porém com certas peculiaridades. A constante mutação é presente na realidade social do esporte e, face desse aspecto, exige-se uma maior abertura dos regulamentos estatais. As normas não podem ser interpretadas restritiva e textualmente, de modo que sua elaboração legislativa deve ser a mais flexível possível com o objetivo de atender à dinâmica esportiva.

Embora o desporto possua sua autonomia reconhecida constitucionalmente, tal prerrogativa não se apresenta de forma absoluta. Uma regulamentação aberta não significa total desprovimento de regras legais importantes para a preservação de uma ética esportiva. Sobre a variedade do conjunto normativo aplicado ao desporto, assevera Alvaro Melo Filho5:

“Na verdade, não há nenhuma atividade humana que congregue tanto o direito como o desporto: os códigos de justiça desportiva, as regras de jogo, regulamentos de competições, as leis de transferências de atletas, os estatutos e regimentos das entidades desportivas, as regulamentações do doping, as normas de prevenção e punição da violência associadas ao desporto, enfim, sem essa normatização o desporto seria caótico e desordenado, à falta de uma regulamentação e de regras para definir quem ganha e quem perde.”

Por último, acerca da preservação da ética desportiva, a Resolução nº 01 do Conselho Nacional do Esporte – órgão vinculado ao Ministério do Esporte – de 23 de Dezembro de 2003 o qual, com respaldo na Lei Pelé, instituiu o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) que está hodiernamente em vigor e regula a organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva. O CBJD traz diversas sanções aplicáveis às condutas tipificadas como infrações na prática do desporto e, ademais, institui princípios que norteiam a interpretação de suas normas.

Diante de tudo quanto exposto, a amplitude da esfera privada na esfera esportiva é limitada. A regulação jurídica advinda de normas estatais coexiste com regulamentos privados, todavia a lei não cria o esporte o qual é produto da criatividade humana. Atualmente, e não apenas no Brasil, há uma transversalidade regulatória do desporto caracterizada no convívio simultâneo de normas estatais e privadas que regulam o mesmo objeto ou objetos diferentes, mas muito próximos. A “performance” de um jogador, por exemplo, está sujeita à incidência das regras de uma modalidade esportiva e o seu comportamento profissional também deve ser ético e legal no sentido respeitar a integridade do desporto profissional.


Notas

1 AIDAR, Carlos e outros. Curso de Direito Desportivo Sistêmico. Aspectos Normativos e Retrospectiva Histórica da Legislação Desportiva Infraconstitucional. São Paulo: Ed. Quartier Latin. Pag. 70.

2 AIDAR, Carlos e outros. Curso de Direito Desportivo Sistêmico. Aspectos Normativos e Retrospectiva Histórica da Legislação Desportiva Infraconstitucional. São Paulo: Ed. Quartier Latin. Pag. 71.

3Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º - O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

4 MELO FILHO, Alvaro. Autonomia de organização e funcionamento das entidades de prática desportiva e de direção do desporto brasileiro. in AIDAR, Carlos Miguel (coordenador), Curso de direito desportivo Sistêmico, São Paulo: Ícone, 2003. Pág. 356.

5 Diretrizes para a nova legislação desportiva: Revista Brasileira de Direito Desportivo, IBDD e editora da OAB/SP, segundo semestre/2002. MELO FILHO, Alvaro. Paradigmas e filosofia jusdesportiva do novo Código Brasileiro de Justiça Desportiva: Revista Brasileira de Direito Desportivo, IBDD e editora Revista dos Tribunais, janeiro – junho/2010.

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Sobre o autor
Gabriel José Reis Nunes

Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UNB. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura do Distrito Federal. Assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

Informações sobre o texto

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