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O papel do Ministério Público na implementação do Estatuto da Cidade

Leia nesta página:

Sumário: 1. Introdução.2. A atuação do Ministério Público sob a ótica do Estatuto da Cidade.2.1 Plano Diretor – acompanhamento e intervenção no processo de elaboração e implementação.2.2 Gestão democrática da cidade como princípio vinculante da atividade da Administração Pública.2.3 Intervenção obrigatória nas ações de usucapião.2.4. Improbidade Administrativa.2.5. Alteração da Lei da Ação Civil Pública.3. Considerações finais.


Resumo

O presente artigo tem por objetivo trazer à discussão alguns dos dispositivos constantes da Lei nº. 10.257/01, denominada o Estatuto da Cidade, propondo uma reflexão aos operadores do Direito e demonstrando, de forma mais específica, aos Promotores de Justiça atuantes na matéria, de que forma é possível construir uma prática interventiva na questão urbana. Cabe ao Ministério Público, como instituição responsável pela defesa dos direitos coletivos, fiscalizar o efetivo cumprimento das obrigações constantes no referido diploma legal, zelando pela observância dos princípios norteadores da política urbana, mormente em relação à necessária participação popular nos processo de implementação dos seus instrumentos.


1. Introdução

No mês de outubro do ano de 2001, entrou em vigor a Lei n. 10.257/2001, mais conhecida como o Estatuto da Cidade, tendo como propósito, além da regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecer as diretrizes gerais da política urbana no país. O referido diploma legal é produto de debates intensos entre vários setores da sociedade envolvidos com a questão urbana, tendo sua tramitação no Congresso Nacional perdurado por mais de dez anos até sua aprovação e conseqüente sanção presidencial, que ocorreu em 10 de julho de 2001.

É necessário recordar que o Estatuto da Cidade é a primeira lei no Brasil que tem por objetivo a regulação federal para a política urbana praticada no país, ordenando e controlando o uso do solo de forma a evitar a deterioração das áreas urbanizadas, a poluição e a degradação ambiental, através da criação de um sistema de princípios e diretrizes a serem observados e instrumentos a serem utilizados no planejamento das cidades. A própria lei esclarece, no parágrafo único do seu artigo 1º, que suas disposições constituem "normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, a segurança, do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental".

Importante aspecto a ser ressaltado é o caráter vinculante que possuem os princípios e diretrizes estabelecidos pelo Estatuto da Cidade, pois como o próprio texto legal esclarece, as normas nele contidas são de ordem pública, de natureza cogente portanto, o que significa dizer que sua finalidade é o atendimento do bem comum, através da sobreposição do interesse público sobre o privado. Além de públicas, são também caracterizadas como normas de interesse social, o que confere maior relevância ao interesse coletivo que nelas reside.

Os princípios sobre os quais se alicerça a política urbana nos moldes delineados pelo Estatuto são: o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades e o direito a cidades sustentáveis, traduzidos no reconhecimento e garantia do direito a terra, à moradia, ao saneamento ambiental, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.

As diretrizes para a realização da política urbana estão detalhadas no artigo 2º da Lei, em dezesseis incisos, que estabelecem a cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, o efetivo fornecimento de equipamentos urbanos e comunitários, ordenação do uso do solo de forma a evitar abusos (tanto excesso como ausência de aproveitamento – retenção especulativa de imóveis), proteção e recuperação do meio ambiente natural e artificial, bem como do patrimônio histórico, cultural e artístico, a integração entre atividades urbanas e rurais, justa distribuição dos benefícios e dos ônus decorrentes do processo de urbanização, regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa renda pela simplificação da legislação de parcelamento do solo permitindo a redução de custos. Em vários dispositivos da lei é perceptível uma preocupação bastante acentuada com a questão ambiental, diante da impossibilidade se de conceber de forma desvinculada o meio ambiente e o ser humano que nele vive e o transforma.

Dentro desse extenso rol, que traduz todos os aspectos a serem observados pelo poder público no estabelecimento da política urbana, é possível identificar três deles como os mais importantes a serem considerados, e que permeiam toda a concepção do Estatuto da Cidade:

1. Gestão democrática das cidades – pela participação da população e associações representativas dos diversos segmentos da sociedade na formulação, execução e acompanhamento de projetos (art.2º, II);

2. Instituição de um plano diretor obrigatório;

3. Penalidades para a ociosidade ou a ocupação desordenada de imóveis.

Os instrumentos que fazem parte do Estatuto situam-se em três campos: um conjunto de novos instrumentos de natureza urbanística voltados para, mais do que normatizar, promover e induzir formas de uso e ocupação do solo; uma nova estratégia de gestão que incorpora a idéia de participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino da cidade; e a ampliação das possibilidades de regularização das posses urbanas.


2. A atuação do Ministério Público sob a ótica do Estatuto da Cidade

O Estatuto da Cidade, em seu corpo, menciona o Ministério Público uma única vez, ao fazer referência às ações de usucapião, o que não significa que seja esse o único papel da Instituição frente às inovações trazidas pela Lei. Ao contrário, a concepção que permeia o Estatuto da Cidade reclama a intervenção do Ministério Público em absolutamente todo o processo de implementação das políticas de desenvolvimento urbano.

Assim é que "de forma sintética, podemos afirmar que a obrigatoriedadeda participação do Ministério Público nos instrumentos de política urbana decorre de quatro fatores principais, previstos na própria Lei n.º 10.257/01:

A- as normas urbanísticas ali tratadas são de ordem pública;

B-tais comandos normativos versam sobre interesse social indisponível;

C-regem-se pelo princípio da participação democrática;

D-a ordem urbanística, direito difuso, passa a integrar expressamente o rol da ação civil pública". [1]

Dentro desse contexto, delineia-se de forma bastante clara a imprescindibilidade da atuação do Ministério Público no processo de implementação dos instrumentos trazidos pelo Estatuto da Cidade, com a efetiva intervenção nos âmbitos judicial e extrajudicial, a fim de velar pela observância de seus preceitos.

2.1 Plano Diretor – acompanhamento e intervenção no processo de elaboração e implementação

Merece destaque dentro do texto legal o tratamento dado ao Plano Diretor, que é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, conforme definição dada pelo artigo 40 do Estatuto. Nele deverão estar consignadas as condições para que os imóveis urbanos cumpram a sua função social. O Estatuto da Cidade reafirma o dispositivo da Constituição Federal que institui o plano diretor como instrumento definidor da função social da propriedade imobiliária urbana e estabelece o atendimento das exigências fundamentais de ordenamento da cidade como o requisito da função social da propriedade.

Para aplicar os instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto, o Poder Executivo municipal deverá obrigatoriamente produzir seu Plano Diretor, por meio de lei. O Plano Diretor tem como função principal expressar os instrumentos por meio dos quais o município garantirá o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbanas e proverá o atendimento às necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, justiça social e desenvolvimento das atividades econômicas.

É importante frisar a obrigatoriedade naqueles municípios em que a população seja maior do que vinte mil habitantes, ou integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, nos municípios em que se pretenda utilizar os instrumentos previstos no art. 182, § 4º da Constituição (que são o parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação mediante títulos da dívida pública), naqueles integrantes de áreas de especial interesse turístico e nas cidades inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.

Cabe salientar que esses requisitos não são cumulativos, basta a presença de um deles para que se torne obrigatório ao município a instituição do plano diretor.

A Lei estabelece, ainda, as disposições mínimas que deverão estar contidas no plano diretor, como a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização, além das disposições requeridas pelos arts. 25 (direito de preempção), 28 (outorga onerosa do direito de construir), 29 (alteração de uso do solo), 32 (operações urbanas consorciadas) e 35 (transferência do direito de construir) desta Lei, bem como um sistema de acompanhamento e controle de sua execução.

Além disso, dispõe sobre a participação popular nesse processo de elaboração do plano e fiscalização de sua implementação, conforme o parágrafo 4º e incisos do seu artigo 40, a seguir transcrito:

§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:

I - a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;

II - a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;

III - o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.

A não observância dessas disposições deverá dar ensejo à propositura de ação civil pública por improbidade administrativa nos termos da Lei n. 8.429/92, assunto que será examinado adiante. Não é demasiado recordar, ainda, que para aqueles municípios cujo plano diretor seja obrigatório, o Estatuto da Cidade prevê o prazo de cinco anos para sua instituição, estabelecendo, portanto, uma obrigação legal aos administradores municipais.

2.2 Gestão democrática da cidade como princípio vinculante da atividade da Administração Pública

Na esteira do que foi tratado no tópico anterior, que esclarece a necessidade da discussão com a população acerca do processo de elaboração e implementação do Plano Diretor, faz-se necessário salientar que a participação direta da população no processo de desenvolvimento das cidades ganha nova dimensão dentro da concepção da Lei 10.257/01. O Estatuto da Cidade reserva um capítulo para dispor acerca das formas intervenção popular na política urbana, tendo como principais pontos os artigos a seguir transcritos.

Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:

I - órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;

II - debates, audiências e consultas públicas;

III - conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;

IV - iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

V – (VETADO)

Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do inciso III do art. 4ºdesta Lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal.

Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.

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A perspectiva da participação popular não assume caráter meramente opinativo, mas interventivo, com a efetiva participação da sociedade na formulação, execução e acompanhamento dos planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

E diante desse importante aspecto trazido à discussão pelo Estatuto da Cidade, merece destaque a relevância da atuação do Ministério Público enquanto instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 126, caput, da CF/88).

Nas palavras de GOULART [2]"Integrando a sociedade civil, o Ministério Público, nos limites de suas atribuições, deve particiar efetivamente do processo democrático, alinhando-se com os demais sujeitos políticos coletivos comprometidos com a concretização dos direitos já previstos e a positivação de situações novas que permitam o resgate da cidadania para a maioria ainda excluída desse processo, numa prática transformadora orientada no sentido da construção da nova ordem, da nova hegemonia, do processo democrático."

Nesse sentido, cumpre destacar a responsabilidade atribuída do Ministério Público de acompanhar e intervir nesse processo, no desempenho da função de representante dos interesses da sociedade que lhe foi conferido pela Constituição de 1988, seja mediante a participação em conselhos que vierem a ser criados – propugnando, inclusive, pela sua criação – convocação e participação em audiências públicas e conferências – zelando para que cumpram sua finalidade de participação popular efetiva, e não funcionem como mero palco para a administração pública - bem como nas demais iniciativas relativas à questão urbana, que hoje também constitui matéria sobre a qual poderão ser propostas ações civis públicas, de acordo com inclusão promovida pelo próprio Estatuto da Cidade na Lei da Ação Civil Pública, conforme será tratado adiante.

2.3 Intervenção obrigatória nas ações de usucapião

O Estatuto da Cidade, ao regulamentar os dispositivos constitucionais que se referem à reforma urbana, tratou também do instituto denominado usucapião pró-moradia, previsto no artigo 183 da Constituição Federal (usucapião constitucional ou especial) e que constitui inovação trazida pela Constituição ao tradicional instituto do direito civil, conferindo também ao possuidor urbano o direito de adquirir a propriedade imóvel, a exemplo do que ocorre no âmbito rural com o usucapião pro labore (artigo 191), desde que atendidos alguns requisitos, como o lapso temporal (cinco anos ininterruptamente), tamanho do imóvel (até duzentos e cinqüenta metros quadrados), finalidade (moradia do possuidor e de sua família) e não ser o possuidor proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Em relação ao usucapião especial urbano individual o Estatuto da Cidade permaneceu fiel à Constituição, dispondo sobre ele de modo quase que idêntico ao caput do artigo 183 da carta constitucional. A maior inovação, no entanto, consiste na criação de uma nova espécie de usucapião, denominado usucapião especial urbano coletivo.

O usucapião especial urbano coletivo destina-se à regularização fundiária de áreas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda, em que não se possa identificar os terrenos ocupados. Devem também ser observados os requisitos relativos a lapso temporal, finalidade e ausência de outra propriedade imóvel, da mesma forma que ocorre no usucapião especial individual.

O parágrafo 1º do artigo 12 determina a intervenção obrigatória do Ministério Público na ação de usucapião especial urbano, seja individual ou coletiva. A atuação como custos legis justifica-se na medida em que o interesse social que envolve a matéria encontra-se plenamente configurado.

O objetivo desses dois institutos, embora no caso do usucapião individual não haja menção à baixa renda como requisito, é a inserção da população que vive na marginalidade dentro daquilo que pode ser considerado cidade formal, promovendo a regularização de áreas ocupadas em desacordo com a legislação vigente.

O papel do Promotor de Justiça, nesses casos, vai além da mera análise da regularidade processual, embora aí também resida fundamental importância do trabalho a ser desenvolvido, inclusive para a construção um conhecimento jurídico acerca da matéria que constitui tamanha novidade.

Principalmente no que se refere ao usucapião especial coletivo, há algumas lacunas e questões práticas que não podem ser esquecidas e que a lei deixa de tratar ou o faz de forma insuficiente, pela necessidade de prover com uma solução genérica situações que se apresentam de forma diversificada na realidade. Um exemplo disso é a ausência de conceituação legal de "baixa renda", que pela sua imprecisão deve ser analisado no caso concreto.

Outro aspecto a ser considerado é o requisito que trata da impossibilidade de identificação dos terrenos ocupados, pois o que se verifica na prática é que na maioria das ocupações irregulares as áreas de cada possuidor são devidamente demarcadas e individualizadas. Assim é que "A não-identificação do terreno deve estar mais ligada ao aspecto legal ou registral do imóvel a ser usucapido do que com delimitação da área ocupada por cada possuidor propriamente dita, pois estes mesmos quando a edificação ocupa toda área, ou seja, quando não há sobra de espaço do terreno, são identificáveis." [3]

Tanto isso é verdade que o próprio legislador, no § 3º do artigo 10 da Lei referiu-se à possibilidade de estabelecer-se frações idéias diferenciadas do condomínio, mediante acordo escrito entre os condôminos, contemplando a situação fática.

Quanto à destinação, o caráter especial dessa modalidade de usucapião traduz-se no fim específico que é a moradia própria e da família. A lei não exclui, mas também não dispõe sobre a utilização para fins comerciais. Na realidade, observa-se que uma vez consolidado um núcleo habitacional, mesmo irregular, logo em seguida se estabelece um pequeno comércio que atenderá àquela população. Esse comércio é tão irregular quanto a própria área em que se situa e sequer pode ser caracterizado como atividade comercial do ponto de vista formal. Trata-se de atividade de mera subsistência, totalmente vinculada ao estabelecimento da moradia no local e exercida normalmente no mesmo imóvel que serve como moradia. Logo, a lei não deve admitir uma interpretação tão restritiva.

Essa modalidade de usucapião dará origem a um condomínio especial, mas que dificilmente poderá ser regido pelas disposições que se aplicam aos condomínios horizontais de alto padrão, sob o risco de se marginalizar ainda mais a população que ali reside, ao invés de promover a integração desses espaços com a cidade formal. O poder público não pode omitir-se de dotar esse condomínio de equipamentos urbanos essenciais, pois se assim fosse, essa seria uma forma bastante conveniente de desonerar o Estado, abandonando à própria sorte uma população carente de condições básicas para se desenvolver, o que contraria sobremaneira a idéia que permeia toda a concepção do Estatuto da Cidade.

Tanto do ponto de vista processual como fático, a questão da legitimidade deve ser analisada com apuro, pois pode ser fonte de alguns problemas no decorrer do processo de usucapião e posterior constituição do condomínio especial. Quanto ao usucapião individual a situação não suscita grande polêmica, mas é no usucapião coletivo que residem as maiores dúvidas. O Estatuto da Cidade outorga tal legitimidade aos possuidores, em estado de composse, embora esse caso mais se aproxime do usucapião individual (trata-se de litisconsórcio), e à Associação de Moradores, como substituto processual, desde que regularmente constituída e com autorização expressa da comunidade. Pode também ser um centro de defesa de direitos, desde que tenha por objetivo a atuação no interesse da população e esteja presente a autorização que a lei requer.

É recomendável a verificação da legitimidade dessa Associação, não apenas processual, mas da sua própria representatividade em relação aos moradores, a fim de evitar que haja eventual prejuízo dos usucapientes decorrente da má-fé que porventura esteja por trás dos interesses da Associação.

2.4. Improbidade Administrativa

O artigo 52 do Estatuto prevê a aplicação das sanções prevista na Lei de Improbidade Administrativa quando o Prefeito Municipal: deixe de dar a destinação adequada ao imóvel desapropriado no prazo de cinco anos após o ato expropriatório, utilize áreas obtidas por meio do direito de preempção ou aplique recursos provenientes da outorga onerosa do direito de construir com finalidade diversa das estabelecidas pelo artigo 26, deixe de aplicar os recursos obtidos nas operações urbanas consorciadas exclusivamente na própria operação (ar. 33 §1º), impeça a participação popular, a publicidade e o acesso a informações quando da elaboração e implementação do Plano Diretor, ou adquira pelo direito de preempção imóvel com valor superior ao de mercado, de acordo com o que se observa a partir da leitura do texto legal a seguir transcrito:

Art. 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos e da aplicação de outras sanções cabíveis, o Prefeito incorre em improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, quando:

I - (VETADO)

II - deixar de proceder, no prazo de cinco anos, o adequado aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio público, conforme o disposto no § 4º do art. 8º desta Lei;

III - utilizar áreas obtidas por meio do direito de preempção em desacordo com o disposto no art. 26 desta Lei;

IV - aplicar os recursos auferidos com a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso em desacordo com o previsto no art. 31 desta Lei;

V - aplicar os recursos auferidos com operações consorciadas em desacordo com o previsto no § 1º do art. 33 desta Lei;

VI - impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos incisos I a III do § 4º do art. 40 desta Lei;

VII - deixar de tomar as providências necessárias para garantir a observância do disposto no § 3º do art. 40 e no art. 50 desta Lei;

VIII - adquirir imóvel objeto de direito de preempção, nos termos dos arts. 25 a 27 desta Lei, pelo valor da proposta apresentada, se este for, comprovadamente, superior ao de mercado.

Embora estabeleça expressamente que o chefe do executivo municipal estará sujeito a penalidades caso proceda de forma contrária à lei, não há exclusão dos demais agentes públicos que incorram nas mesmas hipóteses. Ao contrário, a lei determina que o Prefeito deverá ser punido, "Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos...", mesmo porque, o conceito de agente público da Lei 8.429/92 é bastante amplo.

Deve-se entender, portanto, que a lei apenas exemplifica casos em que deve haver punição mas sempre que qualquer ato de agente público configure enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e inobservância dos princípios da administração pública, devem incidir as penalidades previstas na Lei 8.429/92.

As disposições consignadas no Estatuto da Cidade decorrem do dever que incumbe aos agentes da administração de atuar em conformidade com a lei e o interesse público, tendo como objetivo atingir a finalidade proposta pela Lei, qual seja, a utilização de seus instrumentos dentro de uma determinada perspectiva que seja pautada pelos princípios e diretrizes por ela estabelecidos.

2.5. Alteração da Lei da Ação Civil Pública

Merecem destaque as alterações introduzidas pelo Estatuto da Cidade na Lei n. 7.347/85, incluindo entre as matérias passíveis de defesa por via de ação civil pública a ordem urbanística, embora o controle judicial sobre várias questões envolvendo a ordem urbanística já fosse possível sem a sua inclusão expressa na Lei, pois tanto a Constituição Federal quanto o Código de Defesa do Consumidor utilizam-se de cláusulas genéricas quando se referem à tutela de "outros interesses difusos e coletivos". Parece claro que a ordem urbanística enquadra-se perfeitamente no conceito de direito metaindividual. Veja-se o texto legal:

Art. 53. O art. 1º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar acrescido de novo inciso III, renumerando o atual inciso III e os subseqüentes:

"Art.1º (...)

III - à ordem urbanística;

(...)" (NR)

Art. 54. O art. 4º da Lei nº 7.347, de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 4º Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar o dano ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO)." (NR)

Na lição de MANCUSO [4], "o valor ordem urbanística, decodificável em muitos aspectos, é socialmente relevante de per si, e, como tal, já beneficiava da devida tutela judicial, particularmente no plano da jurisdição coletiva, independentemente, pois, de expressa juspositivação, agora concretizada pelo art. 53 do Estatuto da Cidade. Com isso não se deslustra, minimamente, o brilho da iniciativa do legislador ao adotar tal alvitre, senão que, ao contrário, desse modo imprimiu-se maior visibilidade normativa ao interesse em causa, o que por certo virá contribuir para ampliar os horizontes de sua área de proteção."

Dentro do próprio Estatuto é possível citar como exemplo de caso onde seria cabível a propositura de ação civil pública para cumprimento de obrigação de fazer com preceito cominatório, a não observância dos prazos estabelecidos pela Lei em seus artigos 49 e 50, situação que configura desrespeito à ordem urbanística tutelada, nos seguintes termos:

Art. 49. Os Estados e Municípios terão o prazo de noventa dias, a partir da entrada em vigor desta Lei, para fixar prazos, por lei, para a expedição de diretrizes de empreendimentos urbanísticos, aprovação de projetos de parcelamento e de edificação, realização de vistorias e expedição de termo de verificação e conclusão de obras.

Parágrafo único. Não sendo cumprida a determinação do caput, fica estabelecido o prazo de sessenta dias para a realização de cada um dos referidos atos administrativos, que valerá até que os Estados e Municípios disponham em lei de forma diversa.

Art. 50. Os Municípios que estejam enquadrados na obrigação prevista nos incisos I e II do art. 41 desta Lei que não tenham plano diretor aprovado na data de entrada em vigor desta Lei, deverão aprová-lo no prazo de cinco anos.

Há quem defenda uma posição tão controvertida quanto interessante e inovadora a respeito da configuração do usucapião especial coletivo urbano como um instrumento de tutela coletiva, tecendo uma relação entre o sistema proposto pela Lei da Ação Civil Pública e o Código do Consumidor e esse novo instrumento. Embora reconheça que diante do texto legal a legitimidade ad causam para a ação de usucapião coletivo seja estrita, sugere ROCHA [5] que "seria possível a utilização do instrumento da ação civil pública, ou outra modalidade de ação coletiva, a fim de se obter medida jurisdicional, com efeito, semelhante, dado que é evidente possível se enquadrar o desenvolvimento urbano e o direito de morar com um interesse metaindividual, seja difuso, coletivo, ou individual homogêneo, dependendo da forma de construção da causa de pedir e do pedido (...) Assim, um vez que se possa configurar que o não exercício da posse de uma área por parte do proprietário, com medida superior a 250m2, esteja prejudicando o direito constitucional de habitação e o desenvolvimento urbano (...), temos como perfeitamente cabível a legitimidade do Ministério Público e entes da administração pública direta e indireta, no pedido de tutela judicial coletiva visando pedir a perda da propriedade em favor da comunidade, considerada a área globalmente, para, assim, poder a administração pública desenvolver, sem precisar desapropriar, uma política de regularização e desenvolvimento urbano na área, com notável economia ao poder público."

Tal proposição deve constituir objeto de maior reflexão por parte do Ministério Público a fim de possibilitar alguma conclusão sobre essa nova forma de intevenção judicial que ora se coloca.


3. Considerações finais

A idéia central do presente trabalho é iniciar a discussão sobre a necessidade da adoção de uma postura institucional que reconheça o papel do Ministério Público como agente efetivo dentro do processo de reforma urbana, atuando em todas suas etapas. Algumas atividades podem ser enumeradas, embora não se esgotem nesse rol:

3.1 Acompanhamento da criação de conselhos municipais de reforma urbana e seu regular desenvolvimento;

3.2 Participação em audiências públicas - inclusive provocando a convocação - intervindo de modo a garantir que estas cumpram a sua finalidade de proporcionar a discussão dos problemas com a população, e não funcionem apenas como um relatório de atividades da administração pública;

3.3 Acompanhamento da elaboração do Plano Diretor, observando se o processo vem atendendo todos os requisitos estabelecidos pelo Estatuto da Cidade, seja quanto à forma, quanto ao conteúdo;

3.4 Observar se a legislação municipal que trata da reforma urbana vem sendo aplicada em consonância com os princípios e diretrizes que permeiam a concepção do Estatuto da Cidade, combatendo a especulação imobiliária e o sistema de exclusão que impera no tocante ao acesso à terra urbana;

3.5 Atuar de modo efetivo nas ações de usucapião, com o objetivo de colaborar com a construção do conhecimento jurídico acerca da matéria que ainda se apresenta como novidade, tanto do ponto de vista prático como teórico;

3.6 Analisar as questões referentes à ocorrência de improbidade administrativa e atuar de acordo com o que propugna a Lei 8.429/92;

3.7 Utilizar a ação civil pública sempre que estiver presente a ocorrência a danos efetivos ou potenciais que envolvam a ordem urbanística.

Para finalizar, pertinentes são as palavras de GOULART [6], ao reafirmar que "cabe ao Ministério Público defender o projeto de democracia participativa, econômica e social delineado na Constituição. No atual momento histório é necessário frisar que, mais do que defender, o Ministério Público deve colocar-se como parceiro privilegiado de todos os setores da sociedade civil comprometido com a construção da democracia de massa, difundindo e representando os valores democráticos, fazendo atuar os direitos sociais, coletivos e difusos".

A nova perspecitva que se abre a partir do Estatuto da Cidade configura, sem dúvida, maneira bastante concreta de se pôr em prática os objetivos institucionais do Ministério Público em matéria de defesa da ordem urbanística, pautado pela busca de espaços mais justos e humanos e com os olhos voltados para a defesa e promoção dos direitos fundamentais da pessoa e da coletividade.


Notas

01. Amaitê Iara Giriboni de Mello. Estatuto da Cidade: a obrigatória participação do Ministério Público nos instrumentos da política urbana. In: Revista da Faculdade de Direito de Guarulhos/SOGE, ano 3 nº 5, jul/dez 2001, p 32.

02. Marcelo Pedroso Goulart, Ministério Público: objetivo estratético e princípios constitucionais, In Congresso Nacional do Ministério Público, Livro de teses Ministério Público e a cidadania, vol. 3, p.30.

03. Aluísio Pires de Oliveira e Paulo Pires de Carvalho, Estatuto da Cidade: anotações à Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, p. 126-127.

04. Palestra proferida em encontro promovido pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil realizado em São Paulo/SP no mês de novembro de 2001. Internet: site www.irib.org.br

05. Ibraim José das Mercês Rocha, Ação de usucapião especial urbano coletivo. Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade): enfoque sobre as condições da ação e a tutela. Internet: site www.jusnavigandi.com.br.

06. Op. cit, p. 31.


Referências bibliográficas

BRASIL. Estatuto da Cidade (2001). Estatuto da Cidade: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001.

CARVALHO, Paulo Pires e OLIVEIRA, Aluísio Pires de. Estatuto da Cidade: anotações à Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Curitiba: Juruá, 2002.

FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos. Conceito e legitimação para agir. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1991.

OSORIO, Letícia Marques (org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidade Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002.

SAULE Jr, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico. Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1997.

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Sobre a autora
Cynthia Regina de Lima Passos Miner

procuradora federal no Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MINER, Cynthia Regina Lima Passos. O papel do Ministério Público na implementação do Estatuto da Cidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3966. Acesso em: 22 nov. 2024.

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