Capa da publicação Iluminismo e escravidão: contradições na construção da dignidade humana
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Kant diante da escravidão e da descrição dos africanos: repercussões na construção do conceito de dignidade da pessoa humana.

Um debate com Susan Buck-Morss. Antes de Hegel, as contradições do discurso iluminista

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01/06/2015 às 13:47
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5. A Ideia de Raça em Kant e a sua Visão em Relação aos Negros

Como supracitado, a luta dos povos africanos pelo reconhecimento; a elevação destes à condição de seres livres e, portanto, dignos de direitos inerentes ao ser humano, formou um panorama em que se instaurou o medo, por parte das classes dominantes, de que os escravos se revoltassem contra os seus senhores e iniciassem uma onda de violência. Ainda, a partir desta nova apropriação do discurso iluminista, estariam ameaçadas a legitimidade do sistema escravista e as relações hierárquicas entre os povos, fatores estes que justificavam a superioridade europeia.

Era necessário impor limites àqueles que buscavam ultrapassar a sua posição na sociedade vigente. Sob este novo contexto, surgiu um campo teórico que visava estudar as singularidades dos seres humanos e utilizá-las de acordo com interesses político-ideológicos. Desenvolveram-se, então, estudos que dividiriam a espécie humana e naturalizariam as diferenças a partir da criação do conceito de raça.

Kant é creditado como o inventor desta ideia29. No entanto, qual seria a intenção deste autor ao trabalhar este tema dentro do referido contexto? Estaria este apenas objetivando explicar a variabilidade humana, descompromissadamente, sem aderir a nenhuma concepção político-ideológica? Em uma primeira análise, o conteúdo da Fundamentação da Metafísica dos Costumes nos leva a uma resposta negativa em relação a estes questionamentos. Porém, a visão que Kant tinha de outros povos, em especial dos africanos, conduz a uma outra interpretação.

Na obra Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime (1763), o autor define estas categorias estéticas (belo e sublime), as suas variações e analisa manifestações das mesmas na espécie humana em geral, na relação entre os sexos e na formação dos caracteres nacionais.

Dentre os povos abordados, pode-se fazer uma divisão: europeus e não europeus. Dos primeiros, o autor destaca os ingleses, franceses, espanhóis, italianos, holandeses e os alemães. Dos segundos, são destacados os árabes, persas, japoneses, indianos, chineses e africanos. Porém, percebe-se uma certa superioridade daqueles em relação a estes, podendo-se depreender, inclusive, o povo europeu como referência na descrição dos povos dos outros continentes, em alguns casos, conforme demonstrado no trecho abaixo:

Se os árabes são como que os espanhóis do Oriente, os persas são os franceses da Ásia. […] Os japoneses pode­riam ser vistos como os ingleses desse continente, porém apenas quanto a uma ou outra qualidade, como a sua tena­cidade, que degenera na mais extremada teimosia, a sua coragem e desprezo pela morte. De resto, pouco demons­tram características de um gosto refinado 30

A superioridade europeia em sua abordagem se destaca também em relação aos indianos e chineses:

Os indianos possuem um gosto dominante para o caricaturesco, daquela espécie que atinge o extravagante. […] Que ridículas caricaturas não con­têm os cumprimentos exagerados e afetados dos chineses! Mesmo suas pinturas são caricaturescas, e representam figu­ras maravilhosas e inaturais, que não se podem encontrar em nenhuma outra parte do mundo. 31

Ainda, são descritos os selvagens da América do Norte, dando-se destaque aos sentimentos de honra, honestidade e amizade absoluta. Tais características são atribuídas, principalmente, ao selvagem canadense, demonstrando os outros indígenas deste continente poucos vestígios de um caráter espiritual propenso ao sentimento refinado.32

Em relação à descrição dos africanos, o autor, além de destacar a superioridade branca, explicita o seu desprezo pelos referidos povos. As suas características são abordadas deturpadamente. Estes são entendidos como um segmento à parte em relação aos brancos, sendo incapazes de desenvolver talentos ou de contribuir de forma significativa em campos como a ciência ou a arte.

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre brancos, constantemente arrojam‑se aque­les que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam‑se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matra­queadores, que se deve dispersá‑los a pauladas. 33

Na relação entre os sexos, os europeus seriam aqueles que mais prezam por mantê-la de forma decente, moral e satisfatória. Já em relação aos africanos, é destacada a situação de “escravidão” enfrentada pelo sexo feminino naquelas terras:

Nas terras dos negros o que esperar de melhor do que ordinariamente lá se encontra, ou seja, o sexo feminino na mais profunda escravidão? […] A propósito, o padre Labat ` conta que um carpinteiro negro, a quem ele censurara o comporta­mento arrogante para com a mulher, lhe respondeu: "Vocês brancos são verdadeiros estultos, pois primeiro concedem muito a suas mulheres, e depois se queixam, quando elas os infernizam". É bem possível haver, nessas palavras, algo que deva ser levado em conta; só que, para ser breve, esse sujeito era preto da cabeça aos pés, argumento sufi­ciente para considerar irrelevante o que disse. 34

Assim, apesar de reconhecer diferenças entre os povos europeus, na referida obra, Kant não as considera a ponto de estabelecer relações de inferioridade entre os mesmos. Entre estes, apesar de suas peculiaridades, ainda pode-se perceber um traço comum: a condição de ser humano. Em relação aos povos não europeus, em sua maioria, aqueles descritos em sua obra ainda têm atribuídos a si características em comum com os brancos. Entretanto, percebe-se no seu discurso um maior distanciamento desta condição em relação aos negros africanos.

Seria proposital a construção desta ideia? A partir deste ensaio, pode-se constatar uma visão deste autor em relação aos povos não europeus que legitima a superioridade europeia. Ainda, abre-se campo para o desenvolvimento de discursos que viriam a justificar a escravização dos povos africanos. Posteriormente, Kant aprofunda os seus estudos sobre a origem da espécie humana e desdobramento desta em linhagens genéticas diversas. O conceito de raça tornaria possível que fossem atribuídos critérios de diferenciação entre os povos distribuídos pelo globo. Há, portanto, uma concepção bem distante daquela visão universal do homem proposta por este mesmo autor em outras obras.


6. A ideia de Raça e a Antropologia de Kant

Apesar de explícita a visão deste autor em relação aos não europeus, na obra Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, ainda não se encontra desenvolvida delimitadamente a ideia de raça em um estudo específico. Susan M. Shell na obra Kant's Concept of Human Race, explora o fato de Kant (filósofo que poderia ter as suas ideias claramente relacionadas à superação do racismo) poder ser identificado com as origens deste conceito.

A autora expõe algumas passagens presentes em reflexões não publicadas do referido autor que vêm a ratificar este entendimento, constatando as diferenças entre brancos e não brancos, que justificariam a civilidade dos primeiros, a sua preservação e a não mistura entre diferentes raças. É ressaltada, também, a incapacidade dos negros de governarem a si mesmos, o que os levaria à escravidão, e a confiabilidade da procedência da raça branca no que diz respeito à história do homem:

(Whites): contain all natural motive springs in affects and passions, all talents, all predispositions to culture and civilization and can obey as well as rule. [...]

They are the only ones who constantly progress toward perfection... [...] Blacks can come disciplined and cultivated but never truly civilized... […] All races will become exterminated/uprooted [ausgerottet] (Americans and Blacks cannot govern themselves. They thus serve only as slaves) only not the whites. The Stubbornness of Indians in their usages is the reason why they do not melt down with the whites into a single people. It is not good that they intermix. On the race of Whites, who have only brought about all revolutions in the world. Nomads have only brought violent revolutions, not ones that sustain themselves... Our (ancient) history of man reliably proceeds only from white race (AA 15: 878-9). 35

Das Diferentes Raças Humanas (1775), vem a ser o primeiro ensaio em que Kant trata especificamente o conceito de raça36, apesar de ter sido mencionado este termo em obras anteriores. Esta definição se daria a partir da concepção de espécie, que teria como base duas premissas: 1. A unidade biológica da espécie humana (monogênese) e, 2. A existência de sementes que podem ou não se desenvolver no ambiente (predisposições). Por meio de predisposições, a Natureza realizaria as suas metas para espécie humana. Portanto, calcado nestas premissas, o autor conclui que raças seriam subcategorias de uma mesma espécie.37 Constituir-se-ia uma nova forma de entender a história da natureza e, consequentemente, a história do homem.

Esta perspectiva ofereceria maior e melhor conhecimento da natureza e permitiria a resolução de problemas específicos relacionados à unidade das espécies e à diferença entre as raças, os povos e os sexos. 38Tais questões seriam melhor trabalhadas nos cursos de antropologia pragmática ministrados por Kant entre os anos de 1773 a 1796 e se sintetizariam na obra Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático, publicada em 1798.

Michel Foucault, na obra Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant, explora a relação do referido escrito, publicado em 1798, com todo o trajeto da obra kantiana, desde a sua fase pré-crítica. Este acredita que o texto de Kant, desenvolvido no intervalo de vinte e cinco anos, encontra-se carregado de sedimentações e encerrado no passado em que se constituiu.39 Ainda, questiona se a concepção deste autor em relação à imagem do homem se encontra realmente desprovida de elementos filosóficos que a alterem em sua essência.

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Haveria, desde 1772, e subsistido talvez no fundo da Crítica, certa imagem concreta do homem que nenhuma elaboração filosófica alterou no essencial e que se formula, enfim, sem maiores modificações nos últimos textos publicados por Kant? 40

Posteriormente, ressalta o fato de, nesta mesma obra, serem percebidos elementos de textos anteriores à 1772, reportando, portanto, à fase pré-crítica, guardando diversas semelhanças com escritos como Observações Sobre o Sentimento do Belo e do Sublime (1764), Ensaio Sobre as Doenças do Espírito (1764), Ensaio Sobre as Raças (1775).

Porém, por mais incertas que sejam, estas indicações não podem ser negligenciadas. Confrontando o que elas podem ensinar com textos da Antropologia e os da Crítica, podemos esperar ver de que modo a última obra de Kant achava-se imbricada, ao mesmo tempo, na série de pesquisas pré-críticas, no conjunto do próprio empreendimento crítico, e no grupo de trabalhos que, à mesma época, tentam alcançar um conhecimento específico do homem. E, de maneira paradoxal, esta tríplice imbricação torna a Antropologia contemporânea, ao mesmo tempo daquilo que precede a Crítica, daquilo que a realiza e daquilo que logo irá liquidá-la. 41

Este complexo de influências presentes na Antropologia de Kant, leva à conclusão de que a sua filosofia e a sua antropologia, por vezes, acabam se influenciando reciprocamente. Esta compreensão vem a dar visibilidade à contradição existente entre uma concepção antropológica, construída sob a influência de diversos períodos da obra de Kant, e uma concepção filosófica que atribuía a liberdade e a igualdade a partir de um ponto de vista universal. Tal contradição abre margem para diversos questionamentos que dizem respeito, principalmente, a quem se direcionava conceito de dignidade da pessoa humana engendrado por este autor.


7. Conclusão: “Dignidade para quem”?

Todo o panorama feito a respeito das obras de Kant no presente estudo dá uma interpretação à sua teoria sobre as raças que vai além intenção de, apenas, explicar a variedade genética presente na espécie humana. A sua visão a respeito dos povos não europeus confirma a forte carga político-ideológica presente em sua obra quando vem a desenvolver este conceito. Ao dividir a espécie humana em diversos grupamentos, são destacadas diferenças que servem de substrato para teorias que justifiquem a formação de hierarquias sociais. Ainda, tais teorias acabam “caindo como uma luva” para os diversos autores que, no século XIX, buscariam, por meio do conceito de raça, estabelecer estamentos dentro da sociedade vigente, de acordo com interesses políticos e econômicos.

Questiona-se, novamente: estaria Kant a par das reais consequências que a sua teoria poderia gerar? Teria, realmente, a sua teoria ganhado proporções além do que ele poderia ter imaginado? De acordo com os diversos fatos explorados em suas obras, e com a visão que este possuía de outros povos, principalmente dos africanos, por diversos momentos explicitada em suas em reflexões publicadas e não publicadas, pode-se concluir que este autor já possuía uma certa noção da forma como as suas ideias poderiam ser apropriadas.

Cabe, também, ressaltar que a publicação da obra Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático, no ano de 1798, vem a coincidir com a Revolução do Haiti, que já havia se iniciado no ano 1791 e teve o seu fim em 1804. Tal fato abre margem para mais questionamentos a respeito das intenções de Kant ao abordar nesta obra temas como as diferenças existentes entre os diversos povos distribuídos pelo mundo, a divisão da espécie humana em raças, confirmando, assim, posicionamentos levantados ao longo de toda a sua carreira literária e confluindo o seu pensamento com o de diversos autores que buscavam uma solução para colocar amarras à “onda negra” que se espalhava a partir do referido movimento revolucionário.

Todo este contexto, permite uma ressignificação do real objetivo de Kant ao construir o conceito de dignidade humana. Segundo o mesmo, a razão seria o principal meio de que disporia o homem para que fosse alcançada a liberdade e a igualdade. No entanto, ao dividir o ser humano em raças; ao demonstrar explicitamente a sua posição em relação aos negros, o referido autor demonstra um discurso que leva a concluir que a sua teoria não viria a ser tão universal quanto parece.

A razão vem a ser o que diferencia o homem dos outros seres que habitam a superfície terrestre. Os africanos são abordados na obra kantiana como seres que carecem deste quesito e, portanto, se encontram distantes da condição de humanidade estabelecida pelo europeu. A inferioridade destes povos seria justificada por uma limitação natural que dificultaria o acesso à razão e, consequentemente, o acesso à liberdade e à igualdade, princípios estes que sustentariam a dignidade humana e forneceriam as ferramentas para que o ser humano atingisse o progresso.

Em sua Antropologia, Kant afirma que

O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e das ciências, e por maior que possa ser sua propensão animal a se abandonar passivamente aos atrativos da comodidade e do bem-estar, que ele denomina felicidade, ele está destinado a se tornar ativamente digno da humanidade na luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca para ele. 42

A partir do trecho acima, se poderia, então, concluir que os povos africanos não teriam atribuída para si a dignidade, pois, segundo este mesmo autor, estes povos se aproximariam de todos os quesitos referentes à rudeza, conforme demonstrado anteriormente em diversos trechos de suas obras. Portanto, por não estarem aptos a lidar com a razão, estariam fadados à submissão e ao esquecimento.

Este processo veio a contribuir para que a Revolução do Haiti, movimento que veio a dar visibilidade à demanda dos negros por diretos que, até então, ao fim do século XVIII, eram entendidos como privilégios da elite branca, caísse no esquecimento no século seguinte em meio a teorias que buscavam inferiorizar tais camadas.

Diante desta constante em seu pensamento, questiona-se novamente: a quem estaria direcionada a dignidade defendida por Kant? Todos os fatos explorados no presente estudo levam a crer que este princípio seria destinado aos detentores da razão, aos povos que por meio desta atingiram o processo civilizatório e, portanto, estariam legitimados a mantê-lo de acordo com os seus interesses.

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Sobre o autor
Felipe Frazão

Ingressou na Universidade de Brasília no 2° semestre de 2009, na Faculdade de Direito. Atualmente, se encontra no 12° semestre de sua graduação.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Orientadores: Evandro Piza Duarte e Guilherme Scotti, professores titulares da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília

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