Resumo: O presente texto trata a respeito das contradições presentes no discurso iluminista de Kant, ao desenvolver o conceito de dignidade da pessoa humana, diante da escravidão e de sua visão a respeito dos negros africanos.
Palavras-chave: Iluminismo. Escravidão. Revolução do Haiti. Kant. Dignidade da Pessoa Humana. Raça. Hierarquização da espécie humana. Século XIX.
Introdução
O século XVIII foi marcado por uma série de Revoluções nas quais o movimento Iluminista teve um papel crucial para a afirmação de princípios como a igualdade e a liberdade. A razão seria o principal elemento por meio do qual o homem compreenderia a si mesmo e o mundo ao seu redor, podendo, desta forma, lidar com a natureza e traçar o caminho para o progresso. A humanidade seria o quesito essencial para que qualquer indivíduo vivesse de forma digna e tivesse acesso a direitos inerentes à tal condição.
No entanto, ao mesmo tempo em que este movimento filosófico se propagava, atingindo um alcance para além da Europa, havia uma discrepância gritante entre teoria e prática.2 A utilização de mão de obra de povos não europeus, principalmente de origem africana, nas principais colônias europeias no novo mundo era a uma constante neste período. O lucrativo tráfico negreiro seria a atividade que alimentaria a demanda por mão de obra nas plantações do Novo Mundo. A escravidão transformou-se na base da economia mundial do século XVIII.
Os principais autores do Século das Luzes, apesar de defenderem a liberdade como um estado natural do homem e um direito inalienável3, quando não se omitiam em relação à escravidão, desenvolviam estudos que visavam demonstrar as singularidades da espécie humana, e, a partir destas, formar uma teoria que justificasse a conformação da sociedade vigente. Estes estudos se intensificaram no século seguinte, formando, assim, uma “ciência das raças”, que classificaria o homem e formaria hierarquias sociais, buscando, assim, manter a superioridade europeia diante dos outros povos.
Immanuel Kant, um dos principais pensadores do Iluminismo europeu, apesar de ser um dos idealizadores do princípio da dignidade da pessoa humana, é considerado o inventor do conceito de raça4, desenvolvendo diversos argumentos a respeito. No entanto, a sua visão em relação aos povos não europeus e, principalmente, em relação aos negros, traz indícios de que a sua teoria também poderia ser inserida no paradoxo do pensamento Iluminista e, desta forma, influenciar, no século XIX, a utilização da ideia de raça como uma forma de segregar o ser humano de acordo com interesses específicos, distanciando-se de uma aplicação universal do princípio da dignidade da pessoa humana.
1. O Descompasso do Iluminismo
O movimento Iluminista, que se encontrava em constante expansão durante século XVIII, pregava a liberdade como um valor supremo e universal. Era imputado à escravidão o fardo de ser o grande mal da sociedade. A razão tornou-se fundamental à compreensão do próprio ser humano e do mundo que o rodeava. Esta viria a ser sinônimo de progresso espiritual.
Sendo superada a razão divina do século XVII, que estabelecia uma série de dogmas e relacionava o conhecimento humano a uma entidade extramundana, o século XVIII trouxe uma nova forma de compreensão dos fenômenos vividos pelo homem. A filosofia denota-se a partir do conhecimento dos fatos. Por meio da razão, constrói-se o novo. Assim, por Iluminismo entendemos o esforço por construir de novo, a partir da razão, as relações humanas libertas de todos os vínculos com a tradição e o preconceito 5.
Immanuel Kant definiu Iluminismo como o momento em que a humanidade saiu da imaturidade em que ela própria incorreu. Esta imaturidade consistiria em empregar a própria compreensão sem a orientação do outro. Portanto, seria uma autonomia intelectual, a capacidade de pensar por si mesmo. 6
No entanto, este esforço em construir o novo encontrava-se permeado por um paradoxo. Ao mesmo tempo em que era pregado o ideal libertário e igualitário, o mundo convivia com a escravização de não europeus nas colônias pertencentes às principais potências econômicas daquele período. Desta forma, a expansão do Iluminismo acabou por ser insuficiente para que estes ideais penetrassem nas entranhas do pensamento ocidental, que continuava a tratar com naturalidade o uso de mão de obra escrava.7
Susan Buck-Morss, a partir desta ótica, na obra Hegel e Haiti, faz um panorama deste movimento e da influência da escravidão na ascensão das principais potências do período. Ainda, aborda este mesmo tema sob o ponto de vista dos principais pensadores iluministas.
Na Inglaterra, a autora mantém o seu foco nos discursos de Thomas Hobbes e John Locke, autores que influenciaram na propagação do referido movimento. Para o primeiro, a escravidão vem a ser uma consequência da guerra de todos contra todos, fazendo parte das disposições naturais do homem. Segundo o mesmo, esta instituição seria uma consequência inevitável da lógica do poder, não sendo, portanto, encarada como uma grande problemática.
Por outro lado, Locke, apesar de ver nesta um ultraje à condição humana, não se referia à escravidão negra, tratando-a como justificável, principalmente pelo fato de ser uma questão privada.
Mas o ultraje de Locke contra "as cadeias para toda a humanidade" não era um protesto contra a escravização de africanos negros em plantações do Novo Mundo, e muito menos em colônias que fossem britânicas. [...], Locke "claramente considerava a escravidão negra como uma instituição justificável". A liberdade britânica significava a proteção da propriedade privada, e os escravos eram propriedade privada. Enquanto os escravos se situassem no âmbito de autoridade doméstica, sua condição era protegida pela lei [8]
Segundo Lynn Hunt, na obra A Invenção dos Direitos Humanos, uma História, Locke definia como direitos naturais: a vida, a liberdade e a propriedade. No entanto, a sua abordagem se afastava de uma concepção universalista, focando, principalmente a questão da propriedade.
“Entretanto, apesar da influência de Hobbes e Locke, uma grande porção, se não a maior parte da discussão inglesa, e portanto americana, sobre os direitos naturais na primeira metade do século XVIII manteve o foco sobre os direitos particulares historicamente fundamentados do inglês nascido livre, e não sobre direitos universalmente aplicáveis” 9
A escravidão de cativos proviria de uma guerra justa, não sendo, portanto, questionada.10
No contexto francês, os pensadores iluministas escreviam a respeito do “bom selvagem” das colônias na América, sendo a defesa da igualdade com base na igualdade racial algo raro. Dentre estes, pode ser listado Rousseau. Apesar de ter escrito sobre a escravidão, não manteve o seu foco voltado para a condição do negro. Esta instituição era abordada de um modo geral, sendo mais relevante falar da escravidão de outros povos “não tão importantes economicamente” como os negros naquele contexto.
O Code Noir, código legislativo francês sancionado por Luis XVI em 1685 e erradicado em 1848, que legalizou a escravidão em todos os territórios sob a jurisdição francesa, se encontrava em vigência no auge da expansão do movimento iluminista. Entretanto, este deixava de ser questionado por vários pensadores, estando Rousseau neste rol.11 O mesmo não deu ênfase ao referido dispositivo legal no seu discurso “anti-escravidão”, embora estivesse a par da situação do negro africano em questão.
Na América do Norte, foram invocados pelos colonos os princípios de liberdade e igualdade para que fosse conquistada a independência em relação à metrópole britânica. Entretanto, era possível também perceber certa incoerência entre discursos, dado o fato de haver dentre os mesmos arquitetos da Revolução grandes senhores de escravos. Apesar de haver demandas por libertação e igualdade, apesar de existirem movimentos anti-escravagistas, preferiu-se tolerar esta incoerência, sendo mantida a escravidão no texto Constitucional dos Estados Unidos da América.12
Thomas Jefferson, embora tenha tratado a respeito dos males do tráfico de escravos e reconhecido sobre estes a abrangência dos direitos humanos, não propôs medidas concretas que viessem a tirar os negros desta condição.
Os direitos humanos, pela definição de Jefferson, não capacitava os africanos – muito menos os afro-americanos – a agir em seu próprio nome.” Jefferson utilizava o termo “direitos humanos” sob uma perspectiva mais passiva e menos política do que os direitos naturais ou direitos do homem. 13
Assim, o panorama ideológico exposto acima mostra que os principais responsáveis pela propagação do Iluminismo agiam de forma indiferente quanto à extensão dos seus princípios aos povos africanos. Porém, estas mesmas ideias atingiram um alcance para além dos limites da Europa, inspirando movimentos que objetivariam a superação da condição da escravidão nas principais colônias pertencentes às potências. Destes, a Revolução do Haiti foi o que teve maior relevância.
2. A Revolução do Haiti e a Luta Pelo Reconhecimento
Com o advento da Revolução Francesa, passou a fazer parte do cotidiano dos europeus o ideal de liberdade, de luta contra a “escravidão”, sendo condenada qualquer ação violadora deste princípio. No entanto, nas colônias, fontes de riqueza das metrópoles, esta concepção era entendida em um diferente sentido. Várias dúvidas surgiam a respeito do real sentido de igualdade no âmbito das colônias. A quem se estenderia a condição de cidadão livre?
O desenrolar da lógica da liberdade nas colônias ameaçava decompor toda a estrutura institucional da economia escravagista que sustentava uma porção substancial da burguesia francesa, e essa revolução política era, por certo, sua. 14
A Revolução do Haiti mudou a concepção de liberdade pregada pelo Iluminismo francês, provando que esta havia também de ser concedida aos negros, que deveriam ser vistos como seres humanos, instaurando-se, assim, campo para o desenvolvimento da ideia de igualdade.
Como se deu este processo de reconhecimento? O que fez os negros da colônia de Saint-Dominique pegarem em armas e irem à luta em busca da superação de sua condição de escravo? Buck-Morss, traz à tona uma abordagem a partir de Hegel para auxiliar na compreensão de como se deu este processo. Este autor evidencia a discussão sobre o tema da escravidão, diferentemente de seus antecessores e contemporâneos, e dá um caráter concreto a tal problemática, deixando de negar a existência desta realidade. Na Dialética do Senhor e do Escravo, exposta na obra Fenomenologia do Espírito, o autor explica que, inicialmente, o escravo entendia a sua existência como condicionada à satisfação das necessidades do seu senhor. Assim, o escravo seria visto como “coisa” e carecia de reconhecimento alheio15.
Entretanto, a partir do momento em que o negro compreende que, na verdade, o proprietário depende do escravo para manter a sua superabundância de riquezas, o quadro vigente inverte-se. Esta classe, então, desenvolveu uma autoconsciência na qual passara a compreender a importância do seu papel dentro do sistema em que se encontrava inserida. Ao assumir esta submissão em relação ao senhor, o escravo contribuiria para que esta situação fosse mantida, sendo, por este lado, culpado em parte pela condição em que se encontra. Seria, portanto, necessário abrir mão da própria vida, por meio de uma “prova de morte”16, se dispondo à luta, para que a liberdade fosse alcançada.
Esta nova compreensão da relação entre o senhor e o escravo somada à apropriação do discurso de igualdade e liberdade foram cruciais para que o negro fosse à luta em busca de reconhecimento como pessoa humana e, portanto, como digno de acesso aos direitos inerentes a tal condição.
A vitória dos caribenhos, desta forma, tornou-se uma evidência da superação da submissão para um patamar de reconhecimento dos ideais da Revolução Francesa estendidos aos negros. A partir deste novo contexto, foi dada uma nova significação aos conceitos de liberdade e igualdade. Aqueles que, em determinado momento, eram vistos como subalternos passam a ser protagonistas, propondo novos rumos à História.
A revolução real e bem-sucedida dos escravos caribenhos contra seus senhores é o momento em que a lógica dialética do reconhecimento se torna visível como a temática da história mundial, a história da realização universal da liberdade 17
No entanto, em face desta nova conjuntura, na qual os negros ultrapassavam os limites da sua subalternidade, também era formado um campo em que se objetivava um novo discurso para que tal condição fosse mantida. O medo decorrente do resultado dos eventos ocorridos em Saint-Dominique passou a tomar conta das elites nas principais colônias escravistas no mundo.18
No século XIX, a imagem que marca os atos de insurgência escrava, após a Revolução do Haiti, para as elites locais, em especial no ambiente urbano, é, ainda, a do medo. Porém, de um medo que não era apenas a projeção da relação cotidiana de violência entre senhor e escravo. Era o medo da possibilidade concreta de que aquelas relações de hierarquia e aquele mundo, escravista, pudessem deixar de existir, e que essa mudança fosse provocada pela violência dos escravos contra seus senhores. 19
Iniciou-se o estudo de teorias que viessem a legitimar a inferioridade deste povo e, consequentemente, instituir relações hierárquicas baseadas em diferentes “níveis de humanidade”.
3. A reação à “onda negra”
Como exposto no capítulo anterior, o sucesso da insurreição dos negros contra a escravidão na colônia de Saint-Dominique veio a causar uma reviravolta no contexto europeu no fim do século XVIII. A estrutura escravista, base econômica das principais potências europeias neste período, ameaçava ruir e tornava-se necessária a construção de um novo discurso que pudesse sustentá-la. A escravidão deixa de ser um destino inevitável aos negros.
Há um paradoxo que é apenas aparente na enunciação de um discurso elaborado sobre as desigualdades das raças ser coincidente com o momento em que a escravidão deixa de ser um destino inevitável dos negros. Isso porque onde as hierarquias são naturalizadas não há necessidade de um investimento discursivo de maior envergadura. 20
Coincide com este momento a formulação de teorias que buscam ressaltar as diferenças existentes entre as raças humanas e, assim, construir relações hierárquicas baseadas nas mesmas.
Este terreno já havia começado a se formar no período do Iluminismo. O desenvolvimento das ciências com base na razão passou a fazer parte deste novo paradigma. Dentre estas, a biologia, partindo da observação, da experiência e da descrição dos hábitos humanos, veio a denominar, também, o foco do conhecimento. Por meio dela, são descritos os mistérios do mundo, principalmente em relação à diversidade humana, quanto à sua fisiologia e aos seus costumes.
Estabelece-se, dessa forma, a biologia como novo paradigma para o conhecimento da natureza porque ela, ao contrário da física teórica e da matemática, oferece todas as condições para o conhecimento das singularidades. 21
O conceito de raça tomou um caráter biológico e imutável, passando a ser o principal critério de atribuição de direitos. As conclusões a respeito deste campo do conhecimento influenciariam, ainda, outros campos. Filósofos iluministas como, Buffon, Voltaire, Diderot, consideravam como essencial para a definição do homem a capacidade de interferir na natureza ao seu redor. Utilizando-se de uma metodologia retirada da biologia, os principais pensadores deste período definiram o homem e as suas singularidades a partir da investigação de indivíduos dos diversos continentes (África, América, Europa e Ásia).
A forma como o homem interage com tudo aquilo que o rodeia, transformando, dominando; a influência que ele vem a exercer sobre o outro, impondo os seus hábitos, suas paixões, o seu modo de viver, seriam fatores que definiriam o seu nível de humanidade e, consequentemente, o direito de se intitular superior ou inferior.
Do encontro entre a ciência iluminista e os fatos, o homem sai fortalecido devido à potência de sua razão, que se sobrepõe a toda hierarquia, e enfraquecido pela fragilidade do seu corpo que se submete à mesma hierarquia condenada pela razão. Esta é apenas uma das contradições do Iluminismo. 22
Todo este complexo de ideias abre campo para o desenvolvimento de um “processo de racialização científica” no século XIX, que viria a estudar as diferenças existentes entre os seres humanos e proporcionaria, assim, a utilização de dados que legitimassem um discurso de hierarquização entre os povos. Deste modo, se tornava ainda mais evidente a contradição existente dentro da ideia de igualdade, que acabava se adequando às posições que satisfizessem a classe dominante.
O conceito de dignidade não seria mais universal, inerente a todo ser humano, mas sim limitado a determinados grupamentos. Immanuel Kant, que foi um dos principais autores a abordar este tema no século XVIII, o fez de forma excludente, deixando que os elementos presentes em seu tempo contaminassem a sua filosofia e o inserissem dentro da doutrina racista que influenciou os pensadores do século seguinte.
4. Kant e o conceito da dignidade da pessoa humana:
Immanuel Kant foi um dos principais expoentes do movimento iluminista no séc. XVIII, vindo a esboçar as origens da ideia de dignidade da pessoa humana. Para compreender o caminho traçado até este princípio universal, é necessário fazer um panorama de algumas características referentes ao seu pensamento.
Marilena Chauí vê na obra deste autor a noção do homem como um ser moral e natural simultaneamente. Mesmo possuindo racionalidade e, por meio desta, alcançando a liberdade, submete-se, ainda, à causalidade natural, ou seja, está sujeito a sentimentos, comportamentos, emoções, que são parte de sua natureza, o que acaba por impedi-lo de alcançar a autonomia, vindo a ser impelido a agir por interesse. Portanto, esta faceta natural o leva a utilizar coisas e pessoas como meios para o alcance de determinados fins.23
A razão tem o papel de impor limites ao nosso lado natural, manifestando, desta forma, o nosso ser moral. Para tanto, é necessário deixar de agir segundo interesses para assumir a forma do dever. Conclui a autora que o dever é uma forma que vai nos guiar a agir moralmente; é um imperativo, não admite formas que variem com a situação a qual se encontre adstrito, é universal. É, portanto, um imperativo categórico, valendo incondicionalmente.24
A partir deste raciocínio, Kant fundamenta a dignidade da pessoa humana. As bases teóricas deste conceito se estruturam, principalmente, no seguinte imperativo categórico: Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio.25 Portanto, o ser humano, para que seja provido de dignidade, deve ser tratado como fim da ação e não como um mero instrumento de realização de interesses.
Todo ser racional, ao ser entendido sob esta ótica, possui um valor intrínseco, consistindo a sua dignidade no fato de não obedecer nenhuma lei que não venha a ser também instituída por ele mesmo.26 Este deve ter atribuído a si um preço, porém, impagável, sendo, desta forma, um fim em si. A sua autonomia não é condicionada à vontade de outrem, ou seja, não deve ser utilizada como um meio de satisfação de interesses, principalmente pelo fato de ser o homem provido de racionalidade e da condição de ser humano.
O autor exemplifica:
[…] De maneira ainda mais clara se apresenta essa colisão quando tomamos como exemplo os ataques à liberdade ou à propriedade alheias, pois é então evidente que o violador dos direitos dos homens tenciona servir-se das outras pessoas como simples meios, deixando de considerar que elas, como seres racionais que são, devem sempre ser tratadas simultaneamente como fins, isto é, somente como seres que devem poder conter em si o fim dessa mesma ação. 27
No trecho acima, entende-se que o homem deve ser tratado como um fim em si mesmo, no sentido em que não deve ser usado como um meio para que um indivíduo tenha acesso à liberdade. Garantir esta é garantir que o outro também seja livre. Assim, se o meu fim é ser livre, o semelhante também o deve ser.
Tais conceitos são defendidos arduamente na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes. A partir desta lógica, os homens são iguais entre si e têm acesso aos mesmos direitos, não podendo ter cessada a sua liberdade por motivo algum. Esta deve ser atribuída a todos os seres racionais. Portanto, uma vontade somente será considerada própria se eivada desta ideia. Sob este raciocínio, igualdade, autonomia da vontade e racionalidade são pressupostos da liberdade e, consequentemente, sustentáculos da dignidade humana.
Não basta atribuir liberdade à nossa vontade, seja com o fundamento que for, se não tivermos razão suficiente para atribuí-la também a todos os seres racionais. Pois, como a moralidade nos serve de lei somente quando somos seres racionais, ela tem de valer também para todos os seres racionais; e como não pode se derivar senão da propriedade da liberdade, a liberdade tem de ser demonstrada como propriedade da vontade de todos os seres racionais. 28
Todavia, apesar de Kant desenvolver toda uma análise em relação aos referidos princípios, há fatos que demandam um olhar mais apurado no que diz respeito a quem realmente se direcionava o seu discurso.