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A limitação do horário de funcionamento de bares e similares sob a luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

01/04/2003 às 00:00
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1. NOÇÕES GERAIS

Na cidade de Diadema/SP, em 13 de março de 2002, foi promulgada a lei municipal número 2107, cuja regulamentação foi realizada em 10 de maio de 2002, pelo decreto 5550. Essa lei, cuja apreciação ora se inicia, versa precipuamente sobre a limitação ao período compreendido entre seis e vinte e três horas, do horário de funcionamento dos estabelecimentos onde haja comercialização de bebidas alcoólicas para consumo imediato no próprio local.

Antes de apreciar especificamente o mérito da vedação em apreço, se faz mister discorrer sobre as circunstâncias em que ela se deu, bem como sobre os frutos que têm sido por ela gerados.

Preocupado com a hodierna elevação dos índices de criminalidade, o poder público da referida cidade mapeou na mesma, quais eram os horários e locais de maior incidência de homicídios, constatando que sessenta por cento dos supracitados crimes ocorriam entre vinte e três e quatro horas, no interior de bares, ou na saída dos mesmos. A par disso, e em prol da segurança pública, hoje tema em pauta na mídia e nos meios políticos, foi elaborado o ato legislativo em questão, que aliado à rigorosa fiscalização de seu cumprimento, entre outras medidas, com grande eficiência alcançou os fins pretendidos.

É de se observar todavia, que não obstante aos seus nobres objetivos e comprovada eficiência, a lei em apreço representa uma indubitável lesão à liberdade individual, principalmente no tocante à livre iniciativa, que é constitucionalmente resguardada, com o status de direito fundamental. Entrementes, indispensável é destacar que o simples fato de ser determinado direito constitucionalmente tutelado, não implica necessariamente que qualquer ato que o contrarie seja inconstitucional, visto que, em face ao fato de que a Carta Magna deve ser sempre interpretada sistematicamente, nenhum direito, mesmo que fundamental, é absoluto.

Da supracitada relatividade dos direitos fundamentais não decorre a possibilidade de que sejam eles livremente atentados por atos administrativos, legislativos ou judiciários, e sim que, excepcionalmente, através da aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, se podem autorizar certas limitações às garantias fundamentais, quando isso for imprescindível para resguardar outras garantias de igual ou superior importância.

Desse modo, pode-se afirmar com segurança, que a aplicação dos princípios em tela é o único meio idôneo para legitimar qualquer forma de desrespeito às garantias individuais, uma vez que segundo Luís Roberto Barroso, são os princípios em comento, "parâmetros de valoração dos atos do poder público para aferir se estão eles informados pelo valor superior inerente a todo o ordenamento jurídico: a justiça".

Os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, máximas que norteiam este estudo, devem grande parte de seu desenvolvimento ao direito norte-americano, onde passaram por duas fases que não se excluem, mas sim convivem até hoje. Em um primeiro momento tiveram uma ênfase meramente processual, com expressa rejeição de qualquer conotação substantiva que permitisse ao judiciário apreciar o caráter injusto ou arbitrário do ato legislativo. Já num segundo momento, abriu-se ao judiciário um amplo espaço para examinar o mérito dos atos do poder público, com a redefinição da idéia de discricionariedade. Para fundamentar essa abertura, que a princípio poderia ser reputada como uma inobservância da divisão de poderes, passou-se a entender que conquanto a definição das políticas públicas caiba exclusivamente aos membros democraticamente eleitos dos poderes executivo e legislativo, cabe ao poder judiciário zelar pela preservação da vontade do povo, representada pelo constituinte originário, de forma que não deve o judiciário hesitar em intervir quando qualquer ato do poder público contrariar a ordem constitucional.


2. ANÁLISE DIRETA DA LEI MUNICIPAL 2107 SOB A LUZ DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE

Delineados os contornos deste estudo, e explicitada a idoneidade dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade para aferir a legitimidade de atos legislativos, mister é que se passe a aplicá-los diretamente sobre o tema proposto. Para que os atos do poder público que gerem qualquer forma de lesão a diretos fundamentais, e in casu, de modo especial, os de caráter legislativo, possam ser considerados em conformidade com os princípios inspiradores deste estudo, faz-se necessário que estejam eles em conformidade com os três subprincípios da proporcionalidade e razoabilidade: adequação, necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito.

2.1. Adequação

Sob este enfoque considera-se razoável determinado ato do poder público - nada obstante as lesões por ele causadas às liberdades individuais - caso nele haja uma adequação entre motivos, meios e fins, ou seja, caso os meios empregados sejam idôneos para atingir os fins colimados, sendo estes últimos legítimos, isto é, inspirados por valores constitucionais tais como solidariedade, ordem, segurança e paz social.

Inegável é que a segurança pública, fim colimado pela lei municipal 2107 de cidade de Diadema, é um motivo constitucionalmente legítimo, porquanto nela se encerra a tutela de vários direitos expressamente consignados pela Constituição Federal, tais como a vida, a integridade física e o patrimônio.

Já no tocante à idoneidade das restrições impostas pela lei em tela, para alcançar seus supracitados fins, os números falam por si mesmos, porquanto segundo os dados da polícia, em Diadema, já no início da aplicação destas limitações, relativamente ao mesmo período do ano anterior, houve uma redução superior a sessenta por cento no número de homicídios, acidentes de trânsito e agressões.

2.2. Necessidade ou exigibilidade

Segundo este pressuposto, para que um determinado ato do poder público que lesione alguma liberdade individual seja considerado em conformidade com os princípios em apreço, imprescindível é que seja ele, dentre os idôneos para alcançar os fins pretendidos, o menos gravoso aos diretos fundamentais.

Destarte, para se aferir se a lei 2107/02, do município de Diadema, corresponde às exigências deste subprincípio da proporcionalidade e razoabilidade, mister se faz preliminarmente discorrer brevemente sobre seu efetivo potencial limitador de garantias fundamentais.

A lei em foco tem como essência a determinação de que os estabelecimentos onde haja venda de bebidas alcoólicas, para consumo imediato no próprio local, tenham seu horário de funcionamento estabelecido entre seis e vinte e três horas. Entretanto, é de se observar, que esta estipulação não é absoluta, visto que o referido horário poderá ser prorrogado, ou até mesmo se tornar não obrigatório, para o estabelecimento que obtenha um alvará de funcionamento renovável anualmente. Tal alvará será concedido àqueles que: detenham licença da vigilância sanitária e da gerência de Meio–Ambiente para acústica; tenham acessos para pessoas portadoras de deficiência; possuam auto de vistoria do corpo de bombeiros; e, de modo especial, adotem medidas para garantir a integridade física de seus clientes (a adoção de tais medidas será arbitrada por uma comissão própria criada especialmente para este fim). Ademais, válido é acrescentar, que os estabelecimentos que não detiverem este alvará, poderão obter uma licença especial de efeitos análogos, a ser emitida pelo Departamento de Desenvolvimento Urbano. Acrescenta-se ainda, que os estabelecimentos comerciais denominados como padarias, poderão iniciar suas atividades às cinco horas.

Em face a essas ponderações, nítido fica que a vedação em tela não é revestida de caráter absoluto, e portanto, sua potencialidade ofensiva aos direitos fundamentais não é por demais elevada. Unindo-se isso ao fato de que, por ora, não se tem notícia de nenhuma medida legislativa de âmbito municipal que tenha com menor infringência a direitos fundamentais alcançado os resultados obtidos pela lei ora abordada, conclui-se irrefragavelmente que ela atende às exigências deste subprincípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

2.3. Proporcionalidade stricto sensu

Este elemento dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, cuja inobservância, segundo Klaus Stern, acarreta a inconstitucionalidade da medida legislativa, nada mais é do que ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para que se constate se é justificável, ou não, a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.

Em um primeiro momento, essencial é asseverar que, por um critério lógico, para que qualquer limitação a direitos individuais seja justificável, é de suma importância que ela tutele com essa interferência, direitos também fundamentais, porquanto estando estes no topo da hierarquia valorativa dos direitos, não seria razoável qualquer entendimento em contrário. Destarte, considerando-se que a lei em comento atende a essa exigência, uma vez que mitigando uma das esferas da liberdade individual, tutela ela, a vida, a integridade física, o patrimônio, entre outros valores fundamentais, para a aferição de sua razoabilidade e proporcionalidade, neste sentido estrito, mister é que se adentre no campo da valoração de cada qual desses direitos conflitantes. Para essa apreciação, de início, é de se ter em vista que não se está a mitigar o direito à liberdade como um todo, e sim a um de seus específicos desdobramentos. Está-se a proscrever o direito de, não preenchidos certos pressupostos legais, comercializar bebidas alcoólicas, no interregno compreendido entre 23:00 e 06:00 horas, e outrossim, por via reflexa, e no citado período, o direito de freqüentar tais pontos de comercialização. Sendo assim, é perfeitamente razoável e proporcional que, em face a este conflito entre direitos fundamentais, prevaleçam os direitos amparados pela lei em testilha, em detrimento da supracitada esfera da liberdade, até porque dessa forma, não se está a proteger somente aqueles que freqüentariam durante a madrugada os estabelecimentos em que são vendidas bebidas alcoólicas, que aliás se consumidas em excesso são bastante danosas à saúde, mas também às suas famílias e aos terceiros que, quiçá, se envolveriam em acidentes ou incidentes com eles.


3. CONCLUSÃO

Ante às considerações dantes aventadas, conclui-se que a lei 2107/02, do município de Diadema, conquanto limite uma das esferas do direito fundamental à liberdade, é constitucionalmente legítima, porquanto, não sendo nenhum direito revestido de caráter absoluto, preenchidos todos os pressupostos dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como ocorre in casu, autoriza-se essa limitação.

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Conclui-se ainda, que nada obstante à análise positiva que foi realizada acerca da proporcionalidade e conseqüente legitimidade da lei cuja apreciação foi objeto deste estudo, não se pode afirmar que vedações de igual teor possam ou devam ser aplicadas em outras localidades, posto que não necessariamente, em municípios com condições diversas, seria tal espécie de restrição adequada aos ditames da proporcionalidade e razoabilidade.

Essa possibilidade de que a adoção das restrições em apreço seja razoável e proporcional em algumas localidades, e não em outras, decorre principalmente do fato de que sua idoneidade para alcançar os fins colimados, elemento essencial para que haja a proporcionalidade, pode variar de um local para outro. Comparemos o caso de Diadema, onde em média, antes da aplicação da lei 2107/02, sessenta por cento dos homicídios ocorriam entre 23:00 e 04:00 horas, em bares e seus arredores, com destaque para aqueles que fazem uso das calçadas para colocação de mesas, com o caso de uma cidade, onde, por exemplo, em média, oitenta por cento dos homicídios ocorrem durante o dia, dentro de casa, ou onde apenas dez por cento dos acidentes de trânsito envolvam pessoas alcoolizados. Nesses casos, explicito ficou que conquanto em Diadema a limitação do horário de funcionamento de bares venha proporcionando maior segurança à população, igual limitação não surtiria os efeitos desejados no caso do segundo município, cujos números não recomendariam restrição de igual conteúdo.

Destarte, chega-se à conclusão de que para que legitimamente se imponham tais espécies de limitações à liberdade individual, mister é que, preliminarmente, na localidade onde se pretende implantar essas medidas, seja realizado um completo mapeamento dos horários e localidades de maior incidência de crimes, para que se possa auferir, com base nesses elementos, se tais restrições seriam adequadas para melhorar a segurança pública, e assim, não havendo medidas menos gravosas aptas para gerar tais resultados, se estariam em conformidade com as máximas do cotejamento de valores sob a luz do qual pautou-se este estudo.


BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4º. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20°. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

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MUG, Mauro. Lei Seca. O Estado de São Paulo, São Paulo, 23 de julho de 2002.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Cientifico. 21°. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

SILVA, De Plácido E. Vocabulário Jurídico. 17°. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16°. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

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Sobre o autor
Guilherme Eugênio Rodrigues

bacharel em Direito, assessor jurídico com atuação junto à Vara da Fazenda Pública da Comarca de Varginha (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Guilherme Eugênio. A limitação do horário de funcionamento de bares e similares sob a luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3975. Acesso em: 28 mar. 2024.

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