A lei de lavagem de capitais e o bem jurídico nela tutelado

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05/06/2015 às 15:26
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O artigo tem como objetivo fazer uma exposição sobre o crime de lavagem de capitais, abordando alguns pontos da lei que trata do referido crime, buscando provocar uma reflexão nos operadores do direito acerca do bem jurídico tutelado na Lei 9.613/98.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer uma breve exposição sobre o crime de lavagem de capitais, abordando alguns pontos da lei que trata do referido crime, buscando acima de tudo provocar uma reflexão nos operadores do direito acerca do bem jurídico tutelado na Lei 9.613/98, recentemente alterada pela Lei 12.683, de 9 de julho de 2012, que foi editada com o objetivo de tonar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de capitais.

Palavras-chave: lavagem de capitais – bem jurídico tutelado – lavagem de dinheiro – crimes econômicos.

Sumário: 1. Introdução. 2. Breves considerações acerca da lavagem de capitais. 2.1. Conceito de Lavagem de capitais. 2.2. Origem histórica. 3. O crime de lavagem de capitais. 3.1. Gerações da legislação. 3.2. Fases da Lavagem. 4. Principais inovações da Lei 12.683/12. 5. O bem jurídico tutelado. 5.1. A ordem socioeconômica. 5.2. Da Administração da Justiça. 5.3. Da Segurança Interna. 5.4. Do crime antecedente. 5.5.. Pretensão de confisco do produto do crime. 5.6. Da pluralidade de bens jurídicos. 5.7. Ausência de bem jurídico. 6. Considerações finais.


1. INTRODUÇÃO

Os crimes econômicos tem aumentado exponencialmente não apenas em nosso país, mas em todo o território mundial, daí a necessidade e a importância de escrevermos e refletirmos sobre o tema.

Na esteira desse aumento criminal supracitado, encontramos o delito de lavagem de capitais, que recentemente (em julho de 2012) recebeu especial atenção do nosso legislador, que editou a lei 12.683/12, trazendo profundas modificações ao diploma legal anterior.

Nesse artigo, iremos abordar alguns pontos específicos a respeito desse tema sensível e que preocupa todas as nações do nosso planeta, uma vez que é um crime que acomete praticamente todos (pra não dizer todos) os países capitalistas ao redor do globo.

O ponto principal desse trabalho é uma discussão que já havia com a lei antiga (Lei 9.613/98), qual seja, a respeito do bem jurídico que a lei em estudo tutela. Discussão essa que perdura mesmo com a edição do novo diploma, havendo posições doutrinárias tão divergentes quanto igualmente fundamentadas.

Buscaremos demonstrar os diversos entendimentos a respeito do tema, tanto na esfera doutrinária, quanto na jurisprudencial, procurando fortalecer e enriquecer o debate, fornecendo elementos de convicção para que possamos delimitar o bem jurídico de fato tutelado na tão comentada e debatida lei de lavagem de capitais.


2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LAVAGEM DE CAPITAIS

Embora nosso país tenha assumido o compromisso de combater a lavagem de capitais desde a assinatura da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (conhecida como Convenção de Viena) em 1988, apenas dez anos depois, mais precisamente em março de 1998 foi promulgado o diploma legal que tipificou a conduta como criminosa dentro do território nacional.

Juntamente com a edição do supracitado diploma legal, foi criado também o Conselho de Atividades Financeiras (COAF), cuja função é “promover o esforço conjunto por parte dos vários órgãos governamentais do Brasil que cuidam da implementação de políticas nacionais voltadas para o combate à lavagem de dinheiro, evitando que setores da economia continuem sendo utilizados nessas operações ilícitas”.1

2.1. BREVE CONCEITO DE LAVAGEM DE CAPITAIS

Antes de analisarmos a origem histórica do fato e do termo lavagem de capitais, imperioso demonstrarmos em que consiste o ato de “lavar dinheiro” para posteriormente analisarmos em que consiste o crime, como ocorre sua consumação e quais são os pressupostos para a sua incidência.

Pois bem, em uma perspectiva simplista, o ato de “lavar dinheiro” nada mais é do que transformar um dinheiro ilícito (dinheiro sujo) em um dinheiro lícito. Ou seja, aquele capital que não podia ter sua origem descoberta é desvinculado de sua origem criminosa para que possa ser aproveitado como se lícito fosse.

2.2. ORIGEM HISTÓRICA

O ato de lavar dinheiro não é novo, embora sua criminalização e crescente discussão sejam. Muitos mercadores na Idade Média já procuravam ocultar da Igreja os juros recebidos de seus devedores. Isso porque a avareza era um pecado mortal, assim os mercadores “mascarava” a origem “pecaminosa” dessas rendas.

É cediço que o ato de “transformar” dinheiro ilícito em lícito ficou conhecido com o termo lavagem de dinheiro (“money loundering) em virtude da máfia dos Estados Unidos, em meados dos anos trinta do século vinte, utilizar-se da exploração de máquinas de lavar roupas para justificarem a origem ilícita de seus recursos.

Em momento posterior, por volta dos anos sessenta, foi editada uma legislação de emergência na Itália, que entre outros delitos, buscava combater a prática da lavagem de dinheiro. O objetivo dessa legislação era dificultar a entrada, no circuito legal, de dinheiro proveniente dos delitos de roubo agravado, extorsão agravada e sequestro de pessoas.

De fato, o termo “lavagem de dinheiro” foi citado pela primeira vez em um processo judicial no próprio Estados Unidos, no ano de 1982, passando desde então a fazer parte do mundo jurídico.

Insta salientar ainda que é incontestável o fato que o crime de lavagem de capitais foi criado primordialmente como mais uma ferramenta para se combater o tráfico ilícito de entorpecentes

Em termos de edição de legislação, mais uma vez retornamos ao Estados Unidos e Itália. Os dois países foram os primeiros a incriminarem a prática da lavagem de dinheiro, incriminação que ganhou força internacionalmente com a já citada Convenção de Viena de 1988, realizada pela ONU – Organização das Nações Unidas.


3. O CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS

O conceito do que é a lavagem não se encontra expresso na legislação pátria. A lei, no seu artigo 1º, se limita a definir as condutas que são incriminadas no tipo legal, quais sejam, ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

Se não encontramos um conceito expresso na legislação, a doutrina também não traz um conceito único e inequívoco, entretanto praticamente traduzem o mesmo entendimento com palavras diferentes.

De acordo com Tigre Maia, “lavagem de capitais é o conjunto complexo de operações integrado pelas etapas de conversão, dissimulação e integração de bens, direitos ou valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de ilícitos penais, mascarando esta origem, para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da justiça”.2

Já Marco Antônio de Barros indica ser a lavagem um “conjunto de operações comerciais e financeiras que buscam a incorporação, na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita para dar-lhe aparência legal”.3

Ora, não discordando das brilhantes definições dos autores supracitados, mas a lavagem de capitais, como dito anteriormente, nada mais é do que atividade que consiste em desvincular a origem ilícita do dinheiro para que este possa ser aproveitado como se tivesse sido obtido de maneira legal.

3.1. GERAÇÕES DA LEGISLAÇÃO

Conforme exposto acima, Itália e Estados Unidos foram os primeiros países a editarem legislações pertinentes ao tema ora estudado. Posteriormente essas legislações tomaram âmbito internacional e outros países também editaram suas próprias legislações.

É cediço também que o crime de lavagem de capitais é acessório, ou seja, para se configurar, ele necessita, em tese, da prática de uma infração penal antecedente a ele, desde que dessa infração resulte bens, direitos ou valores que possam ser mascarados, ocultados.

Como tudo no mundo globalizado em que nós vivemos, as legislações evoluem com o passar do tempo. No caso específico da legislação atinente ao delito de lavagem de capitais, podemos identificar três gerações distintas, vamos a elas:

Nas leis de primeira geração, havia um único e exclusivo crime antecedente para que se pudesse configurar o delito de lavagem. Ora, o crime aqui debatido foi criado exclusivamente para combater seu único delito antecedente. Assim, as primeiras leis que incriminaram a lavagem traziam somente o tráfico ilícito de drogas como crime antecedente.

Com o passar do tempo, verificou-se que o delito de tráfico ilícito de drogas não era o único capaz de ensejar lucros exorbitantes para os criminosos. Dessa forma optou-se por uma ampliação do rol dos delitos antecedentes, entretanto mesmo ampliado, tal rol era taxativo e trazia de maneira expressa os únicos crimes passíveis de serem enquadrados como delitos antecedentes ao de lavagem.

Essa legislação que ampliou e manteve um rol taxativo de crimes antecedentes pertence às leis de segunda geração, e era o caso da Lei 9.613/98 antes da edição da lei 12.683/98, uma vez que a lei previa expressamente como crimes antecedentes os de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; de terrorismo e seu financiamento; de contrabando ou tráfico de armas, munições, ou material destinado à sua produção; de extorsão mediante sequestro; contra á Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; contra o sistema financeiro nacional; praticado por organização criminosa; e praticado por particular contra a administração pública estrangeira.

Já nas legislações de terceira geração, que é o caso da nossa legislação pátria atualmente, houve a eliminação do rol taxativo, dessa forma qualquer infração penal (note que até mesmo uma contravenção, jogo do bicho, por exemplo) pode ser considerada como antecedente ao delito de lavagem de capitais.

Muitos elogiam a terceira geração e falam em avanço legislativo. De certa forma há o que se elogiar, mas também há o que se criticar, pois ao deixar de existir um rol taxativo, corremos um risco de banalização do delito de lavagem e nas palavras de um dos maiores especialistas sobre lavagem de dinheiro no Brasil, o juiz federal Sergio Fernando Moro, essa banalização pode ter duas consequências: “A primeira, um apenamento por crime de lavagem superior à sanção prevista para o crime antecedente, o que é, de certa forma, incoerente. A segunda, impedir que os recursos disponíveis à prevenção e à persecução penal sejam focados na criminalidade mais grave. (...)”4

3.2. FASES DA LAVAGEM

Como bem colocado pelo ilustre doutrinador Carlos Rodolfo Fonseca Tigre Maia, lavagem de capitais é um conjunto de operações complexas, que possuem reconhecidamente três fases distintas, que podem ou não ocorrer simultaneamente, quais sejam, a de colocação; ocultação e integração.

Na fase de colocação, também conhecida como conversão, ocorre o afastamento do dinheiro de sua origem ilícita, ou seja, a separação física do dinheiro dos autores dos crimes antecedentes. Essa é a fase mais perigosa para o “lavador”, uma vez que é o momento em que ele irá introduzir os recursos ilícitos dentro do sistema financeiro.

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Uma vez que é a parte mais difícil para o lavador, é a melhor hora para que se possa identificar a lavagem, pois a partir dessa fase passa a ser muito mais complicado conseguir identificar esse crime, uma vez que nessa fase o lavador vai se utilizar dos mais variados meios para inserir esse dinheiro ilícito no sistema financeiro.

Entre os meios mais comuns, estão o contrabando de dinheiro em espécie (o famoso dinheiro na cueca), ou seja, o tráfico ilegal de notas através de empresas de transporte, de algum agente contratado especialmente para esse fim ou até mesmo através do próprio correio.

Nessa fase, além dos meios supracitados, é muito comum o agente recorrer ao mercado imobiliário para fazer a inserção desse “dinheiro sujo”, fazendo vários investimentos fracionados em imóveis, diversificando assim o destino do dinheiro obtido de maneira ilícita.

A segunda fase do delito corresponde a dissimulação, a mascaração. É a lavagem propriamente dita. Na primeira fase, o agente já procurou se distanciar do recurso ilícito, agora ele irá dificultar ao máximo o rastreamento desse recurso. Marco Antônio de Barros entende que “essa fase corresponde ao acúmulo de investimentos, com os quais se procura maquiar a trilha contábil".5

Ora, se na primeira fase o agente buscou se distanciar fisicamente do dinheiro obtido de maneira ilícita, agora ele busca pulverizar os investimentos realizados, de forma que possa apagar ou reduzir ao extremo o número de evidências dessas transações, tendo em vista a possibilidade de realização de uma investigação a respeito da origem do dinheiro.

Atualmente, os criminosos costumam valer-se de transações eletrônicas, uma vez que quando mais transações são feitas, mais complicado fica para as autoridades chegarem à verdadeira origem do dinheiro, principalmente quando os “lavadores” fazem essas transações em países amparados por lei de sigilo bancário (que é o método preferido deles, diga-se de passagem) ou mesmo em contas “fantasmas” ou no nome de terceiros (laranjas) que nada tem a ver com os crimes antecedentes.

Por fim, temos a terceira e última fase do delito de lavagem de capitais, a chamada integração ou reinversão. Integração porque, depois de ter se distanciado do dinheiro, de ter dificultado ou tornado impossível seu rastreamento pelas autoridades, é hora do dinheiro voltar se integrar ao patrimônio “lícito” do criminoso, para que assim possa ser usado como dinheiro legal.

Ora, nessa derradeira fase, o dinheiro que era ilícito já está completamente “lavado” e com sua aparência lícita, pronto para ser reintegrado ao sistema financeiro como se lícito fosse.

É a fase da explicação de como aquele dinheiro está ali. Ora, a venda de um imóvel pode justificar esse dinheiro. Até mesmo bilhetes premiados da loteria podem explicar, ou seja, o agente compra o bilhete de quem efetivamente ganhou o prêmio por um valor maior a que este receberia, por exemplo, o bilhete premiava R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) e o criminoso o compra por 55.000.000,00 (cinquenta e cinco milhões de reais), dessa forma consegue uma justificativa lega para os R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) obtidos inicialmente de maneira ilícita.

A maioria das organizações criminosas (leia-se grupos organizados que atuam na lavagem de dinheiro) já possuem diversas empresas de “fachada” que prestam serviços entre si (serviços existentes apenas no papel) com o único intuito de realizar essa integração ao patrimônio.

A terceira fase é o que de fato completa o delito de lavagem de capitais, finda essa etapa o crime continua-se completamente praticado, pois agora o dinheiro está realmente revestido de uma aparência lícita e pronto para ser inserido, integrado ao sistema financeiro.

Apesar dessas três fases realmente constituírem o crime de lavagem de capitais, é de suma importância frisar que não é necessário que as três estejam devidamente identificadas para que se possa imputar o delito a alguém. De fato, tais são fases são totalmente interdependentes e podem ocorrer, como dito anteriormente, simultaneamente.

Em bem verdade, em uma única operação podemos ter a lavagem de capitais, como é o caso acima exposto do bilhete premiado, apenas com aquela única operação já está caracterizado o delito, não restando caracterizado qualquer fase antecedente ou concomitante àquela. Na maioria das vezes inclusive, é de difícil identificação em qual fase realmente se encontra o delito.

No mesmo sentido, é a posição dos Tribunais Superiores, que entendem que a mera ocultação de bens, direitos ou valores obtidos de maneira ilícita já basta para configurar o delito de lavagem de capitais, assim as demais fases passariam ser praticamente “mero exaurimento” do crime, ou seja, para configuração do delito não se exige nem mesmo que a lavagem seja exitosa.


4. PRINCIPAIS INOVAÇÕES DA LEI 12.683/12

Em 10 de julho de 2012 foi publicada a nova Lei 12.683/12, a dita nova lei de lavagem de capitais. Na realidade não se trata de uma nova lei, haja vista que não revogou a lei anterior (Lei 9.613/98). Embora não tenha revogado a lei já existente, trouxe profundas modificações no nosso diploma legal a respeito do tema, mudanças essa com o intuito de reforçar ainda mais o combate à lavagem de capitais dentro (e até mesmo fora) do território nacional. Vamos debater algumas dessas principais mudanças.

A primeira grande mudança nota-se logo no início, pois a nova lei alterou substancialmente o primeiro artigo da lei anterior. Ora, como exposto anteriormente, nosso país se enquadrava em uma legislação de segunda geração, haja vista possuirmos um rol taxativo para os crimes antecedentes ao de lavagem.

Pois bem, a nova lei excluiu esse rol taxativo, passando a partir de agora qualquer infração penal (crime ou contravenção) poder ser crime antecedente ao de lavagem de capitais, a exemplo do jogo do bicho e exploração de máquinas caça-níqueis. Essa exclusão do rol taxativo também alterou a geração de nossa lei, antes era de segunda, agora passa a ser mais uma das legislações de terceira geração presentes no mundo, onde se tipifica qualquer infração penal como antecedente ao crime de lavagem.

Outra inovação interessante é no que diz respeito à união ou não dos processos, pois a antiga lei silenciava a esse respeito. Omissão agora suprida, uma vez que em seu artigo 2º, inciso II a lei versa que:

Art. 2º: O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:

II – Independem do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e julgamento (grifo nosso).

Com essa inclusão por parte do legislador, percebe-se claramente que os delitos possuem autonomia relativa entre si, ou seja, não é necessário esperar o trânsito em julgado do delito antecedente para se julgar o de lavagem, uma vez que podem ocorrer em juízos diferentes, devendo ao juiz competente do crime de lavagem decidir se a união dos processos é necessária ou não, de acordo com a conveniência para o processo.

Não se exige nem mesmo que haja um processo julgando o crime antecedente para que possa haver o processamento e julgamento do crime de lavagem de capitais. Esse já era o entendimento anterior, que veio a ser reafirmado com a nova lei, que reafirma que a denúncia do crime de lavagem será instruída apenas com indícios suficientes da existência de infração penal antecedente, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou até mesmo, e aqui reside inovação, extinta a punibilidade da infração antecedente.

Em relação à autonomia entre o crime antecedente e o derivado que é o da lavagem, no mesmo sentido se posiciona o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:

A majoritária jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a apuração do crime de lavagem de dinheiro é autônoma e independe do processamento e da condenação em crime antecedente, sendo necessário apenas sejam apontados os indícios suficientes da prática do delito anterior .” (HC 137.628/RJ, julgado em 26/10/2010, DJe 17/12/2010)” (grifo nosso).

“(...) 5. O processo e julgamento do crime de lavagem de dinheiro é regido pelo Princípio da Autonomia, não se exigindo, para que a denúncia que imputa ao réu o delito de lavagem de dinheiro seja considerada apta, prova concreta da ocorrência de uma das infrações penais exaustivamente previstas nos incisos I a VIII do art. 1º do referido diploma legal, bastando a existência de elementos indiciários de que o capital lavado tenha origem em algumas das condutas ali previstas.

6. A autonomia do crime de lavagem de dinheiro viabiliza inclusive a condenação, independente da existência de processo pelo crime antecedente.

7. É o que dispõe o artigo 2º, II, e § 1º, da Lei nº 9.613/98(...)

8. A doutrina do tema assenta: “Da própria redação do dispositivo depreende-se que é suficiente a demonstração de indícios da existência do crime antecedente, sendo desnecessária a indicação da sua autoria. Portanto, a autoria ignorada ou desconhecida do crime antecedente não constitui óbice ao ajuizamento da ação pelo crime de lavagem. (...) Na verdade, a palavra ‘indício’ usada na Lei de Lavagem representa uma prova dotada de eficácia persuasiva atenuada (prova semiplena), não sendo apta, por si só, a estabelecer a verdade de um fato, ou seja, no momento do recebimento da denúncia, é necessário um início de prova que indique a probabilidade de que os bens, direitos ou valores ocultados sejam provenientes, direta ou indiretamente, de um dos crimes antecedentes. (...) De se ver que, no momento do recebimento da denúncia, a lei exige indícios suficientes, e não uma certeza absoluta quanto à existência do crime antecedente” (in Luiz Flávio Gomes - Legislação Criminal Especial, Coordenador Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, Lavagem ou Ocultação de Bens – Renato Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 588/590). (...)

(HC 93368, Relator: Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 09/08/2011)

Outro ponto interessante que devemos fazer menção é como ficou a redação do artigo 4º da lei após a alteração promovida pela nova lei. Ora, antes da edição da lei 12.683/12, o juiz estava limitado a decretar a “apreensão ou sequestro de bens, direito e valores do acusado, ou existentes em seu nome”, gerando polêmica a respeito da possibilidade ou não de se decretar uma hipoteca legal, por exemplo.

Entretanto, a nova redação traz a expressão “medidas assecuratórias”, que é um gênero da qual faz parte todas as espécies de medidas cautelares, deixando ao livre arbítrio do juiz escolher pela medida mais oportuna para garantir a indisponibilidade dos bens do investigado ou acusado ou até mesmo de pessoas interpostas, não se restringindo assim apenas aos bens do ora acusado.

Ressalta-se ainda que só podem ser objeto das medidas assecuratórias os bens, direitos e valores que sejam instrumento, produto ou proveito do crime de lavagem e das infrações penais antecedentes.

Mais uma mudança significativa ocorreu com a alteração do inciso I do artigo 7º, que previa, como efeitos da condenação, “a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto nesta Lei, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé”.

Pois bem, com a nova redação, essa perda, passou a ser de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previsto nesta Lei, incluindo-se aí os utilizados para prestar a fiança. Ou seja, agora até mesmo os bens, direitos e valores que indiretamente se relacionem com os crimes serão objeto de perda com a condenação.

Ainda no mesmo inciso e artigo, a perda que era apenas em favor da União, passou a ser também em favor dos Estados, nos casos em que a competência para julgamento seja d Justiça Estadual, nada mais do que justo ao nosso modo de ver.

A nova lei excluiu o rol taxativo de crimes, mas traz um rol grande de pessoas obrigadas a enviar informações a respeito de operações consideradas suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

Se antes, ela exigia basicamente essa obrigação de pessoas jurídicas, passa agora a exigir essa obrigação também de toda pessoa física que trabalhe com as atividades listadas em seu artigo 9º, quais sejam:

I - a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira;

II - a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial;

III - a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários.

A lei inclusive instituiu pesadas multas para quem não cumprir a obrigação de informar ao COAF a respeito de tais operações suspeitas, podendo referidas multas chegarem inclusive ao valor de R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais).

Peço vênia para tecer uma crítica a esses dispositivos. Entendo perfeitamente a necessidade de se combater a lavagem de dinheiro, crime que ocorre cada vez mais e com mais força em todo o mundo, onde o criminoso parece sempre se encontrar um passo a frente das autoridades.

Entretanto, entendo que no caso brasileiro, as autoridades competentes (leia-se o Estado) parecem querer que o particular cumpra a obrigação estatal. Ora, a responsabilidade de fiscalizar as operações financeiras pertence ao Estado e não ao particular.

Com essa obrigação imposta, o particular se vê obrigado a suspeitar de seu cliente e entregá-lo “de bandeja” às autoridades. Ou seja, no mínimo ficaria estremecida a relação com o cliente, uma vez que o particular (seja pessoa física ou jurídica) desconfiou da procedência do dinheiro de seu cliente, prejudicando assim o negócio do particular.

Creio que minha posição faz ainda mais sentido quando vemos o rol já grande de pessoas obrigadas a informar o COAF aumentado significativamente no parágrafo único do artigo 9º, onde praticamente se encontra toda e qualquer atividade exercida por particular.

Ao analisarmos a lei e a depender da interpretação do texto legal, poder-se-ia entender que até mesmo o advogado seria obrigado a informar ás autoridades públicas qualquer suspeita de mascaramento de bens praticados por seus clientes, uma vez que o parágrafo único do artigo 9º, em seu inciso XIV versa que também estão obrigados a prestar informações pessoas físicas ou jurídicas que prestem serviço de assessoria, senão vejamos:

“Art. 9º: Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10. e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não:

Parágrafo único. Sujeitam-se às mesmas obrigações:

XIV - as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações:

a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza;

b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos;

c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários;

d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas;

e) financeiras, societárias ou imobiliárias; e

f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais;”

Ora, um advogado ou escritório de advocacia pode prestar vários serviços dentre esses expostos na lei. Exigir que o advogado informe às autoridades a respeito dos bens, direitos ou valores de seu cliente seria ferir de morte o dever do sigilo entre cliente e advogado. Ademais, como confiar no seu advogado com o temor de que ele próprio seja obrigado a se transformar em seu delator.

Dessa forma, entendo que se há um ponto que merece forte crítica (e que infelizmente parece passar despercebido por alguns operadores do direito) é em relação a esse rol extenso de pessoas obrigadas a prestar estas informações. Ponto esse que acho merecer urgente atenção do legislador ou da nossa Suprema Corte no intuito de realizar uma reforma, para que o Estado cumpra o seu papel e não repasse essa obrigação ao particular, prejudicando-o de sobremaneira.

Por fim, um acréscimo digno de elogios a meu ver. A nova lei expressamente prevê a possibilidade da alienação antecipada dos bens. Ora, uma das medidas a serem tomadas assim que se descobre o crime de lavagem de capitais é tornar indisponível todos os bens do acusado ou investigado para que a ação penal possa ter sucesso.

Pois bem, antes da nova lei enfrentávamos um problema, esperar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para podermos dar um destino aos bens do acusado. Entretanto uma sentença com trânsito em julgado em um crime como o de lavagem de capitais no nosso país pode levar vários e vários anos, de forma que alguns bens do acusado poderiam simplesmente se deteriorar e não valer mais praticamente nada na época do trânsito em julgado.

É nesse ponto que a nova lei merece elogio, pois o parágrafo 1º do artigo 4º previu expressamente a possibilidade de se alienar antecipadamente os bens com o intuito de preservar os seus valores “sempre que estiverem sujeitos a deterioração ou depreciação, ou quando houver dificuldade para a sua manutenção”.

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Sobre o autor
Tiago Cardoso de Castro

Advogado. Graduado pela Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Petrolina. <br>Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O artigo foi elaborado como avaliação para o curso de pós-graduação da Faculdade Baiana de Direito.

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