A conclusão de que a instituição policial possui caráter ambíguo decorre da realização de funções tanto administrativas quanto jurídicas. A prática preventiva desenvolvida pela polícia, com fins de manter a ordem pública, denota seu papel de vigilância na sociedade – função administrativa. Nesse âmbito, a polícia atua antes de ser consumado o delito ou qualquer ato prejudicial à homogeneidade almejada pelo Estado.
À instituição policial, no entanto, também é atribuída a função judiciária, em que é esperada a realização de ações em reprimenda aos crimes definidos em lei – função judiciária. Nesse momento, a atuação se dá após a consumação do ato criminoso, por meio de investigações e cumprimento de ordem do judiciário.
Essa ambiguidade da polícia, ou seja, essa dupla função atribuída à polícia faz com que o papel desempenhado por ela seja de difícil caracterização, uma vez que a linha que separa as duas funções é bastante tênue e de vez em quando a separação entre o que seria um ato administrativo/discricionário e um ato judicial é prejudicada.
Segundo essa divisão tem-se duas polícias: A polícia judiciária e a polícia administrativa. Por isso, há que ser feita também a distinção entre as discricionariedades, quais sejam, preventiva e repressiva, no momento em que a instituição policial realiza suas operações.
Destaca-se que a ambiguidade percebida na polícia brasileira é advinda de múltiplas origens, quando comparada com a polícia no processo anglo americano. Neste, ou a atividade policial é preventiva e atua sobre comportamentos futuros, vigiando e mantendo sua coesão. Ou é repressiva, aplicado técnicas orientadas por princípios acusatórios. Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a autoridade policial exerce a vigilância da população, por meio de técnicas disciplinares e poderes de polícia, e exerce a repressão, com base nos métodos inquisitoriais.
Esse ponto bem explica Kant de Lima em seu texto “Direitos Civis, Estado e Cultura policial, a formação policial em questão”. Na obra, o autor disserta que para a análise da atuação policial e sua melhor compreensão é necessário o estudo da construção do espaço público, com foco na segurança pública (tanto na sua manutenção, quanto na sua reprodução). Por isso, Kant observa dois modelos de espaços públicos: o primeiro que segue a tradição anglo-americana, o segundo que adota a tradição dos países de língua portuguesa.
Muito embora, a criminalização tenha sofrido uma evolução, tenha se aprimorado, e passe a desafiar cada vez mais a atividade policial, pode-se constatar que as mesmas características e os mesmos traços peculiares da polícia àquela época continuam preservados: ainda há um respeito pela hierarquia e pelas normas de conduta; ainda são baseados por uma ética própria, que leva os policias a doarem suas vidas pela instituição. Como bem destaca o autor: “A ideologia policial, entretanto, não é um fenômeno isolado na sociedade brasileira. Ao contrário, está fortemente ligada a representações bastante semelhantes referentes à diversidade cultural do País, encontradas em outros lugares de nossa sociedade. Na verdade, representações elitistas e evolucionistas da cultura e sociedade são tradicionais em nossa cultura jurídica e permeiam o pensamento social no Brasil, bem como justificam práticas sociais discriminatórias em nossa sociedade”.
Essa análise se aplica perfeitamente na contemporaneidade, pois a dupla função executada pela instituição policial se mantém e se mistura. Nesse sentido, cita-se o exemplo da Polícia Civil do Rio de Janeiro investiga, instaura inquérito policial e tem delegacias de vigilância, sendo que previne com métodos inquisitoriais e prende-se com critérios de vigilância. Como ressalta Kant de Lima, em sua obra“ Cultura Jurídica e Práticas Policiais: a tradição inquisitorial”:
“Em uma cidade como o Rio de Janeiro, onde a Polícia Civil investiga e faz ronda, abre inquéritos policiais e tem Delegacias de Vigilância, a contaminação desses diversos e aparentemente contraditórios princípios é inevitável: previne-se com métodos inquisitoriais e prende-se com critérios de vigilância.”
O que hoje se percebe nas práticas policias resume-se bem na assertiva: “Primeiro encontra-se o ladrão, depois obtém-se sua confissão, e então realiza-se a investigação formal.”
A instituição policial justifica, muitas vezes, seu comportamento à margem da lei por meio do argumento de que possui conhecimento prático, testemunhal e verdadeiro dos fatos. Indica ainda, que frente a alguns casos é necessário exercer a justiça por meios que não o da via judicial. Dessa forma, a polícia aplicaria uma ética própria para adjudicar e para punir, ao invés de aguardar pelos procedimentos judiciais, os quais, em determinadas situações, não são efetivos.
Nesse condão, as operações policiais se pautam em uma “ética implícita, um código de honra no qual todos os policiais são compelidos a aderir, colocando-o em vigor ao lidar com os criminosos”. Motivação para a aplicação dessa ética própria está nos casos em que polícia teria atuado e conseguido, por exemplo, confissões, mas a prova não teria validade e o réu seria absolvido. Por isso, a instituição policial alegaria a importância de fazer justiça com as próprias mãos, tendo em vista a ineficiência do judiciário. Como bem explica, Kant de Lima, em seu texto a “Cultura Jurídica e Práticas Policiais: a tradição inquisitorial”:
“A polícia justifica o seu comportamento "fora-da-lei" alegando ter certeza de que possui o conhecimento testemunhal, "verdadeiro" dos fatos: ela estava lá. Alega, também, que em certas ocasiões é necessário "tomar a justiça em suas próprias mãos". No contexto de meu trabalho de campo isto muitas vezes significava que, em certos casos, a polícia aplicaria a sua ética para adjudicar e punir, ao invés de deixar essa tarefa aos procedimentos judiciais e seus princípios, como "manda a lei".
Assevera-se que a ideologia policial não é um fenômeno isolado na sociedade brasileira. Na verdade, ela está ligada ao pensamento elitista e evolucionista tradicional, que baseiam as práticas de segregação social. Assim, o que norteia, realmente, as práticas policiais não é sua experiência, mas os modelos que guardam as diferenças sociais.
Nota-se que a ética policial não está atrelada às disposições legais, mas ao contrário, funda-se em exclusiva responsabilidade da instituição policial. Tal ética, por está associada a um aspecto não oficial e às vezes ilegal de sua identidade, é produzida e reproduzida através da criação, transmissão e reprodução das culturas tradicionais. “Mais concretamente, através de uma prática de contar casos, pelos quais se definem as características dos principais personagens, tomados como heróis ou como exemplos paradigmáticos da tradição policial.”
A ética, nesse contexto, se molda à identidade de cada policial, tornando-se uma parte integrante da função de cada policial. Cabe ainda ressaltar que a ética policial deveria ter a sua atuação paralelamente ao cumprimento da lei pelos policiais, no entanto a própria polícia justifica a aplicação de sua ética em substituição à lei quando considera que a aplicação da lei, em si, é ineficaz para “fazer justiça”.
Assim sendo, existe uma discrepância entre a lei, que é pública e universal e a ética policial, que é privada e particularista e aplicação dessa ética denota prática não oficial que instituição policial desempenha no sistema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- KANT DE LIMA, R. Direitos Civis, Estado de Direito e "Cultura Policial": a formação policial em questão. Revista Preleção - Publicação Institucional da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo, v. 1, 2007;
________________ - “Cultura Jurídica e Práticas Policiais: a tradição inquisitorial”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 10(04). 1989.