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Controle jurisdicional das medidas provisórias:

possibilidade de análise da inconstitucionalidade formal pelo STF

02/07/2015 às 15:33
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O controle dos requisitos de urgência e relevância das medidas provisórias pode ser feito tanto pelo Poder Legislativo como pelo Poder Judiciário, ou se trata de matéria discricionária exclusiva do Executivo?

1. INTRODUÇÃO

Para o presente artigo, importa-nos destacar o instituto das medidas provisórias enquanto exemplo do exercício de funções atípicas pelo Poder Executivo, buscando conceituá-las e defini-las de acordo com seus requisitos formais e materiais. Por último, pretende-se analisar como ocorre o controle de constitucionalidade das medidas provisórias especialmente em relação aos seus pressupostos de relevância e urgência.


2. FUNÇÃO ATÍPICA DO PODER EXECUTIVO: LEGISLAR

A aplicação do Princípio da Separação dos Poderes visa, sobretudo, promover a independência e harmonia entre os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) a fim de evitar a concentração do poder em um único órgão ou em uma pessoa específica. Modernamente, tal princípio é entendido como fundamento do próprio Estado Democrático de Direito. Através dele, desenvolve-se a especialização das funções - chamadas pela doutrina de funções típicas - e possibilita-se a afirmação e legitimação de todos os três Poderes.

Apesar da consagração do Princípio da Separação dos Poderes, este não deve ser entendido como rígido e insuperável. Por vezes, para facilitar a própria independência dos Poderes, afere-se a eles a possibilidade de extrapolar suas funções típicas e exercer funções de outros Poderes. Segundo Maia (2006), a ideia de uma separação dos poderes absoluta foi flexibilizada.

No caso específico, importa-nos discorrer sobre as funções típicas e atípicas do Poder Executivo. A função típica do Poder Executivo é “a função administrativa (de administração da coisa pública). Ou seja, é a função de execução de políticas públicas, fomento, gerenciamento e desenvolvimento da máquina administrativa” (FERNANDES, 2011). As funções atípicas seriam, portanto, aquelas que caberiam aos outros dois poderes, quais sejam as funções legislativas e jurisdicionais. A função atípica de legislar desenvolvida pelo Poder Executivo se enquadra com os institutos da Medida Provisória (art. 62, CR/88) e das Leis Delegadas (art. 68, CR/88).

Historicamente, procura-se justificar a inclusão de instrumentos legislativos de formação atípica na ordem constitucional com o argumento da morosidade, que seria uma variável presente no processo legislativo rotineiro. Assim, a administração pública não ficaria impedida de adotar medidas legais excepcionais, em situações de relevante interesse coletivo ou de emergência. (VALENTE, 1996).

Para o presente artigo, destaca-se o instituto da Medida Provisória e a repercussão jurídica dela quanto à possibilidade de controle formal de sua constitucionalidade.


3. MEDIDAS PROVISÓRIAS (MP)

As Medidas Provisórias são atos normativos excepcionais que devem ser editados em situações limitadas, pois, seu uso abusivo ameaça a própria ordem democrática, ao colocar em risco o Princípio da Separação dos Poderes.

3.1 Conceito

Medidas provisórias são atos normativos feitos pelo Presidente da República, em face de requisitos de relevância e urgência, e que têm, por sua vez, caráter e força de lei. Segundo Gilmar Mendes (2013), são “atos normativos primários, sob condição resolutiva, de caráter excepcional no quadro da separação dos Poderes”.

3.2 Processo e tramitação legislativa

A medida provisória editada pelo Presidente da República deve, de imediato, ser submetida ao Congresso Nacional. Seu processo legislativo está disposto no artigo 62 da Constituição brasileira de 1988. No Congresso Nacional, será designada uma Comissão Mista Temporária que elaborará um parecer sobre a Medida Provisória. Durante 6 (seis) dias poderá ocorrer propostas de emendas à MP. Daí decorre duas opções: a MP que não tem nenhuma emenda ou que a tem. No primeiro caso, ela será apreciada em votação por cada uma das casas (na Câmara dos Deputados primeiro e, depois, no senado Federal) e, caso aprovada, se tornará, efetivamente, lei e seu texto será promulgado pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional para publicação no Diário Oficial da União. Como a MP aprovada pelo Congresso Nacional era igual à inicial elaborada pelo Presidente, não haverá necessidade de veto ou sanção do mesmo. Porém, caso seja aceita emenda pela Comissão Mista, a Medida Provisória emendada se tornará Projeto de Lei, cabendo à Comissão elaborar decreto legislativo que regule as relações jurídicas que estava sob a égide da MP “pura”. O rito de aprovação se dará normalmente, com votação nas duas casas e envio para apreciação do Presidente, que poderá vetá-lo ou sancioná-lo. Rejeitada a Medida Provisória pelo Poder Legislativo, os atos praticados com base em MP não convertida em lei continuam por ela regidos, salvo se o Congresso Nacional, por meio de decreto legislativo, decidir regulá-los de forma diferente. A mesma Medida Provisória não poderá ser reeditada na mesma sessão legislativa.

3.3 Pressupostos e limites

As medidas provisórias estão disciplinadas constitucionalmente no artigo 62 da Constituição Brasileira de 1988. Depreende-se que elas têm como requisitos formais a exigência de situação de relevância e urgência (conjuntamente) e sua edição pelo Presidente da República. Além de tais requisitos, a Constituição apresenta, como vedações materiais, a edição de medidas que tenham como conteúdo a nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral, direito penal, processual penal e processual civil, organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros, planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro, de matéria reservada a lei complementar ou já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. Ademais, pode-se encontrar outras vedações no corpo constitucional, como no §2º do artigo 25, CR/88 ou no artigo 73 do ADCT, por exemplo.

3.3.1 Relevância e Urgência

A relevância e a urgência são os requisitos constitucionais autorizadores da edição de medidas provisórias pelo Presidente da República. Como já dito, o preenchimento de tais pressupostos é de valor imensurável, já que o uso da medida provisória deve ser feito em casos excepcionais. “Relevância e urgência são conceitos jurídicos indeterminados, ou seja, não são passíveis de identificação imediata. Apesar de indeterminados, tais conceitos só permitem uma única solução no caso concreto ao contrário dos atos discricionários”. (BALENA, 2009).

[...] neste ponto reside a diferença entre discricionariedade e conceito jurídico indeterminado: a primeira supõe mais de uma solução possível (isto é, conforme ao direito), enquanto o segundo admite uma única – a indeterminação cessa no caso concreto. (MARIOTTI apud BALENA, 2009)

A aferição da ocorrência desses pressupostos se dará ao analisar o caso concreto e, para parte da doutrina, é de poder discricionário do Poder Executivo, não cabendo controle jurisdicional sobre ela. Outros estudiosos, ao contrário, dizem que o Poder Judiciário pode, ao analisar a constitucionalidade de determinada medida provisória, além de verificar a compatibilidade material entre o conteúdo da MP e aqueles permitidos constitucionalmente, entrar no mérito da existência ou não de situação relevante e urgente. Alegam alguns doutrinadores que no processo de conversão da MP em lei, cabe, na verdade, ao Congresso Nacional analisar se os requisitos de admissibilidade foram ou não cumpridos. Mas, como aponta Clèmerson Merlin Clève:

[...] lamentavelmente, porém, o Congresso Nacional tem relegado a segundo plano o exercício do controle jurídico das providências normativas de urgência. Consequência: medidas provisórias flagrantemente inconstitucionais têm sido, às dezenas, convertidas em lei. Na prática, o controle duplo vem sendo simplificado até sua redução àquela de natureza exclusivamente política (no menor sentido da expressão, infelizmente). (CLÈVE, 1999).

A realidade fática, portanto, coloca-nos um evidente problema: cada vez mais são editadas medidas provisórias que não atendem aos requisitos para sua admissibilidade e o Congresso Nacional, que deveria fazer o controle prévio ou preventivo de constitucionalidade, não o faz, por motivos políticos. Sendo assim, medidas claramente inconstitucionais se transformam em leis. A inconstitucionalidade da medida provisória, consequentemente, deflagra a inconstitucionalidade da própria lei oriunda dela. Cabe, no nosso entendimento, ao Supremo Tribunal Federal, devido seu importante exercício do controle de constitucionalidade abstrato e definitivo, analisar a presença dos requisitos basilares das medidas provisórias, quais sejam a relevância e a urgência.


4. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS MP

A medida provisória, como ato normativo com força de lei, é norma jurídica primária, o que autoriza controle judicial de constitucionalidade para se verificar a compatibilização com a Constituição, inclusive em relação ao atendimento dos pressupostos de relevância e urgência. Cabe o Supremo Tribunal Federal desempenhar tal exercício, assumindo sua função de guardião constitucional. O STF entende que as MP são passíveis de controle de constitucionalidade por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade. A polêmica diz respeito à possibilidade de uma ADIN em relação aos requisitos formais de admissibilidade da medida provisória (urgência e relevância).

4.1 Análise da inconstitucionalidade formal pelo STF

Entende Bernardo Gonçalves Fernandes (2011) que a “inconstitucionalidade formal diz respeito aos fundamentos da relevância e urgência (requisitos formais da MP)”. Há doutrinadores que entendem ter esses pressupostos natureza política, sendo de análise discricionária do chefe do Poder Executivo e a possibilidade de interferência do Poder Judiciário afetaria a independência entre os Poderes. Outros, com base no princípio da inafastabilidade da jurisdição e na supremacia constitucional, entendem que o Judiciário deverá se manifestar sobre a inconstitucionalidade da MP, quando provocado.

No nosso ponto de vista, o Poder Judiciário tem plena legitimidade para adentrar no mérito dos pressupostos de relevância e urgência. O argumento de que tal interferência causaria uma ruptura no Princípio da Separação dos Poderes não prospera, já que, como já dito, tal Princípio vigora em razão de impedir o abuso do poder e garantir a ordem democrática.

O reconhecimento de imunidade jurisdicional, caso não contemplasse a apreciação judicial, implicaria, em favor do Presidente da República, numa ilimitada expansão de seu poder para editar medidas provisórias, sem qualquer possibilidade de controle, o que é incompatível com o sistema constitucional vigente hoje no Brasil (Min. Celso de Mello apud BORGES, 2012).

Atualmente, o STF entende que:

o Poder Judiciário, quando provocado, tem legitimidade para analisar a extensão dos pressupostos de relevância e urgência na medida provisória apenas quando for evidente a sua ausência, caso em que se caracteriza a existência de abuso no poder de legislar pelo Poder Executivo. Nesse sentido dispõe a Ministra Ellen Gracie, como relatora no julgamento da ADI 2.527-9/DF. (BORGES, 2012).

Isso significa que o STF tende a aceitar que a certeza da urgência e relevância da MP é de juízo discricionário do Presidente da República e que a posterior submissão da medida ao Congresso Nacional visa justamente analisar tais requisitos. Sendo assim, o pronunciamento da Corte sobre a inconstitucionalidade formal da medida provisória só se dará de forma excepcional, quando do flagrante desvio de finalidade ou abuso no poder de legislar por parte do Presidente.

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No entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Balera (2009):

[...] o Judiciário não sai de seu campo próprio nem invade discrição administrativa quando verifica se pressupostos normativamente estabelecidos para delimitar uma dada competência existem ou não existem. Uma vez que a Constituição só admite medidas provisórias em face de situação relevante e urgente, segue-se que ambos são, cumulativamente, requisitos indispensáveis para irrupção da aludida competência. É dizer: sem eles inexistirá poder para editá-las. Se a Carta Magna tolerasse edição de medidas de emergência fora destas hipóteses, não haveria condicionado sua expedição à pré-ocorrência destes supostos normativos. Segue-se que têm de ser judicialmente controlados, sob pena de ignorar-se o balizamento constitucional da competência para editar medidas provisórias. Com efeito, se ‘relevância e urgência’ fossem noções só aferíveis concretamente pelo Presidente da República, em juízo discricionário incontrastável, o delineamento e a extensão da competência para produzir tais medidas não decorreriam da Constituição, mas da vontade do Presidente, pois teriam o âmbito que o Chefe do Executivo lhes quisesse dar. Assim, ao invés de estar limitado por um círculo de poderes estabelecidos pelo Direito, ele é quem decidiria sua própria esfera competencial na matéria, idéia antinômica a tudo que resulta do Estado de Direito.

Compartilhamos do entendimento supracitado ao entender que os requisitos de relevância e urgência devem, com certeza, ser analisados pelo STF, com pena de aceitar-se a edição de atos normativos notadamente inconstitucionais. O juízo discricionário do Presidente da República não pode ser tão discricionário a ponto de comprometer a legalidade da medida provisória. Se os motivos que desencadearam a medida provisória não eram relevantes e urgentes, esta não seria legal/constitucional. Por fim,

cabe ao Poder Judiciário exerce o papel de guardião dos direitos fundamentais e da própria Constituição, [...]. Toca-lhe, por isso, controlar os outros poderes, para mantê-los dentro dos limites traçados pelas normas constitucionais. [...], sua legitimação provém da própria Lei Fundamental, que atribui direitos a todos e a cada um em particular, mesmo contra a maioria. Como é assim, a proteção desse direito exige, [...], a presença de um juiz imparcial e independente, ‘ subtraído de qualquer vínculo com os poderes assentes na maioria, e em condições de poder censurar, como inválidos ou ilícitos, os atos praticados no exercício desses Poderes’[...]. [...], o Judiciário, [...], deverá promover o desenvolvimento da Constituição, realizando o diálogo entre suas normas e a realidade social em constante mudança. O texto maior compõe um sistema aberto de valores, princípios e normas, permitindo que a definição do sentido de tais elementos possa ser efetuada em consonância com as ideias e expectativas sociais ocorrentes em determinado momento histórico [...]. (DOBROWOLSKI apud SANTOS, 2008).


5. CONCLUSÃO

O Princípio da Separação dos Poderes é fundamental para o Estado Democrático de Direito e possibilita a especialização das funções dos Poderes, de forma a promover a independência e autonomia entre eles, evitando a concentração do poder. Ao Poder Executivo cabe administrar e governar o Estado, executando políticas públicas e desenvolvendo a máquina administrativa. Além da função típica, o Poder Executivo também pode julgar o contencioso administrativo e legislar através de medidas provisórias e leis delegadas. As medidas provisórias são atos normativos editados pelo Presidente da República que não precisam de autorização prévia do Poder Legislativo caso atendam a certos requisitos formais e materiais. Quanto aos requisitos formais, dois deles são considerados por alguns de juízo discricionário do Chefe do Poder Executivo: a certeza de que se trata de situação de urgência e também de relevância. Por isso, não caberia controle de constitucionalidade específico para análise da presença ou não de tais requisitos. Não obstante, não compartilhamos desse entendimento, pois compreendemos que, por ser uma medida de extrema excepcionalidade no quadro do Estado de Direito (e do Princípio da Separação dos Poderes), suas condições de admissibilidade são essenciais. Aferir se a situação regulada pela medida provisória é ou não urgente e relevante – sendo esses os pressupostos elencados no caput do artigo 62, CR/88 – é, consequentemente, condição para o reconhecimento de sua constitucionalidade. Cumpre ao STF ser o guardião da Constituição, o que faz dele o órgão responsável por tal exame. A Excelsa Corte pode analisar a urgência e relevância da situação sem que isso configure “invasão” à autonomia do Presidente da República já que esta autonomia não é total e rígida e, por isso, deve ser passível de controle constitucional a fim de evitar abusos e excessos que podem existir caso tal controle não exista. Entretanto, já se reconhece o avanço recente em que o próprio STF admitiu que, em casos de manifesta ilegalidade, ele pode se manifestar, mesmo compreendendo que estes requisitos formais são de critério discricionário do governante. Tal admissão já representa progressão uma vez que, antes, o Supremo não analisava, de forma alguma, a presença de tais requisitos. Isto posto, compreendemos que cabe ao Supremo Tribunal Federal promover o controle de constitucionalidade material e formal das medidas provisórias, com a finalidade de assegurar o Estado Democrático de Direito e impedir excessos por parte do Poder Executivo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONZAGA, Bruna. Controle jurisdicional das medidas provisórias:: possibilidade de análise da inconstitucionalidade formal pelo STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4383, 2 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40038. Acesso em: 19 abr. 2024.

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