Acreditando que seu país está mergulhado numa guerra religiosa que começou durante a Primeira Cruzada (século XI), o fanático Anders Behring Breivik matou dezenas de garotos de esquerda numa ilha norueguesa. Saïd e Chérif Kouachi, jihadistas que realizaram o ataque na sede da revista Charlie Hebdo em Paris causando diversas mortes, também acreditavam que agiam sob inspiração divina contra os infiéis que ridicularizavam Maomé e o islamismo. Ao invadir uma Igreja em Charleston, Carolina do Sul- EUA, Dylann Storm Roof disse "you rape our women and you’re taking over our country" *, dando a entender que agia como um soldado movido por um princípio moral indiscutível e elevado (a proteção do bem estar das moçoilas norte-americanas e a destruição do inimigo que controlou o país dele).
Os protagonistas destas tragédias ocorridas em três países diferentes nunca tiveram contato pessoal entre si. As razões que justificaram suas condutas também são aparentemente diferentes (fundamentalismo anti-comunista cristão, fundamentalismo islâmico e supremacia racial) mas o enredo e o resultado foram iguais. Todos os ataques foram perpetrados contra pessoas desarmadas. As vítimas de Breivik e Roof não tinham razões para acreditar que seriam massacradas, nem estavam fazendo algo que colocava em risco a segurança pessoal de outras pessoas. Apenas os jornalistas da revista Charlie Hebdo, em razão das ameaças telefônicas que já haviam sofrido, tinham razões para temer pela sua segurança pessoal, mas a atividade deles não era violenta.
Breivik, Roof e os irmãos Kouachi cometeram atos que revelaram sua extrema intolerância política, religiosa e racial. A motivação deles pouco importa, pois o resultado foi o mesmo: múltiplos homicídios cometidos de maneira aleatória com o uso de armas de fogo. No Brasil os crimes seriam agravados por terem sido cometidos por motivo fútil. A conduta dos homicidas não encontra justificação jurídica na Noruega, na França e nos EUA. Mas não é improvável que o atentado de Charleston reforce o conflito racial que existe nos EUA. Ninguém ficará surpreso se Dylann Storm Roof for transformando numa espécie de herói dos racistas norte-americanos, que estão habituados a defender em público e a premiar com vultosas somas de dinheiro quem comete violência contra negros nos EUA (como ocorreu no caso do policial que matou o jovem Michael Brown).
Há um evidente descompasso entre o arcabouço jurídico humanitário que existe na Noruega, na França e nos EUA e a subcultura difundida nestes três países por grupos políticos extremistas, jihadistas e racistas. Antes de serem massacrados por Breivik, Roof e os irmãos Kouachi, os “outros” (garotos de esquerda, chargistas e negros) tiveram que ser discursivamente privados dos seus direitos à segurança, à integridade física, à liberdade e à vida atribuídos de maneira indistinta a todos os noruegueses, franceses e norte-americanos pelas respectivas legislações nacionais (e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos). O desejo de higienizar a sociedade por razões políticas, religiosas e raciais não é capaz de superar o temor pelo desrespeito à Lei sem a ajuda de algum tipo de convencimento ou doutrinação.
Os doutrinadores de Breivik, Roof e dos irmãos Kouachi, contudo, não foram perseguidos ou responsabilizados pelos assassinatos em massa cometidos por seus pupilos. Aqueles que empunharam as armas foram apanhados. Mas aqueles que criaram “instrumentos humanos” para, sem risco pessoal, praticar violência política, religiosa e racial continuam livres para doutrinar os candidatos à novos atentados terroristas. Que isto sirva de lição para as autoridades brasileiras que hesitam em reprimir de maneira exemplar os pastores amalucados que diariamente difundem o ódio irracional e supostamente divino contra gays, espíritas, umbandistas, praticantes do candomblé, etc… Mortes semelhantes às cometidas por Breivik, Roof e pelos irmãos Kouachi estão ocorrendo no Brasil e em algum momento poderemos ter que enfrentar uma tragédia de grandes proporções.
*tradução: "vocês estão estuprando nossas mulheres e assumindo o controle do nosso país".