O dramaturgo Metastásio, já no séc. XVIII, no Ato II do grande épico "Écio", entrevera que: "Niega agli affitti aita, chi dubbiosa la porge", ou seja, "Nega ajuda aos aflitos, quem a oferece duvidosa". O novo Código Civil, embora tenha sido concebido por artífices de induvidosa técnica jurídica, desdenhou da afamada assertiva preconizada pelo dramaturgo italiano, pois positivou na novel consolidação da legislação civilística pátria, sem rastro algum de precisão, um arremedo de responsabilidade objetiva que, se por um lado pousa de garante da inviolabilidade dos direitos de alguns, por outro potencializa as temeridades que alguns inquisidores judiciais cometerão em nome do suposto sacrossanto instituto. Ademais, se por um lado muitos asseveram, retomando a vetusta polêmica ocorrida na Alemanha, nos estertores do séc. XVIII, entre Savigny e Thibaut, da necessidade de que a legislação contemporânea seja concebida com técnica legislativa de tipos mais abertos, cujos lindes não se tornem uma camisa de força para o intérprete; por outro, a entrega de Autos de Fé, em branco, para que alguns Visitadores do Santo Ofício os interpretem sem nuanças ou parâmetros pré-concebidos, quer nos parecer, nessa nossa quadra de desenvolvimento do fenômeno jurídico, um verdadeiro sacrilégio.
A discussão sobre essa temática toma foros de relevo em razão da disposição normativa que está contida no parágrafo único, do artigo 927 do novo Código Civil brasileiro que, objeto até então de persecuções exegéticas meramente perfunctórias, tem se consolidado entre os profissionais do direito como "vexata quaestio".
A imputação de responsabilidade objetiva fundada na teoria do risco da atividade negocial, sobretudo se considerados os negócios jurídicos que se aperfeiçoam sob a égide do Código Civil, somente pode ser plausível se um dos contraentes desconhece a álea imanente ao negócio, ou seja, se um dos contratantes é, sem ciência, induzido a prática de determinado negócio jurídico cujo risco lhe é inerente, hipótese em que, diante do desconhecimento do fator de indeterminação havido e, considerada eventual perda suportada, este contratante estará legitimado ao pleito indenizatório. Em outras palavras, quão maior for o número de informações franqueadas ao aderente, menor será a possibilidade de que sua alegação de desconhecimento seja acolhida pelos tribunais.
Dessemelhante é a hipótese da prática de negócios jurídicos aleatórios em que ambos os contratantes têm ciência inequívoca e ostensiva dos sobressaltos a que a contratação está sujeita e, ainda assim, contratam. Nesses casos, o negócio, além de ter sobre si a incidência da aleatoriedade, tem, também, a anuência expressa dos aderentes, como é típico, por exemplo, na formalização dos contratos de fundos de investimentos. Nessa citada espécie de liame contratual, não pode o aderente, cuja ciência é, sempre e sempre, integral acerca das possíveis oscilações dos índices de remuneração do capital, alegar a perda ocorrida e, ato contínuo, pleitear indenização contra o administrador ou mantenedor do fundo sob as vestes da responsabilidade objetiva derivada do risco da atividade negocial desenvolvida. Ora, a possibilidade de imputar-se responsabilidade sem culpa, fundada meramente no nexo causal, deve estar circunscrita aos limites restritos dos contratantes, nesses casos sempre aderentes, para os quais a informação acerca dos riscos fora cerceada ou simplesmente suprimida; lição basilar que fora propagada com veemência e maestria pela genialidade do saudoso Professor Agostinho Neves de Arruda Alvim em suas mais de três décadas de cátedra.
Outrossim, é relevante destacar-se que, ciente o aderente da álea que culmina com a impossibilidade de determinação da gradação do êxito ou da frustração que ele haverá de auferir em determinada contratação, por exemplo, dos referidos fundos de investimentos, ele pode portar-se de maneira mais conservadora e, nesses termos, refutar os riscos acima declinados e aderir a contrato comutativo cujo risco é, em regra, nenhum.
Dessa forma, é de verificar-se que o parágrafo único, do artigo 927 do novo Código Civil, tal como concebido, demanda reflexão mais percuciente para que haja aplicação da melhor hermenêutica, a fim, quiçá, de que Louis Josserand e Raymond Saleilles, juristas franceses que palmilharam as primígenas veredas e lançaram os primeiros traços sobre a teoria da responsabilidade objetiva, não convulsionem em suas lápides devido ao exagero despropositado que ora se lha quer emprestar.
O tema, em verdade, não é em essência controverso, mas apenas controvertido pelos que sabem o preço de cada coisa, mas desconhecem o valor de coisa alguma; cultuam, como idólatras, a alta rentabilidade de seu capital investido, mas tornam-se heréges quando a sua sanha de lucratividade não é completamente saciada; promovem completa cisão entre direitos e obrigações, julgando-se, invariavelmente, senhores dos direitos, porém apartados das obrigações correlatas àqueles. Nesse mister, ainda no séc. XIX, o sociólogo Auguste Comte, em seu clássico "Sistema de Política Positiva", epigramatizava: "Ninguém possui outro direito senão o de sempre cumprir o seu dever", denotando a correlação que necessariamente existe entre estes e aqueles como expressão de cidadania no contexto de um Estado democrático de direito. Perfilhando o mesmo pensamento que Comte, no entanto com reflexão revestida de palavras outras, o Marquês de Maricá, em suas "Máximas", também antevia a mesma ruptura da insofismável relação entre direitos e deveres, quando afirmou: "Os velhacos pugnam muito por seus direitos, mas prescindem dos seus deveres".
À propósito, a questão dos fundos de investimentos me é, neste momento, especialmente palpitante em virtude de, em um qualquer dia desses, numa dessas infindas filas de caixas de supermercados, eu ter sido surpreendido pela grata surpresa de encontrar um desses amigos que são embaralhados pelo jogo da vida e somem do nosso convívio, mas que não são subtraídos do nosso carinho. Superados os cumprimentos e as questões de praxe, esse amigo, causídico experimentado nos embates da vida civil e nas questões de mercado de capitais, falou das piruetas e malabarismos literários de que estão se valendo alguns advogados para interpretar o parágrafo único, do art. 927 como cláusula geral assecuratória de perdas suportadas por clientes de bancos em razão de investimentos em fundos. Daí asseverarmos que a questão dos fundos de investimento, da qual tratamos acima apenas circunstancialmente, é das mais relevantes sob o prisma da inteligência do novo Código Civil e, mormente, nos termos do que está previsto no lacunoso parágrafo único do seu art. 927.
O que subtrai e extirpa terminantemente qualquer resquício de possibilidade de que os fundos estejam sob o efeito regulatório do parágrafo único do art. 927 é que, apesar de a atividade desenvolvida pelos administradores de fundos de investimentos ser atividade normalmente de risco, os riscos são manifestos e os investidores subscrevem termos de responsabilidade, no qual manifestam ciência irrestrita das possibilidades de perda de capital e, ainda, de eventual necessidade de aporte de capital em casos extremos de perda, que podem acontecer.
Ademais, havemos que ressaltar que a atividade dos administradores de fundos de investimento, ela própria, é atividade de risco, porém não representa risco para os direitos de ninguém, pois o cliente, que era proprietário do valor que será investido, ao promover, conscientemente, o investimento caracterizado pela álea perde o direito e conserva, apenas, uma expectativa de direito sobre o "quantum" que lhe será atribuído quando do resgate da aplicação realizada em caso de o saldo ser positivo e, se for negativo, do aporte de capital que haverá de fazer para quitar sua obrigação.
O administrador não é responsável pelas perdas se o grau de risco estiver expressamente contido no compromisso firmado no regulamento do fundo e formalizado nas suas cláusulas gerais. O administrador se torna responsável pelas perdas apenas nos casos específicos em que restar comprovado que promoveu operação cuja realização não estava de antemão prevista e, ainda, se o risco da aplicação tiver sido majorado devido a essa operação. Ademais, a responsabilidade do administrador pode, também, configurar-se se este não seguir as normas de "compliance" a que está adstrito. Por estas normas, cabe ao administrador providenciar mecanismos internos de monitoramento dos procedimentos, para possibilitar a constatação de que estão sendo cumpridas a legislação, o regulamento e a atividade de administração dentro dos padrões legais e éticos.
O sopesamento dessa responsabilidade dos administradores e de sua gradação será, portanto, realizado, sempre, com fundamento na responsabilidade clássica, que é de gênero e natureza subjetivos, fundada nas espécies culposas da negligência, imprudência e imperícia.
Constata-se, portanto, que mesmo diante de um esforço interpretativo hercúleo e, ainda que respeitados os parâmetros de argumentação arquitetados por alguns causídicos, que a aplicação da responsabilidade objetiva fulcrada na teoria do risco, que consta expressamente do parágrafo único, do art. 927 desse nosso novo Código Civil, não pode ser transplantada por meio do "jeitinho" para que os fundos de investimento sejam esquartejados e, com eles, toda a matriz organizacional política e econômica do Estado reste sucateada.
Considerando que as aplicações em fundos de investimento são efetuadas por meio de contratos formais e escritos cujo risco é explícito e assumido pelos aderentes, fazemos coro a Amós, o profeta pastor de ovelhas de Técua, que no capítulo 3 de seu livro na Vulgata, no séc. VIII a. C., já indagava: "Andarão dois juntos, se não houver entre eles acordo?"...
Tentar estender a aplicação da responsabilidade objetiva aos fundos de investimento é, no mínimo, uma exuberância, para não dizer uma caricatura, um dramalhão mexicano... "Alea jacta est" – A sorte está lançada...