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A norma penal em branco heterogênea:

considerações acerca de seus efeitos modificativos e de sua conformidade com o princípio da legalidade

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CONCLUSÃO

As normas penais em branco heterogêneas para que não afrontem a legalidade penal estrita devem ser elaboradas com cuidado e atenção pelo legislador competente. Este, agindo com cautela e análise, deve delimitar com bastante precisão os limites da integração das referidas normas, buscando também dotá-las de um núcleo essencial conciso e taxativo, não deixando margem à atividade legislativa por parte de outro poder que não a União e nem relegando a outras espécies normativas, que não a lei, a função de criar normas penais.

A dinamicidade que as normas penais heterogêneas imprimem à atividade legislativa é importante para a proteção de bens jurídicos relevantes à sociedade. Contudo, não se pode, em nome de tal dinamismo, afrontar o princípio da legalidade, incontestavelmente relevante e imprescindível para o Direito Penal, seja como limitador do poder legiferante e repressivo do Estado, seja como assegurador da segurança jurídica e das liberdades individuais.

  O seu correto manejo e produção são instrumentos imprescindíveis às finalidades de proteção social de que se reveste o Direito Penal. Quando elaboradas dentro dos ditames legais, as leis penais em sentido estrito não só se coadunam com o princípio da legalidade, auxiliando-o em suas funções precípuas de segurança jurídica e política, como se constituem em importantes instrumentos de proteção social, pela dinamicidade que conferem ao combate à criminalidade.

Sobre a retroatividade, é certo que a Constituição a impõe em benefício do agente, como também é cediço que nem todas as normas extrapenais têm natureza perene, sendo algumas transitórias, editadas para atender a uma necessidade momentânea. Também é patente o fato de que, não raro, o complemento pode ser de tal importância para a definição do tipo penal incriminador que queda se tornando essencial para a norma penal.

Mesmo assim, o complemento não poderia assumir tamanho protagonismo nas questões envolvendo retroatividade, razão pela qual se discorda da posição majoritária, jurisprudencial e doutrinária, da retroatividade condicionada. Melhor solução é a adoção da regra da retroatividade benéfica, salvo exceções como as leis temporárias ou excepcionais, mas sempre condicionada a retroatividade ou ultratividade da lei penal à sua natureza e não à natureza do complemento extrapenal.

Pela retroatividade condicionada, se um complemento que tem natureza transitória integra uma norma penal com natureza definitiva, seus efeitos ultrativos subsistiriam em detrimento da retroatividade benéfica. A atribuição de tal força a um complemento que, embora complete o sentido da lei penal em branco, não deveria ter força para lhe alterar a natureza de definitiva para transitória. Ocorre uma afronta ao artigo 2º do Código Penal Brasileiro e, por consequência ao princípio da legalidade.

A atribuição de vigência transitória a determinada lei penal já é disciplinada pelo ordenamento jurídico no artigo 3º do Código Penal. Se o legislador tenciona regular de forma termitente determinada situação, que o faça pela via adequada, qual seja pela criação de leis temporárias ou excepcionais. 

Acerca da total supressão do complemento da norma em branco, a posição doutrinária e jurisprudencial que pugna pela inaplicabilidade da lei penal em virtude da falta de complemento de sua norma não se mostra tão acertada. Como elemento que integra e complementa a norma penal em branco, a norma extrapenal tem como função precípua fornecer àquela um norte, meios para que seja aplicada de forma taxativa, evitando o arbítrio do julgador.

A revogação, equivalendo aqui à total supressão do complemento não tornaria a norma penal inaplicável, mas converteria elementos descritivos da lei em elementos normativos, pendentes de valoração do julgador. Este recorreria a critérios como a utilização de princípios gerais de direito. O malferimento à segurança jurídica e à segurança política, funções precípuas da reserva legal quedaria evidente. Ressalve-se que tal posicionamento é pessoal, não refletindo o pensamento majoritário dominante, tanto da jurisprudência como da doutrina.

As normas penais em branco heterogêneas são instrumentos eficazes na proteção social e na preservação da legalidade, mormente quando a auxiliam em seu mister de garantia da segurança jurídica e política. Entretanto, devem atender à correta técnica normativa, evitando-se ao máximo a utilização de termos imprecisos que, certamente, poderiam suscitar vergaste à reserva legal.  


Notas

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral Parte Especial. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 93.

[2] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, v.1, p. 388.

[3] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. 16.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.93.

[4] ZAFFARONI; PIERANGELI, op. cit., p. 389.

[5] NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Tipicidade Penal e o Princípio da Legalidade: o Dilema dos Elementos Normativos e a taxatividade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, n. 85, p.219-235, Jul/Ago. 2010, p.228.

[6]MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: Parte Introdutória, Parte Geral e Parte Especial. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.48.

[7] NETTO, op. cit.

[8]GRECO, Luís. A Relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo no Direito Penal Ambiental: Uma Introdução aos Problemas da Acessoriedade Administrativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 14, n. 58, p.152-194, Jan/Fev. 2006.

[9] Ibid., p. 160.

[10] LOBATO, José Danilo Torres. Acessoriedade Administrativa, Princípio da Legalidade e suas (in) Compatibilidades no Direito Penal Ambiental. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, n. 83, p.120-162, Mar/Abr. 2010, p.128.

[11] NETTO, op. cit., p. 230.

[12] LOBATO, op. cit.

[13] MASSON, Cléber. Direito Penal: Parte Geral-Esquematizado. 2.ed. São Paulo: Método, 2009, p. 109.

[14] MODESTO, Danilo Von Beckerath. A norma penal em branco e seus limites temporais. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 817, 28 set. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7345>. Acesso em: 14 out. 2011.

[15] MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nascimento. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 26.ed. São Paulo: Atlas, 2010, v.1.

[16] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12.ed. Niterói: Impetus, 2010, v. 1, p. 23.

[17] LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2.ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003, p. 125.

[18] LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 75

[19] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. 5.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v.1, 2009, p.49.

[20] GRECO, op. cit.

[21] ZAFFARONI; PIERANGELI, op. cit., p. 388.

[22] PRADO, Luís Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, v.1, p.170-171.

[23] NUCCI op. cit,  p.104.

[24] LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.44.

[25] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Millennium, 2002, v.1.

[26] ASÚA, 1950 apud LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal: Parte geral. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 44.

[27]PROJETO de lei e outras Proposições: PL 1383/03, Câmara dos Deputados.  Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=122756>. Acesso em: 12 fev. 2012.

[28] PRADO, op.cit.

[29] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. São Paulo: Max Limonad, 1951, v.1, Tomo I p.154.

[30] SMANIO, Gianpaolo Poggio;  FABRETTI, Humberto Barrionuevo. Introdução ao Direito Penal: Criminologia, Princípios e Cidadania. São Paulo: Atlas, 2010, p.199.

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[31] MODESTO, Danilo Von Beckerath. A norma penal em branco e seus limites temporais. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 817, 28 set. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7345>. Acesso em: 14 out. 2010., p. 1.

[32]DÍAZ, Baldomino Raul A . (Ir) retroactividad de las modificaciones a la norma complementaria de una Ley Penal en Blanco. Política Criminal.  Santiago, v. 4, n. 7, jul. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-33992009000100004&lng=es&nrm=iso>. Acesso em: 07 out. 2011. Em tradução livre: postula que às normas complementares não cabe reconhecer efeitos retroativos mais favoráveis, pois estas normas não são leis e somente à modificação por lei é que se concede o benefício da aplicação retroativa.

[33] Ibid. Em tradução livre: argumenta que a essência do injusto penal se funda na desobediência à norma de determinação, que exige o cumprimento das leis e regulamentos, independentemente de seu conteúdo e que  a modificação do conteúdo da lei penal não afeta o padrão de obediência, que permanece inalterado.

[34] NORONHA, Edgar Magalhães.  Direito Penal. 38.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v.1, p. 82.

[35] MARQUES, op. cit., p. 242.

[36]SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Curso Completo de Direito Penal. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.34.

[37] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1953,  v.1, Tomo I., p. 105.

[38] GARCIA, op. cit., p.155.

[39] VARGAS, José Cirilo de. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, Tomo I, p. 78.

[40] LOPES, op. cit.

[41] GRECO, op. cit., p. 108.

[42] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral. 32.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, v.1, p. 135-136.

[43] BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, Tomo I, p. 166.

[44] MIRABETTE; FABBRINI, op. cit.

[45] MASSON, op. cit.

[46] STF, HC 73.168/SP,  Relator: Ministro Moreira Alves, 1 T.,  julgado em 21.11.1995, DJU  de 15.03.1996, p. 7204. Disponível em <http/www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 out. 2011.

[47] STJ, RHC 16.172/SP, Relatora: Ministra Laurita Vaz, 5 T., julgado em 23.08.2005, DJU de 26.09.2005, p. 406. Disponível em <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 22 out. 2011.

[48] GALVÃO, Paulo Murilo. Aulas de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Método, 2010, p.113.

[49] MIRABETE; FABBRINI, op. cit., p. 54.

[50] BARROS, Flávio Augusto Monteiro. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003, p.67.

[51] JESUS, op. cit., p. 143.

[52] MASSON, op. cit., p. 110.

[53] Ibid., p. 110.

[54] NUCCI, op. cit., p. 105.

[55] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v.1., p. 87.

[56] DÍAZ, op. cit. Em tradução livre: em minha opinião para que uma modificação na norma complementar tenha efeito retroativo como lei mais benigna é preciso que altere significativamente uma instituição penalmente protegida, tirando-lhe o efeito e a proteção jurídico-penal ou que, pelo menos, signifique uma redução efetiva, obrigatória do marco penal. Obviamente, deve existir um limite, pois não é qualquer modificação da norma complementar que vai significar uma modificação da valoração jurídica da conduta que permita considerá-la como modificadora do tipo penal. Assim, se varia a gradação alcoólica dos parâmetros de aferição do estado de embriaguês, ou o limite da contaminação da água em um delito ambiental ou a velocidade máxima em uma estrada, não há modificação do  ilícito do respectivo delito, por isso não se pode exigir sua aplicação retroativa. Diferente de se estabelecer que determinado resíduo vertido não é contaminante, porque neste caso sua exclusão significa uma alteração na valoração jurídica que deve produzir efeitos retroativos.

[57] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.101.

[58] ZAFFARONI; PIERANGELI op. cit., p. 389.

[59]MANZINI, op. cit., p.268. Em tradução livre: as normas penais em branco, que têm necessariamente caráter meramente sancionatório, se tornam obrigatórias para as condutas dos sujeitos somente no momento em que adquirem força obrigatória os preceitos jurídicos ou as ordens das autoridades a quem se referem. Por isso, as mesmas não são aplicáveis sem que existam estes preceitos ou ordens no momento em que se verifica o fato previsto por ela.

[60] HUNGRIA, op. cit., p. 122.

[61] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

[62] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004., p.105.

[63] NUCCI, Guilherme de Souza, Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

[64] Ibid., p. 128.

[65] Ibid.

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Sobre o autor
Carlos Frederico Benevides Nogueira

Advogado <br>Sócio do Escritório Oliveira e Benevides Advogados Associados,<br>Pós-Graduado em Direito Tributário. Membro da Comissão de Estudos e Acompanhamento da Reforma do Código Penal OAB/CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Carlos Frederico Benevides. A norma penal em branco heterogênea:: considerações acerca de seus efeitos modificativos e de sua conformidade com o princípio da legalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4380, 29 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40274. Acesso em: 25 abr. 2024.

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