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Comutação retroativa: imperativo de justiça e legítimo direito adquirido

Imperativo de justiça e legítimo direito adquirido

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A comutação retroativa é direito adquirido do apenado e assegura a concessão tardia de direitos consolidados no passado. Qual a sua importância para a ressocialização?

Sumário: 1. Introdução. 2. Princípio da segurança jurídica e derivações. 3. Consequências extrapenais 4. Conclusão. 5. Referências.

Resumo O presente artigo aborda a temática referente à comutação retroativa. A comutação retroativa, verdadeiro direito adquirido do apenado, por se tratar de instituto que assegura a concessão tardia de direitos consolidados no passado, com termo prefixado, inalterável a arbítrio de outrem, expressão que também alberga o ato jurídico perfeito.

Palavras-chave: principio. justiça. direito adquirido. celeridade. ressocialização. ato jurídico perfeito. justiça.


1. Introdução

A comutação, numa primeira acepção, consiste em uma minoração parcial da pena. Não conduz diretamente à extinção, mas a sua aplicação sucessiva pode resultar nisso. Pode a comutação, também, importar na substituição da pena. Nesse caso, a eficácia do ato dependeria de concordância do apenado, consoante alguns doutrinadores, ainda que importasse em cumprimento de pena menos branda.

Na verdade, a extinção da punibilidade é matéria de ordem pública, independe de provocação. Assim, seus efeitos são inexoráveis e, como regra, independem de concordância do apenado, salvo hipótese acima exposta. Inusitado seria um apenado querer cumprir sua pena até o final, ou de forma mais gravosa, mesmo com benefício de extinção da pena ou comutação desta. Nessa hipótese insólita, seria o caso de analisar o estado mental do apenado. Brincadeiras à parte, a execução penal é matéria de ordem pública. Se o apenado incidiu em alguma hipótese de extinção da pena deve ser imediatamente liberado, pois sua manutenção no cárcere, além de ser grave violação de direito, é deveras custosa para os cofres públicos, sobretudo, por não se tratar de direito individual transacionável.

Noutro giro, em sentido contrário, poder-se-ia sustentar que o apenado, reconhecendo sua culpa, quisesse cumprir integralmente sua pena, como uma forma de redenção pessoal da sua alma e como meio de conferir satisfação aos familiares da vítima, informando-lhes que nada mais deve, buscando, de forma direta ou indireta, obter o perdão destes, estando pronto a se reintegrar à sociedade em paz com sua consciência. É uma espécie de direito ao esquecimento sui generis, às inversas, ou seja, o reeducando gostaria de ser lembrado não necessariamente pelo ato criminoso que praticou, mas pelo integral cumprimento da pena imposta, punição estatal adequada ao delito cometido, demandando, agora, respeito da sociedade e nova chance para nela se reinserir. Trata-se de decorrência do princípio da ressocialização, o qual impõe conceder nova chances àqueles que já se desvencilharam da pena legitimamente, impondo que sejam respeitados, o que abrange a exclusão de antecedente criminal do conhecimento do público, com sua manutenção apenas para efeito da administração da justiça.

Esse é um ponto relevante para plena ressocialização. O Poder Judiciário e os Órgãos de Polícia não devem certificar passagens criminais de crimes já integralmente cumpridos, pois isto dificulta o acesso do ressocializando ao mercado formal, o que termina por lançar por terra os esforços no sentido de reintegrar plenamente o reeducando e estimula, ainda, a criação de estigmas e traumas. Não se pode estimular o culto aberrante aos estigmas, por violar o princípio da dignidade da pessoa humana.

Por isso, que tais dados devem ser omitidos, só interessando à própria Justiça, para outros fins, tal como aferir a reincidência, sendo mantidos em arquivo interno sigiloso, sem acesso ao público.

Todos têm direito de terem suas dívidas lançadas no mar do esquecimento após o devido adimplemento. O reviver de fatos passados danosos traz dores e aflições não só ao ressocializando, mas também à vítima e seus familiares, que, a todo momento, são relembrados da situação de que desejariam esquecer e que nunca houvesse acontecido.


2. Princípio da segurança jurídica e derivações

Prossigo expondo que o Chefe do Poder Executivo, anualmente, publica um Decreto, geralmente próximo às festas natalinas, comutando penas criminais, desde que cumpridos alguns requisitos.

Discute-se, nesse plano, a possibilidade de haver direito adquirido a obter a concessão da comutação, de forma retroativa, isto é, com data retroativa ao momento em que os requisitos foram implementados, quando, obviamente, não concedida tempestivamente.

Tenho que o apenado possui direito adquirido à concessão da comutação retroativamente, ainda que tal direito seja reconhecido intempestivamente, ou que, posteriormente, deixe de preencher os requisitos, em obséquio ao direito adquirido e ato jurídico perfeito.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), embora não tenha dito expressamente, reconheceu a natureza de direito adquirido da comutação de pena retroativa, ao considerar que, uma vez preenchidos os requisitos para concessão no passado, conforme a lei vigente à época, ou melhor, Decreto, deve ser deferida.

De fato, não cabe ao juízo da execução impor requisito novo não previsto no Decreto, inclusive, essa tem sido a tônica em muitos julgados. A análise do cabimento dos benefícios se dá pela ótica exclusiva do Decreto, não podendo o juízo se valer de outros argumentos, sobretudo para inviabilizar eventual benefício, sob pena de violação do princípio da legalidade e equipotência dos Poderes. Recorrer a outros elementos diversos daqueles previstos no Decreto seria, na verdade, uma inovação nefasta e violadora do direito adquirido, do ato jurídico perfeito (direito já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou) e da legalidade. Em outro julgado[ii], o STJ consignou expressamente como direito subjetivo o de o apenado obter a concessão do benefício, desde que preenchidos os requisitos do Decreto.[iii]

Passemos a um caso concreto hipotético. Suponhamos um sujeito primário, condenado a pena de 24 anos por delitos, em concurso formal, não hediondos, mas cometidos mediante violência e grave ameaça, sendo o início do cumprimento de pena  em 01.02.10, sem período de detração. Em 01.02.14, o apenado foi progredido ao regime semiaberto, com permissão de trabalho externo. Nesse caso, teria direito à primeira comutação, após o decurso de 1/4 da pena, em 01.02.16. Em 25.12.18, fez jus ao indulto. Porém, em razão da ausência de cálculo de pena atualizado e grande volume de processos na vara de execuções penais, o implemento do benefício de livramento condicional e comutação de pena só foram verificados em 01.06.19. Após a elaboração do cálculo, o apenado comete novo delito em 01.07.19. Posteriormente, em 01.06.20, é enviada guia de execução definitiva ao juízo da execução penal constando pena de 6 anos, pelo delito praticado em 01.07.19, crime de tráfico de drogas, delito hediondo.

Nesse caso, seria cabível comutações retroativas sucessivas e eventual análise do cabimento de indulto, sem prejuízo da elaboração de novo cálculo de pena apenas com a sanção imposta do novo delito, ou seria o caso de unificação?

Diante do exposto, é descabida nova unificação, pois o apenado fez jus às comutações sucessivas e, em razão dessas, ao final, ao indulto, os quais só não foram deferidos pela demora do aparato do Poder Judiciário. Tal fato, contudo, não o afasta do cumprimento da nova pena, nos termos do novo título judicial.

Se o apenado já possuía todas as condições para gozo do benefício, estabelecidas por condição inalterável a arbítrio de outrem, nos termos da lei, cabe, assim, o deferimento do benefício sempre que for observado que a pessoa condenada preencheu os requisitos e não lhe foi concedida a benesse a tempo. Assim, ainda que posteriormente não preencha mais os requisitos, deve lhe ser dado o benefício retroativamente.

Pensamento contrário violariam os institutos do direito adquirido e o ato jurídico perfeito, que se fundam no princípio da segurança jurídica, baliza mestra do nosso ordenamento jurídico que visa aliviar as tensões e, por fim, a eternização dos conflitos, mutatis mutandis, a súmula 106 do STJ afasta quaisquer ônus aos jurisdicionados pela demora do aparelho estatal.

Na esfera penal, o direito adquirido ganha muito mais vigor, pois uma norma mais gravosa não pode retrooperar para atingir um apenado, ainda que ele esteja ainda cumprindo pena, quando da vigência desta norma, salvo hipóteses da ultratividade da norma, a despeito de pesados argumentos doutrinários que contrariam a possibilidade da ultratividade da norma penal. Portanto, o direito adquirido não pode ser tolhido arbitrariamente, sob pena de afronta aos princípios da tempestividade, dignidade da pessoa humana, ato jurídico perfeito, efetividade da tutela jurisdicional e legalidade.

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Outra questão, inclusive de sede constitucional, é a possibilidade de reparação cível por força de o apenado permanecer cumprindo pena além do tempo imposto pela condenação, muitas vezes, por falta de cálculo atualizado, fruto da inércia do Estado de efetivar direitos legítimos e consolidados, isto é, adquiridos.

Em sentido afirmativo, há expressa disposição constitucional no art. 5º, dispositivo dos direitos e garantias fundamentais que alberga a postulação de reparação indenizatória por ter o apenado permanecido preso além do tempo devido.

O entendimento do STJ[iv] e do STF[v] tem trilhado no sentido de que, exceto nas situações de erro judiciário e de prisão, além do tempo fixado na sentença, nos termos do art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal, bem como nos casos previstos em lei, a regra é a de que o art. 37, § 6º da Constituição não se aplica aos atos jurisdicionais, quando fundamentados de forma regular e para o fiel cumprimento do ordenamento jurídico.


5. Conclusão

O descaso estatal e o abandono podem sair muito mais caro do que a concessão de direitos legítimos e consolidados, em especial, a comutação retroativa isolada ou sucessiva. Este é mais um motivo pelo qual a comutação retroativa também é instrumento de efetivação de direitos fundamentais e forte instrumento de ressocialização.

Disto decorre a necessidade de serem criados mecanismos de ressocialização e efetiva concessão dos direitos aos seus titulares legítimos, desde que perfectibilizados os requisitos legais, de modo a afastar distorções no sistema penitenciário que redundam nas tão conhecidas e vistas rebeliões, as quais externam, dentre outras conclusões, as insatisfações dos presidiários com relação ao sistema posto. É preciso uma reforma de base, algo que passa longe de revoluções, embates religiosos ou ideológicos, ou guerras armadas, mas intrinsecamente adstrito à plena efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana.


Notas

[ii] Brasil. STJ. HC 244623 / SP. Relator(a) Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ.  Data do Julgamento: 19/05/2015.

[iii] Brasil. STJ. HC 308070 / SP. Relator(a) Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP) Data do Julgamento 19/03/2015.

[iv] Brasil. STJ. REsp 872630 / RJ. Relator(a) Ministro FRANCISCO FALCÃO. Ministro LUIZ FUX. Data do Julgamento 13/11/2007. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=indeniza%E7%E3o+pela+pris%E3o+al%E9m+tempo&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO.

[v] Brasil. STF. ARE 770931 AgR / SC. Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento:  19/08/2014. Disponível:http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28indeniza%E7%E3o+prisao+alem+do+tempo%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/qe7xszy.


5. Referências

-ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente; Direito Constitucional Descomplicado., Impetus, Rio de Janeiro;

-BAPTISTA, Patrícia. A tutela da confiança legitima como limite ao exercício do Poder Normativo da Administração Publica. A proteção das expectativas legitimas dos cidadãos como limite a retroatividade normativa. In Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 11-2007;

-BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. ed., Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, São Paulo, 1999;

-CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 4. ed., Livr. Almedina, Coimbra, 2000;

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte geral. 12ª ed. Niterói/RJ: Impetus, 2010.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 420.

José Afonso da Silva in Comentário Contextual à Constituição. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 280-281.

-LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed., Saraiva, São Paulo, 2011;

Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4285, 26 mar. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/32024>. Acesso em: 4 jun. 2015.

MIRABETE, Julio Fabrini. Processo penal. 10. Ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 43.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 8ª ed. São Paulo: RT, 2011.

VASCONCELOS, Paulo Mariano Alves de. Existe direito adquirido a regime jurídico?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3581, 21 abr. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24238>. Acesso em: 4 jun. 2015.

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Sobre o autor
Bruno Joviniano de Santana Silva

Defensor Público. Ex Advogado da Petrobrás. Ex Analista Judiciário do TJDFT. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Bruno Joviniano Santana. Comutação retroativa: imperativo de justiça e legítimo direito adquirido: Imperativo de justiça e legítimo direito adquirido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4422, 10 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40313. Acesso em: 22 dez. 2024.

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