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Criminalidade do colarinho branco como fonte de desigualdade no controle penal

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01/05/2003 às 00:00
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"A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam".

Spinoza ( 1632-77 )

O intuito deste trabalho será tentar demonstrar a importância da caracterização do que se entende por criminoso do colarinho branco como fator desencadeante da desigualdade no controle penal. O termo white-collor crime surgiu na década de trinta, por meio dos estudos de Sutherland, com a finalidade de desmoronar o castelo que foi erguido em torno da idéia de que a criminalidade deriva em grande parte das pessoas provenientes das classes sociais menos favorecidas. Para tanto, Sutherland centrou sua atenção nas características do agente criminoso e concluiu que o delito do colarinho branco é aquele realizado por uma pessoa de elevado status sócio-econômico, de respeitabilidade, no exercício de suas atividades empresariais, ocorrendo, quase sempre, uma violação de confiança. Cláudia Cruz Santos aponta que o conceito de white collar-crime referido não traz "uma nota imprescindível a uma sua compreensão teleológica: o caráter de impunidade das condutas abrangidas, constantemente mencionado por Sutherland". [1]

Apenas para dar uma idéia da resistência e da controvérsia que existe em torno da conceituação do criminoso do colarinho branco, Cunha Rodrigues assevera que "por um conjunto complexo de razões, estamos cronologicamente distanciados e sociologicamente próximos do emblemático ano de 1949 em que Sutherland, nos Estados Unidos da América do Norte, falou em white collar-crime para designar o crime praticado por uma pessoa respeitável, de elevado status social, no quadro da sua profissão. A evolução do direito penal econômico e seus diferenciados modelos culturais viriam a criar outras categorias para caracterizar realidades próximas, desde a expressão francesa "droit pénal des affaires" até às que são mais correntes no mundo anglo-saxónico: occupational crime, business crime ou corporate crime. Encontramo-nos sociologicamente próximos daquele ano de 1949 porque, por um lado, não foram de todo arredadas as hesitações da doutrina quanto à legitimidade ou conveniência de criminalizar condutas antieconómicas e porque, por outro lado, a ideia de delinquente socialmente inserido ( pelo seu status ou pelo seu poder) permanece como fonte de resistência à democratização das políticas criminais e ao próprio funcionamento da administração da justiça ( grifo nosso )". [2]

É certo que diversos autores rechaçaram o conceito dado por Sutherland, criando uma controvérsia em torno da definição que ainda hoje permanece em aberto. Mas, para que o problema da desigualdade na administração da justiça penal tenha um suporte, torna-se necessário utilizar o conceito dado por Sutherland.

A utilização do conceito tradicional de crime de colarinho branco, de cunho essencialmente subjetivo, equivale, nas palavras de Cláudia Cruz Santos " a significar que o próprio problema do tratamento desigualitário do white collar-crime pelas instâncias formais de controlo ganha especial sentido à luz de uma definição preocupada com as características do agente". [3] Em outra passagem a citada autora traz à colação uma citação de Sutherland em que ele identifica a desigualdade de tratamento da administração da justiça penal no caso em que " as pessoas de classe sócio-económica mais alta são mais poderosas política e financeiramente e escapam em maior número à detenção e à condenação do que as pessoas a quem falta aquele poder". E acrescenta que tais agentes não são " detidos por polícias uniformizadas, não são julgadas por tribunais criminais e não são enviados para prisões; este comportamento ilegal é objeto da atenção de comissões administrativas ou de tribunais que julgam segundo o direito civil ou a equidade. Por esta razão, tais ofensas não são incluídas nas estatísticas criminais". [4]

Diferentemente do que alguns doutrinadores que relacionam os criminosos do colarinho branco com os respectivos modus operandi ( blue-collar criminals, corporate crime, business crime ou occupational crime ), a linha deste trabalho seguirá o conceito subjetivo de Sutherland, levando em conta especificamente às características do agente do crime, colorindo o agente e não a infração, para traçar o quadro de desigualdades no sistema penal.

Pode-se de certo modo identificar um fio condutor que perpassa o aparato da justiça criminal ( legislador, polícia, ministério público, judiciário e administração penitenciária ) e que desencadeia a desigualdade na administração do sistema penal. Consiste esse fio condutor na manutenção do sistema sócio-ecomômico e político da classe que dispõe do poder.

O sistema penal está umbilicalmente ligado ao sistema social e econômico. É um instrumento do sistema de classes e funciona de acordo com os valores que o sistema dominante socioeconômico e político defende e quer ver intocável. Como exemplo da defesa dos interesses da classe dominante toma-se a conduta do trabalhador que subtrai para si pequena parcela do que produz para o seu empregador e que é considerado, pela legislação, como crime de furto. Por outro lado, a conduta do empregador que não paga ao trabalhador o salário acordado nem por isso é punido, por falta de previsão legal.

Lola Aniyar de Castro assevera que " o sistema de classes influi nos processos de criminalização. Três são as vias habituais para fazê-lo: 1- criminalizam-se condutas que pertencem, preferentemente, à maneira e às condutas de vida dos setores marginais.; 2- criminalizam-se indivíduos, preferentemente, pertencentes a estes setores, assim como os que pertencem a grupos subculturais desprovidos de poder ( negros, índios, jovens não conformistas), quando a polícia dirige sua atenção e seus recursos, precisamente, para esses indivíduos; 3- outra forma de criminalização ocorre através do tipo de tratamento ou de sanção selecionada". [5]

Pode-se dizer que na formação social capitalista, o direito ( em especial, o direito penal ) é a expressão legal do modo de produção capitalista e, assim, a institucionalização normativa dos interesses e necessidades das classes dominantes, impondo e reproduzindo as relações de opressão e desigualdade em que se fundamenta o seu poder de classe. O que se verifica atualmente é que as classes menos favorecidas sócio-economicamente é que acabam sendo atingidas pelas malhas do sistema penal e os chamados criminosos do colarinho branco apenas aplaudem e assistem de camarote o massacre dos excluídos socialmente, posto que não são atingidos pelo sistema,.

O sistema penal, verdadeiramente, seleciona pessoas e não ações, volta seu poder de fogo para as pessoas provenientes das classes socialmente desfavoráveis. Há uma clara demonstração de que determinadas pessoas possuem uma certa "imunidade" frente ao sistema penal, que costuma conduzir-se por estereótipos que recolhem das características das pessoas marginalizadas e humildes. A criminalização gera o fenômeno de rejeição do etiquetado, que uma vez recolhido pela máquina penal, carregará para sempre o estigma de delinquente, facilitando até o posterior trabalho das autoridades policiais na reciclagem do "lixo" despejado pelo sistema. Maria Lúcia Karam anota que "isolando, estigmatizando e ainda submetendo aqueles que seleciona ao inútil e desumano sofrimento da prisão, o sistema penal faz destes selecionados pessoas mais desadaptadas ao convívio social e, consequentemente, mais aptas a cometer novos crimes e agressões à sociedade, funcionando, já por isso, como um alimentador da violência, o que faz da demanda de maior repressão penal uma atitude um tanto sadomasoquista". [6]

Ora bem, levando em conta o criminoso do colarinho branco nesse processo seletivo e estigmatizante de que há pouco se comentou, outra não seria a conclusão senão a de que ele possui um plus, um escudo, uma "imunidade" que o exclui do poderio penal.

Basta verificar a população carcerária para que se constate a origem social das pessoas que lá estão, como afirma Eugene V. Debs em Walls and Bars: "quando se consegue fazer um estudo inteligente da prisão (...) é-se obrigado a concluir que afinal não é tanto o crime no seu sentido geral que é penalizado, mas antes que é a pobreza que é punida. Faça-se um censo da prisão média e concluir-se-á que uma larga maioria das pessoas está lá não tanto por causa do crime que alegadamente cometeu, mas por causa da sua pobreza e porque não têm dinheiro para pagar os serviços de advogados de primeira classe e influentes". [7]

E não há afirmar que os criminosos do colarinho branco não cometam também a chamada criminalidade comum, pois essa afirmação soa exatamente como quer escutar a ideologia dominante e que só faz eternizar a enorme cifra negra que envolve essas condutas. De acordo com Lola Aniyar de Castro a "estabilidade do sistema estaria garantida pelos estereótipos do bem e do mal que realiza o sistema penal". Se as pessoas que estão encarceradas são tidas por más e são da classe social mais baixa, então, as demais pessoas que lá não estão e que são das demais classes sociais são boas e o sistema funcionará a mil maravilhas se se dirigir aos delinquentes da classe social mais baixa. Assim, o cerco se fecha em torno dos excluídos socialmente e tranquiliza a consciência e a vida dos homens de "bem".

Segundo assevera Augusto Thompson, "algumas evidentes consequências decorrem da existência da cifra negra, como anota, por exemplo, Sir Leon Radznowicz: a) representa a substância do crime, enquanto as estatísticas oficiais são tão somente sua sombra; b) torna exatamente difícil descobrir os verdadeiros caminhos e composição da criminalidade; c) restringe e distorce nosso conhecimento a respeito dos criminosos; d) as atitudes da sociedade com relação ao crime e à punição são inevitavelmente irrealistas; e) impõe-se como maior fator no enfraquecimento de qualquer efeito intimidativo que a punição ou o tratamento dos criminosos pudesse ter; f) provavelmente, o sistema não tem o menor interesse em tentar diminuir a cifra negra, pois a polícia, os promotores, o Judiciário e os estabelecimentos prisionais sucumbiriam se tivessem que lidar com todos os que, realmente, praticam infrações penais". [8]

Há um fator importante que alimenta as cifras "douradas" [9] dos criminosos de colarinho branco. A visibilidade da infração dos menos favorecidos é manifesta. A polícia atua em lugares de livre acesso ( ruas, praças, supermercados, favelas etc. ) e esses locais são em massa frequentados pelas classes sociais menos favorecidas. É lógico que à aquisição da notícia da infração e, por consequência, o início do procedimento investigatório sobrevirá das condutas praticadas pelos miseráveis. Ao contrário, como os membros das classes média e alta passam a maior parte do tempo em lugares fechados, imunizados contra a atuação da polícia ( casas e apartamentos, escritórios, clubes de elite, restaurantes e boates de luxo, automóveis privados), há muito mais probabilidade de serem os delitos dos miseráveis "vistos" e registrados pela polícia, do que aqueles perpetrados pelas pessoas de posição mais elevada.

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Ao comentar sobre o papel da polícia no processo de seleção dos delinqüentes, Jorge Figueiredo Dias afirma que "o respeito diferencial da privacidade condiciona igualmente o labor da polícia na recolha da prova e no esclarecimento do crime. Esta disponibilidade da polícia para respeitar diferencialmente a privacidade dos cidadãos - escreve Box - é uma das mais importantes fontes de bias na construção dos registos oficiais da criminalidade. Ela significa que a suspeita da polícia recai preferencialmente sobre uma pequena secção da população total, uma secçnao que - não é por acaso, nem incidentalmente - acontece ser a menos poderosa, e residir em áreas oficialmente designadas como de desorganização social. [10]

Associado à visibilidade da infração está o que já se mencionou quanto à adequação do autor ao estereótipo do criminoso ou "cara de prontuário" de que fala Eugénio Raúl Zaffaroni. E para que se estabeleça essa associação, basta tomar como exemplo as operações policiais conhecidas como blitzen, que se concentram nas áreas de habitação das populações menos desprovidas de recursos sociais, em que se realiza um verdadeiro espetáculo de busca às bruxas, invadindo casas ( pois barraco não é domicílio) sem mandado judicial e detendo pessoas para submetê-las a corriqueira "averiguação dos seus antecedentes" sem qualquer fundamentação que não seja a "cara de prontuário" estampada na face. A mesma operação sem dúvida não teria o mesmo sucesso se fosse direcionada para as classes média e alta.

Ultimamente, os meios de comunicação têm tido um papel de destaque na apuração dos crimes que envolvem criminosos do colarinho branco, passando a exercer o papel de verdadeiro órgão policial. E não só realizam as investigações, como também conseguem encontrar, como agulhas no palheiro, os grandes criminosos fugitivos da justiça, algo que só vem a desmoralizar o papel desempenhado pela polícia. Por outro lado, os meios de comunicação exercem um outro papel - supera em muito o de investigação dos white collar-crimes-, que vai ao encontro da ideologia dominante e que consiste na veiculação de matérias distorcidas da realidade, carregadas de preconceitos e estereótipos, posto que quem fornece as informações é a própria polícia, que tem como terreno de atuação os lugares em que se cometem os crimes mais comuns ( lembre-se do que se comentou sobre a visibilidade da infração) praticados pelas pessoas de baixo status social e tendentes a serem os mais violentos. A atividade da polícia passou a ser fonte geradora não só de notícias espetaculares mas também de lucratividade para a mídia. São os meios de comunicação social colocando no mercado o produto que o cliente quer consumir. Há, portanto, uma importante fonte de consumo e de lucro em tudo que se relaciona com ocorrências policiais, violência e criminalidade, observadas através da imprensa escrita, falada e televisada. [11]

Cláudia Cruz Santos alerta que "mesmo nos casos em que a notícia do crime do colarinho branco chega ao conhecimento da polícia, pode não se verificar o empenho necessário à conveniente investigação. A complexidade das infracções, os custos da investigação e, sobretudo, a valoração feita pela própria polícia quanto à menor gravidade da conduta são desincentivadoras de uma intervenção efectiva. E é neste momento que funcionam os próprios preconceitos dos policiais: numa conjuntura de insuficiência dos recursos face ao número de casos a investigar, há que fazer escolhas; as representações dominantes sobre os crimes mais perniciosos para a comunidade e sobre os agentes mais perigosos levarão, na maioria dos casos, a um centrar das atenções nos crimes comuns que têm maior visibilidade". [12]

A partir dessa abordagem já se pode ter uma noção de que o trabalho sobre o qual se debruçará o Ministério Público e o Judiciário será delimitado pela "discricionariedade" da atuação policial. Como refere Jorge Figueiredo Dias "embora os estudiosos, os políticos, os juristas e os cidadãos em geral se envolvam em intérminos debates filosóficos sobre as formas que a justiça deve adoptar, o facto de a sociedade ter confiado a maior parte das suas funções de controlo social à polícia significa que é ela e mais ninguém que toma a maior parte das decisões políticas". [13] Segundo leciona Augusto Thompson "submetendo o universo dos delitos ao crivo da visibilidade da infração, da influência do estereótipo do criminoso, das consequências da corrupção e da prevaricação, do emprego da violência, consegue a polícia separar com enorme eficácia, do ponto de vista do sistema, os delinquentes a serem esmagados nas engrenagens da justiça relativamente às pessoas que devem estar imunes à trituração,(...)é a polícia quem controla e comanda a atividade do Judiciário, pois este só trabalha com o material concedido por aquela". [14]

É curioso notar que quando ocorre um crime praticado por uma pessoa proveniente da alta classe social as pessoas em geral iniciam toda uma discussão sobre o sistema penal e acabam chegando a conclusão que o sistema trata de forma diversa àqueles criminosos. Acabam verificando que o agente já contratou um advogado especializado ( o melhor ou um dos melhores ) para o caso, que já na fase de investigação policial se faz presente, acompanhando pari passu às providências tomadas pela polícia; que cada deslize cometido pela autoridade policial, ministério público e judicial estará sendo questionado e tratado pela mídia de forma particularizada, o que faz com que o procedimento tenha outros ares de cidadania. Assim, percebem que há uma atenção especial para o caso e que o tratamento dispensado é diferente. Pois bem, o que não percebem é que essa discussão torna-se muito interessante para o próprio sistema, posto que os papéis e responsabilidades de cada instância de controle se destacam e acabam por cumprir exatamente o que a lei prevê para o caso concreto. E depois de passado o afã dos acontecimentos, as instâncias de controle penal voltam à rotina sem entusiasmo na resolução do problema e rechaçam qualquer crítica de que exista desigualdade no trato com a questão do controle penal. [15]

Augusto Thompson traça um interessante quadro que geralmente acontece quando se está diante de um crime cometido por uma pessoa poderosa, e chama a atenção "para uma interessante manobra para dificultar ou impedir o esclarecimento de certos crimes que não interessa esclarecer, mas com base na qual se arma um dispositivo de defesa quanto a possíveis acusações em face do fracasso desejado. Refiro-me à designação pela Procuradoria-Geral da Justiça de promotor público para acompanhar certos inquéritos policiais. Formalmente, adota-se tal providência quando o fato em apuração envolve pessoas poderosas ou policiais, na posição de indiciados. Como a desconfiança com respeito à polícia é algo bastante disseminado, sobretudo em matéria de venalidade e parcialidade, sustenta-se que, em hipóteses onde haja gente rica ou policiais envolvidos, faz-se mister a presença moralizadora do promotor, a fim de que seja viável chegar a bom termo a investigação. Geralmente, são escolhidos para desempenhar tais missões os membros do Ministério Público mais afamados em termos de responsabilidade e reputação. (...) Na verdade, a presença do promotor serve para assegurar, primordialmente, a interdição ao emprego da violência na investigação. E, sem violência, ou não se apura nada, ou o que se apura padece de pobreza franciscana em termos de prova - tudo a benefício do culpado. Quer dizer: o promotor funciona como garantia de que a lei vai ser respeitada( grifo nosso); ora, quem se beneficia do respeito à lei é o indiciado, uma vez que a polícia costuma mostrar rotunda ineficiência quando se dispõe a trabalhar estritamente dentro da legalidade. Com a presença do promotor, o indiciado faz até economia, uma vez que não precisam pagar aos investigadores para que respeitem a lei. (...) E o inocente promotor não percebe que sua participação no inquérito se dá, em última análise, como forma de proteger o criminoso de luxo- exatamente ao contrário do que imagina". [16]

No tocante à fase de julgamento o criminoso do colarinho branco também recebe um tratamento diferenciado por parte da justiça penal. O estereótipo do criminoso, novamente, entra como fator preponderante nas decisões judiciais. Jorge Figueiredo Dias disserta que "muitos casos são, pois, os estereótipos correntes, a que os juízes não estão imunes, que decidem da verdade processual. Pode pôr-se - deve mesmo pôr-se - em dúvida a validade intrínseca duma prova determinada por estereótipos. Do que não pode duvidar-se é da força persuasiva dos estereótipos e da sua eficácia selectiva: eles operam claramente em benefício das pessoas que exibem os estigmas da respeitabilidade dominante e em desfavor dos que exibem os estigmas da associalidade e do crime". [17] Longe do reducionismo da afirmação de Dahrendorf de que a justiça é um sistema que senta um estrato social diante do outro no tribunal: enquanto o estrato superior fornece os juízes, é o estrato inferior que dá os acusados, o mencionado autor alerta para o fato que "os indivíduos e os grupos sociais interagem em tribunal em condições de insuperável desigualdade. Os arguidos das classes superiores e aqueles que usualmente com eles sustentam a mesma construção da realidade ( as "suas" testemunhas, os "seus" declarantes, etc. ) encontram no tribunal um universo de linguagem, gestos, estilos de vida, tiques, temas de conversas nos intervalos das sessões, que é o seu próprio universo. As pessoas concretas que desempenham os papéis de juiz ou de ministério público são personagens do seu quotidiano, do seu bairro, dos seus restaurantes, dos seus círculos, os pais dos amigos dos seus filhos". [18] Ora, já dá para imaginar o que se passa em relação às pessoas de baixo status social e econômico. A linguagem já não se adequa ao universo dos juízes ( e ministério público ) e acaba por não criar a necessária credibilidade na construção da realidade que submete à apreciação judicial. [19]

Quanto à questão do apenamento do criminoso a disparidade de tratamento se verifica na espécie de resposta penal aplicada. A pena privativa de liberdade é a rainha das espécies de pena que se aplica ao indivíduo proveniente da classe social inferior. É aplicada sem hesitação e se se verificar que o condenado corresponde ao estereótipo do delinquente, cuja personalidade é verificada através dos seus antecedentes criminais, então o juiz terá a convicção de que para essa pessoa a melhor solução será a privação da liberdade e não outro mecanismo alternativo à prisão. Jorge de Figueiredo Dias mostra que "diferentemente, os delinquentes das classes médias e superiores, para além de, por via de regra, aparecerem em tribunal sem o fardo dos antecedentes criminais, serão considerados menos carecidos de tratamento ressocializador. (...)Quer dizer é o mesmo estereótipo epidemiológico do crime que aponta a um delinquente as celas de prisão e poupa a outros os seus custos. É, de resto, em nome de considerações de oportunidade ou de política criminal que a generalidade dos juízes só à custa de confessado mal-estar se vêem por vezes compelidos a aplicar a pena de prisão a algum delinquente de "colarinhos brancos"". [20]

É mais do que natural que sempre haverá um bode expiatório para poder demonstrar que o sistema penal age conforme o que determina a lei. Mas será apenas um acidente de percurso, um parafuso a menos na engrenagem da máquina estatal a ser prontamente substituído, com vista a continuar gerando infindáveis distorções na sociedade. Não se pode ter a consciência tranquila pelo só fato de ocasionalmente o sistema condenar um criminoso do colarinho branco. Além de não ser o verdadeiro "senhor do crime" [21], ainda recebe tratamento privilegiado. O que se pleiteia é que a justa e correta aplicação da lei, mormente quando prevê direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, não seja fruto de casuísmo de pessoas tidas por diferenciadas e provenientes da alta classe social, mas sim, que venha atingir todos aqueles que estão sujeitos às malhas da máquina repressora penal. Aqueles privilégios que são concedidos aos criminosos do colarinho branco deveriam, na verdade, ser estendidos a todos indiscriminadamente. A presteza e o zelo com que é tratado um caso em que esteja envolvido um criminoso de colarinho branco devem ser o mesmo dispensado para todos às demais pessoas. Só assim se estará buscando uma aplicação condizente com o princípio da igualdade substancial.Tomando emprestado uma afirmação de Cláudia Cruz Santos, podemos dizer que"mais do que reduzir ilegítimos privilégios dos poderosos(... ), o caminho da igualdade deverá passar por uma extensão dos mesmos privilégios a todos os outros arguidos. De facto, se não nos é possível evitar a desproporção de poder e de bem estar na vida, com tudo o que acarretam, que os evitemos, pelo menos, no funcionamento da justiça penal". [22]

Segundo o pensamento de Rosa Maria Cardoso da Cunha "a maioria das pessoas acredita piamente, sem vacilação, dúvidas ou questionamento, em certas "crenças jurídicas", inculcadas de maneira enfática pela ideologia, tais como:"1. Que existe um legislador racional produzindo um sistema jurídico coerente, econômico, preciso etc. 2.Que o ordenamento jurídico não possui contradições e redundâncias e, especificamente, o direito penal não exibe lacunas. 3. Que a ordem jurídica é finalista, justa e protege indistintamente os interesses de todos os cidadãos. 4. Que o julgador é, axiologicamente, neutro enquanto decide, portanto não há arbítrio na aplicação da Justiça. 5. Que o julgador, no direito penal, busca a verdade real e não o preferível do ponto de vista valorativo". [23] Há inumeras outras distorções que poderíamos elencar, mas querer manter a crença de que o sistema penal atua de forma igualitária frente à todos os criminosos é querer viver no mundo dos quadrinhos e no piloto automático do conformismo.

A partir do momento em que se passa a questionar essa crença e assim se possa transmitir o que foi apreendido e sentido através da leitura dos textos doutrinários e vivência prática, o compromisso com o tema torna-se uma luta diária para se alcançar, cada vez mais, uma forma coerente entre aquilo que se pensa e o nosso comportamento diário. Tomar ciência sobre a discriminação na administração da justiça penal e não agir para estabelecer aquela coerência necessária, com vista a erradicar essa discriminação, é querer cometer suicídio filosófico [24]; é viver acorrentado, sem capacidade de ter dúvidas, adormecido no sonho de que tudo está dando certo e que não se deve mexer em equipa que está ganhando.

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Sobre o autor
Rodrigo Strini Franco

delegado de Polícia Federal em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Rodrigo Strini. Criminalidade do colarinho branco como fonte de desigualdade no controle penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4042. Acesso em: 22 nov. 2024.

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