2. ORIGEM, DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE
2.1. Esboço histórico
Na esteira da evolução dos conceitos relacionados à Responsabilidade Civil, os juristas contemporâneos, cada vez mais criativos e através dos mais variados embasamentos, trataram de incorporar ao referido instituto milenar uma nova forma de indenizar: a responsabilidade civil pela perda de uma chance. Na vida cotidiana, inúmeras são as situações em que, por ato lesivo de outrem, a vítima se vê impedida de ter a oportunidade de evitar um determinado prejuízo ou de conquistar uma determinada vantagem.
Um advogado que, por negligência, perde o prazo de interposição de recurso judicial em favor de seu cliente e por isso fulmina a oportunidade de a referida causa ser apreciada em segunda instância, ou até mesmo de reverter a sentença e ganhar a demanda. Um jovem que, por conta do mau funcionamento do transporte público coletivo, chega atrasado e perde a oportunidade de realizar uma prova de concurso e, por conseguinte se tornar servidor público. Uma pessoa, que por ter sido incluída indevidamente no cadastro de maus pagadores, perde a chance de obter um financiamento junto a instituição financeira. Um candidato a um emprego que, após passar por todo o processo seletivo, se vê aprovado, abandona o emprego anterior e, quando da formalização do novo contrato, é surpreendido pelo arrependimento de seu empregador. Ou ainda, um médico que, por negligência, se esquece de ministrar um remédio no momento adequado e ocasiona a seu paciente a perda da chance de cura.
A lista de possibilidades parece infinita, mas veremos ao longo do trabalho que, para a configuração da perda da chance como obrigação de reparar, deve-se atentar para critérios rígidos como a realidade e a seriedade das chances, além de nexo causal claro e a busca pela certeza do dano.
Durante muito tempo, ignorou-se no Direito o dano oriundo da perda da oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um determinado prejuízo. A questão da incerteza do nexo de causalidade (liame entre conduta e dano) era um entrave para aplicação da teoria e com isso ignorava-se a possibilidade de existir um dano distinto da vantagem esperada (dano final), que seria o dano pela perda da oportunidade de obter tal vantagem (SAVI, 2012).
A França foi o primeiro grande polo jurídico a dedicar atenção especial aos estudos da teoria da perte d’une chance. O tema despertou discussões acirradas e acabou por influenciar a Corte de Cassação daquele país a atribuir à perda da chance o status de dano indenizável (SAVI, 2012).
Relatos afirmam que o primeiro julgamento no sentido de aceitar a aplicabilidade da teoria ocorreu em 17 de julho de 1889, hipótese na qual a Corte de Cassação Francesa conferiu indenização pela perda de uma chance a uma vítima que se viu privada de ter possibilidades de êxito em uma demanda, por conta de uma atuação culposa de um oficial ministerial que impediu o curso normal do procedimento (PETEFFI DA SILVA, 2013). O pioneirismo francês foi responsável por propor que, ao invés de admitir a indenização pela perda da vantagem esperada, passou-se a defender que o dano indenizável deveria ser um dano distinto do resultado final, ou seja, a perda da chance em si. Fez-se a pertinente diferenciação entre o resultado almejado e a possibilidade de conquista-lo (SAVI, 2012).
A teoria foi ganhando espaço na jurisprudência francesa e acabou por inspirar outros países europeus. No direito britânico, inspirado na família jurídica da common law, o caso pioneiro de aplicação da perda de uma chance ocorreu em 1911. No caso concreto, conhecido como Chaplin v. Hicks, a autora participava de um concurso de beleza organizado pelo réu e já se encontrava entre as 50 finalistas, no entanto, por ato culposo do réu, foi impedida de participar da fase final do concurso, fase esta que constava de uma apresentação diante de jurados com a finalidade de distribuir 12 prêmios diversos entre as finalistas. A solução jurídica encontrada pelos magistrados foi a utilização da “doutrina das probabilidades”, concedendo à autora uma indenização correspondente a 25% das chances de conquistar um dos prêmios (PETEFFI DA SILVA, 2013, p. 11).
Na Itália, a primeira manifestação da aplicação da teoria da perda de uma chance data de 19 de novembro de 1983 e envolvia um grupo de trabalhadores convocados por uma determinada empresa para participar de um processo seletivo para contratação de motoristas, no entanto, após a realização de exames médicos, alguns destes trabalhadores, aspirantes ao emprego, tiveram, de forma injustificada, cessado o direito de participar das fases subsequentes da seleção, que seriam fundamentais para uma futura admissão. Neste caso, a Corte de Cassação Italiana admitiu a indenização do dano oriundo da perda da oportunidade de participar das demais fases do processo seletivo, reconhecendo valor patrimonial à chance por si só considerada, desvinculando-a do resultado final, que seria a conquista do emprego. A Corte foi mais além e alocou o dano decorrente da perda de uma chance como dano emergente (SAVI, 2012).
No Brasil, as primeiras manifestações de aplicação da perda de uma chance, se deram no Rio Grande do Sul, em 1990 e 1991, através do então desembargador Ruy Rosado de Aguiar Júnior. O pioneirismo foi expresso por duas decisões emblemáticas.
A primeira, de 12 de junho de 1990 fixou importantes pressupostos para a aplicação da perda de uma chance, entretanto rechaçou sua aplicação. Tratava-se do caso em que a autora se submeteu espontaneamente a uma cirurgia visando a correção de miopia, no entanto, após a intervenção, ao invés de ver seu olho curado, acabou adquirindo hipermetropia no olho operado (HIGA, 2012).
A segunda, de 29 de agosto de 1991[3], se tornou a primeira decisão em solo brasileiro a aceitar a perda de uma chance como dano indenizável. Tratava-se de um caso de extravio dos autos de processo judicial, com a subsequente negligência do advogado em postular a restauração dos autos e informar sua cliente da situação processual, bem como a medida judicial cabível (HIGA, 2012). O então relator, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, concluiu que o advogado rompeu com os “deveres inerentes à profissão de advogado” e que a “omissão da informação do extravio e não restauração dos autos, causaram à autora a perda de uma chance e nisso reside seu prejuízo”.
Atualmente, a teoria encontra enorme respaldo doutrinário e jurisprudencial tanto no direito comparado, quanto no direito brasileiro e sua utilização é observada tanto na responsabilidade civil contratual ou negocial quanto na responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, assim como na responsabilidade subjetiva e objetiva (PETEFFI DA SILVA, 2013).
2.2. A perda de uma chance como dano autônomo ao resultado final esperado sob a ótica da proposta de classificação das chances perdidas
Desde o início de sua concepção, a responsabilidade civil pela perda de uma chance sempre foi objeto de diversas propostas taxonômicas, por meio dos mais variados entendimentos, tanto no direito comparado, quanto no direito pátrio. No entanto, como a discussão que paira sobre o tema está longe de se esgotar, veremos aqui algumas propostas extremamente coerentes e enriquecedoras para o correto entendimento do instituto.
O Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e grande entusiasta da Teoria da Perda de uma Chance, Rafael Pettefi da Silva (2013, p. 256) procura sistematizar a perda de uma chance a partir de dois grandes grupos:
O primeiro seria caracterizado pelos casos nos quais o processo aleatório em que se encontrava a vítima é totalmente interrompido pela conduta do réu, antes de chegar ao seu final, aniquilando com todas as chances daquela. Esses casos apresentariam as chances perdidas pela vítima como uma especificidade do conceito de dano, garantida pela ciência Estatística. Já no segundo grupo, a conduta do réu não interrompe o processo aleatório em que se encontrava a vítima, fazendo com que haja apenas uma diminuição das chances de auferir a vantagem esperada. Nesses casos, o processo aleatório foi até o seu momento derradeiro e a ciência Estatística utilizada apenas para medir em que grau a conduta do réu contribuiu para a causação do dano final, fazendo com que as chances perdidas não passem de causas parciais para a perda da vantagem esperada pela vítima (grifo nosso).
A conclusão que se extrai do exposto acima é a de que o primeiro grande grupo, denominado pela doutrina de “perda da chance clássica” ou “perda da chance típica”, é caracterizado pela interrupção do processo aleatório em que a vítima se encontrava, fulminando, antes de alcançar o final, todas as chances de ela obter a vantagem esperada ou evitar um determinado prejuízo. Neste caso, a perda da chance se mostra totalmente isolada e autônoma ao dano final, devendo ser considerada sem vinculação com o que “poderia ter acontecido”.
Aqui temos o exemplo do jóquei que, por falha no transporte contratado, não chega a tempo de participar de uma corrida, lesando claramente a chance de quem apostou nele; bem como o exemplo da pessoa que tem privada a oportunidade de participar da última fase de um concurso para magistratura. Nestes casos, a vantagem esperada é execrada de plano, eliminando de imediato o candidato e suas chances de obter êxito. O resultado final perdido é um evento certo e presente (HIGA, 2012).
Já no segundo grande grupo, chamado de “perda da chance atípica” o processo aleatório (curso normal dos acontecimentos) não sofre interrupção, chegando ao seu momento final. O que ocorre é uma redução das chances de obter o ganho ou evitar o prejuízo. Nesta situação, utiliza-se a noção de “oportunidades perdidas” com o intuito de delimitar até que ponto o comportamento ilícito do réu contribuiu para o resultado derradeiro, devendo-se valer da causalidade parcial, pois não se sabe ao certo se foi outra causa ou um conjunto de várias que ensejou o dano final. Aqui se encaixam perfeitamente, de modo geral, os erros médicos (responsabilidade civil por perda da chance de cura ou sobrevivência). Pettefi da Silva (2013, p. 259) afirma que, nestes casos, a perda da chance deve ser “uma opção subsidiária, utilizada somente após esgotar as possibilidades da utilização ortodoxa do nexo causal”.
Como exemplo, temos o caso do paciente que falece ou se torna inválido e, após, descobre-se que o diagnóstico foi negligentemente omitido pelo médico. O que se nota nestes casos, é que a perda da chance não impediu que o processo aleatório chegasse ao seu final (o paciente segue entregue à própria sorte mesmo após a omissão do médico, sem se saber se iria falecer ou não), mas diminuiu significativamente a chance de êxito da vítima. Aqui, a vinculação da perda da oportunidade ao dano final é futura e incerta (HIGA, 2012).
Na mesma toada, Gisela Sampaio da Cruz (2008, p. 82 apud SAVI, 2012, pp. 45-46) aduz:
(...) enquanto na perda de uma chance clássica o dano decorre do evento danoso que interrompeu o processo em curso, no caso da perda de uma chance de evitar um prejuízo que já aconteceu o dano surge exatamente porque o processo em curso não fora interrompido, quando poderia tê-lo sido feito. Se o processo tivesse interrompido, haveria a possibilidade – isto é, a chance – de o dano não se verificar. Então, ao contrário dos casos clássicos de perda de uma chance, aqui as chances não estão mais relacionadas a algo que poderia vir a acontecer no futuro, antes são atinentes a algo que podia ter sido feito no passado, para evitar o dano verificado. Tem-se conhecimento de que ocorreu um dano por força de determinada cadeia causal; o que se indaga é se o dano poderia ter sido evitado, caso tivessem sido adotadas certas providências que interromperiam o processo em curso.
Sabe-se que a essência da perda de uma chance está na difícil missão de “absorver o desconhecido”, numa busca complexa pela localização da “álea”. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2002) trata a palavra “álea” como um termo jurídico que significa literalmente a possibilidade de prejuízo simultaneamente à de lucro, ou em outras palavras, risco. Este ponto também é fundamental para traçar a distinção entre as duas modalidades.
Flávio da Costa Higa (2012, p. 176) aponta algumas distinções:
Na perda de uma chance “típica”, a álea está no dano (resultado final). Nele reside a ignorância humana sobre os acontecimentos. Sabe-se que a vítima tinha um interesse aleatório; que este foi usurpado pela interrupção do processo aleatório (ato ilícito); que esta interrupção foi a causa da perda do interesse aleatório (nexo causal), mas, como a vítima só participa da cadeia causal até a intervenção interruptiva, não se sabe se ela conseguiria ou não o resultado almejado (dano equivalente ao resultado final) (...). De outro bordo, na perda de uma chance “atípica”, a álea está no nexo causal. Nele, habita o desconhecimento sobre os fatos. Sabe-se que a vítima tinha um interesse aleatório; que este foi usurpado pela não interrupção do processo aleatório até o seu fim, também se sabe que ela sofreu o prejuízo ou não obteve o benefício que perseguia (dano equivalente ao resultado final). Porém, não se pode precisar se o ilícito do réu foi causador do dano (nexo causal), embora haja a “certeza da probabilidade” (grifo nosso).
Em plena compatibilidade com as propostas acima descritas, deve-se ressaltar também a sugestão do ilustre jurista Fernando Noronha (2003, p. 664-688 apud SAVI, 2012, p. 45) que propõe três classificações da perda da chance, são elas: “frustração da chance de obter uma vantagem futura”; “frustração da chance de evitar um prejuízo futuro” e “frustração da chance de evitar um dano que aconteceu”, tendo a última classificação uma subdivisão em “perda de uma chance por falta de informação” e “perda de uma chance de evitar que outrem sofresse um prejuízo”.
Em suma, a distinção entre a perda de uma chance clássica ou típica e a perda de uma chance atípica reside justamente em enxergar o dano decorrente da perda da chance como um dano autônomo ou não em relação ao resultado final almejado. Enquanto na clássica ou típica a interrupção abrupta do processo aleatório ensejaria por si só um dano autônomo e sem vinculação ao dano final, na atípica a perda da chance é vinculada ao dano final e o processo aleatório não se vê interrompido antes do momento derradeiro. Nesta última, utiliza-se a complexa noção de causalidade parcial e abarca na imensa maioria dos casos a responsabilidade civil do médico por perda de uma chance de cura ou sobrevivência e em alguns casos isolados, a responsabilidade civil do advogado por perda da chance de obter êxito na demanda judicial. Para ilustrar bem a diferença, vejamos dois exemplos no que tange à responsabilidade civil do advogado.
Imagine um réu, derrotado em ação judicial, que alega posteriormente em outro juízo que, por negligência de seu advogado que não apresentou contestação no prazo legal, “perdeu a chance de êxito na demanda judicial”. Note-se que, neste caso, nunca se saberá ao certo se foi a ausência de contestação ou outros fatores que levaram o réu a perder a demanda, uma vez que o processo não foi interrompido no momento da não protocolização da contestação, prosseguindo até o seu final (trânsito em julgado). Portanto, como o processo aleatório chegou ao seu momento derradeiro, é tarefa impossível auferir se a ausência de contestação foi condição necessária para a derrota do réu, logo não há o elemento “certeza” do dano, apenas uma “hipótese”, portanto não haveria como aceitar a aplicação da perda de uma chance, uma vez que a legislação civilista pátria não permite indenização por “danos hipotéticos”. Nestes casos, deve-se recorrer, de forma subsidiária, à noção de causalidade parcial, ou seja, até que ponto o advogado negligente interferiu no resultado da demanda.
Agora imagine o mesmo réu, derrotado em ação judicial, que, posteriormente alega que, por ato negligente de seu advogado que não apresentou contestação no prazo legal, “perdeu a chance de exercer o direito constitucional de contraditório e ampla defesa” no contexto do devido processo legal. Aqui existe o elemento “certeza” do dano e é possível notar que seu direito de defesa foi abruptamente interrompido. Não se trata de um dano hipotético, mas sim um dano certo e autônomo ao resultado final, qual seja, o êxito na demanda judicial. Neste caso, existe nexo de causalidade certo entre a conduta do advogado e a perda da chance de defesa judicial. O resultado final será observado pelos julgadores apenas para fins de encontrar a seriedade e realidade da chance perdida, bem como quantificar o dano decorrente da perda da chance.
A perda da chance pode ser observada sob estas duas óticas, entretanto, a perda de uma chance vista como um dano autônomo ao resultado final esperado (como demonstrado no último exemplo) se mostra mais adequada, pois se amolda perfeitamente ao ordenamento jurídico pátrio e será minuciosamente tratada no presente trabalho.
Após refinada análise sobre as possíveis espécies de perda de uma chance, daremos início a um verdadeiro “divisor de águas” do presente trabalho. A partir de então, por questões metodológicas, será abordada como ponto central do presente trabalho, a modalidade clássica ou típica de perda de uma chance, tendo em vista a distância conceitual significativa existente entre ambas as espécies.
2.3. A distinção entre a “perda da chance de obter a vantagem esperada” e a “perda da vantagem esperada”
Antes de adentrarmos propriamente na instigante questão da natureza jurídica do dano decorrente da perda de uma chance, se mostra necessário traçar uma distinção entre a perda da chance por si só considerada e a perda da vantagem esperada ou dano final. Trata-se de problemática complexa e serve como ponto de partida para entendermos a aplicação da teoria em comento.
Para ilustrar a temática, interessante se mostra traçar um paralelo entre a perda de uma chance e os lucros cessantes. Como já visto anteriormente no capítulo destinado à análise do dano patrimonial e extrapatrimonial, as situações clássicas de lucros cessantes são representadas pelo que a vítima razoavelmente deixou de lucrar. Cavalieri Filho (2003, pp. 91-92 apud PETEFFI DA SILVA, 2013, p. 225) assevera que é possível notar que, nos lucros cessantes, não há uma certeza absoluta quanto à relação existente entre a conduta do réu e os lucros cessados ou perdidos, entretanto,existem indícios suficientemente fortes para que o juiz possa gerar a convicção de que é razoável supor que o autor deixou de auferir determinados lucros devido à conduta do réu, a qual poderá ser caracterizada como conditio sine qua non para o aparecimento do dano uma certeza absoluta.
O clássico caso de lucros cessantes é o do taxista que deixa de obter o lucro que normalmente aufere, em virtude de ter seu automóvel danificado por conta de um abalroamento culposo. Durante o tempo de reparação do veículo, o taxista recebe a indenização por danos materiais a título de lucros cessantes. Nestes casos, não se confundem os conceitos de lucros cessantes e perda da chance, uma vez que o próprio art. 402 do Código Civil previu o instituto dos lucros cessantes como dano final ou vantagem esperada. O que diferencia os dois institutos é que na perda de uma chance a conduta culposa do réu não é conditio sine qua non para que haja o dano final, mas somente a perda da oportunidade de almejar a vantagem esperada (PETEFFI DA SILVA, 2013, p. 225).
Em obra destinada a investigar a responsabilidade civil pela perda de uma chance no Direito do Trabalho, o Juiz do Trabalho e mestre pela Universidade de São Paulo, Flávio da Costa Higa (2012, p. 68) brilhantemente diferencia os institutos abordando a linha tênue entre os danos oriundos da perda da chance e os lucros cessantes:
(...) no primeiro caso, o juízo é de probabilidade, mas não no sentido de se supor qual seria o estado atual da vítima diante da inocorrência do ato ilícito (teoria da diferença), mas de calcular qual seria a probabilidade de o ofendido obter o resultado final esperado, em termos percentuais. (...) Já na segunda hipótese, o grau de probabilidade de que os fatos idôneos (pressupostos constitutivos) necessários à percepção da vantagem ocorram é tão grande, por decorrer do andamento normal da vida, que leva o intérprete a presumi-lo, mediante a formulação de um raciocínio hipotético de como os acontecimentos naturais se dariam sem a ocorrência do ilícito (...).
2.4. A divergência quanto à natureza jurídica
O trabalho de investigar a natureza de um determinado instituto jurídico nada mais é do que buscar o seu devido enquadramento dentro de determinada categoria dogmática admitida no sistema de direito. A tarefa de enquadrar a perda de uma chance em uma dessas categorias é desafiadora, uma vez que a doutrina e a jurisprudência são demasiadamente oscilantes na tarefa que lhes foi concedida.
No Brasil, existem pelo menos quatro entendimentos distintos quanto à natureza jurídica da perda de uma chance. Alguns a confundem com os lucros cessantes (como aludido anteriormente), outros a entendem como uma nova categoria de danos, outros como exclusivamente um agregador do dano moral e ainda existem aqueles que a entendem como integrante dos danos emergentes. Nos próximos subcapítulos ficaremos adstritos a estudar as últimas três concepções.
2.4.1. A perda da chance como uma nova categoria de dano
Sílvio de Salvo Venosa (2013) entende a perda de uma chance como um terceiro gênero de indenização, que estaria situado como subespécie dos danos patrimoniais, num verdadeiro “meio termo” entre os danos emergentes e os lucros cessantes, uma vez que não se amolda nem a um nem a outro.
Raimundo Simão de Melo (2007) e Janaína Rosa Guimarães (2009) também seguem a mesma linha de pensamento, ao fundamentar que a perda de uma chance não se encaixaria como dano emergente ou lucro cessante, por se tratar de probabilidade e não de obtenção do resultado esperado, devendo ser tratada como uma nova categoria de dano indenizável.
Essa proposta é bastante criticada, pois esbarra na questão da certeza, que é requisito essencial para configuração do dano. De acordo com o atual ordenamento jurídico brasileiro, não há como aceitar a incidência de responsabilidade civil em dano hipotético, pautado apenas em probabilidades.
2.4.2. A perda da chance como agregador do dano moral
Este entendimento é pautado na construção jurisprudencial brasileira, na qual incontáveis decisões proferidas pelos mais diversos tribunais acreditam que a frustração séria e real da vítima somente está apta a ser considerada um “agregador” do dano moral, gerando apenas reflexos extrapatrimoniais no montante da indenização. Em outras palavras, o dano decorrente da perda de uma chance ensejaria apenas danos morais (PETEFFI DA SILVA, 2013). Vejamos algumas decisões neste sentido.
No julgamento referente à Apelação Cível n. 2003.001.19138[4], ao analisar a conduta negligente de advogado que perde o prazo para interposição de recurso em desfavor de seu cliente, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entendeu a perda de uma chance como exclusivamente um dano moral. Vejamos um trecho da ementa:
(...) É certo que o fato de ter o advogado perdido a oportunidade de recorrer em consequência da perda de prazo caracteriza a negligência profissional. Da análise quanto à existência de nexo de causalidade entre a conduta do apelante e o resultado prejudicial à Apelada resta evidente que a parte autora da ação teve cerceado o seu direito de ver apreciado o seu recurso à sentença que julgou procedente a reclamação trabalhista, pelo ato do seu mandatário, o qual se comprometera ao seu fiel cumprimento, inserido que está, no elenco de deveres e obrigações do advogado, aquele de interpor o recurso à sentença contra qual irresignou-se o mandante. Houve para a Apelada a perda de uma chance, e nisso reside o seu prejuízo. Estabelecida a certeza de que houve negligência do mandatário, o nexo de causalidade e estabelecido o resultado prejudicial demonstrado está o dano moral (grifo nosso).
A tese defendida de que o dano decorrente da perda de uma chance se encontra apenas na esfera do dano extrapatrimonial também pode ser vista no voto proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no julgamento da Apelação Cível n. 70.003.003.845[5]. No caso em tela, a autora, desempregada, pleiteava indenização a título de danos materiais e morais em face de uma empresa na qual tinha trabalhado, uma vez que, por ato do responsável pelo departamento pessoal da referida empresa, teve sua imagem denegrida frente às possíveis novas empregadoras, ensejando a perda da chance de obter um novo emprego. Vejamos um trecho do voto que optou por excluir a condenação por danos materiais e manter os danos morais, no entanto de forma reduzida:
Quanto aos danos materiais, tenho que estes inocorreram. Embora seja evidente o prejuízo sofrido pelo autor em razão das informações prestadas quanto a sua pessoa, tenho que não se pode presumir que este conseguiria o emprego na empresa Erva Matte Zaffari Ltda., e, muito menos, lá permaneceria trabalhando por muito tempo. Tenho que o maior prejuízo sofrido pelo autor foi a perda de chance de obter o emprego, ou seja, a possibilidade de concorrer com os demais candidatos em patamar de igualdade, com a mesma possibilidade de obter a vaga. No meu entender, tal prejuízo encontra-se na esfera dos danos morais, devendo ser levado em conta quando do arbitramento destes. Não vislumbro possibilidade de condenar a ré ao pagamento de salários que o autor perceberia caso conseguisse o emprego, pois tal fato não passa de presunção, não acompanhada da prova necessária para a condenação da empresa ré por danos materiais (grifo nosso).
No mesmo sentido é a decisão proferida no acórdão dos Embargos Infringentes n. 598.164.077[6] do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Essa corrente, interpretada de forma a restringir outros entendimentos, também se mostra falha, pois desconsidera a possibilidade de a perda de uma chance ensejar danos na esfera patrimonial, o que é inadmissível se analisarmos sistemicamente sua natureza jurídica.
Imaginemos o exemplo de um candidato aspirante ao cargo de Juiz Federal que, aprovado na fase objetiva, discursiva e prática, se vê ilegalmente impedido de participar da prova oral, qual seja, a última fase do concurso. Nota-se claramente que, neste caso a perda da oportunidade de se tornar juiz já é por si só ensejadora de indenização por danos emergentes, por possuir valor econômico, sem prejuízo de eventuais danos morais.
Um dos expoentes dos estudos referentes à perda de uma chance no Brasil, Sérgio Savi (2012, p. 57) analisou a grande ineficiência desta corrente:
O que não se pode admitir é considerar o dano causado pela perda de chance como sendo um dano exclusivamente moral. Até porque, (...) a frustração de uma oportunidade séria e real de incremento no patrimônio pode causar danos de natureza patrimonial, que se enquadram como uma subespécie de dano emergente.
Vale ressaltar que a corrente abordada neste subcapítulo não está completamente equivocada se analisada com maior amplitude, uma vez que haverá casos em que o julgador não estará apto a indenizar o dano material oriundo da perda da chance por não ser hipótese suficientemente séria e real, entretanto, poderá considerar a perda da expectativa como algo indenizável a título de danos morais (SAVI, 2012).
2.4.3. A perda da chance como dano emergente e sua convivência harmoniosa com os danos morais e materiais
No Brasil, a tese mais elogiada pela doutrina para o enquadramento da natureza jurídica da perda de uma chance baseia-se nos estudos trazidos por Sérgio Savi do direito italiano, mais precisamente das lições proferidas por Antônio de Cupis em seu livro Il danno: teoria generale dela responsabilità civile (1966 apud HIGA, 2012). Vejamos a conclusão exposta por Savi (2012, p. 122):
Ao se inserir a perda de chance no conceito de dano emergente, elimina-se o problema da certeza do dano, tendo em vista que, ao contrário de se pretender indenizar o prejuízo decorrente da perda do resultado útil esperado, (a vitória na ação judicial, por exemplo), indeniza-se a perda da chance de obter o resultado útil esperado (a possibilidade de ver o recurso examinado por outro órgão de jurisdição capaz de reformar a decisão prejudicial). (...) Assim, não se concede indenização pela vantagem perdida, mas sim pela perda da possibilidade de conseguir essa vantagem. Isto é, faz-se uma distinção entre resultado perdido e chance de consegui-lo. Ao assim proceder, a indenização da perda de uma chance não se afasta da regra da certeza do dano, tendo em vista que a possibilidade perdida, em si considerada, era efetivamente existente: perdida a chance, o dano é, portanto, certo.
O mesmo autor complementou as supracitadas lições afirmando que a perda da chance, dependendo do caso concreto, está apta a originar tanto danos patrimoniais, quanto danos extrapatrimoniais, inclusive de forma cumulada. Conclui seu raciocínio afirmando que, no caso de danos patrimoniais, a perda da chance se amolda perfeitamente ao dano emergente.
Em caso de responsabilidade civil do advogado pela perda de prazo recursal, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou neste mesmo sentido e, de forma contundente, julgou o Recurso Especial n. 1.079.185/MG[7], de relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Vejamos um trecho da ementa:
Ao perder, de forma negligente, o prazo para a interposição de apelação, recurso cabível na hipótese e desejado pelo mandante, o advogado frustra as chances de êxito de seu cliente. Responde, portanto, pela perda da probabilidade de sucesso no recurso, desde que tal chance seja séria e real. Não se trata, portanto, de reparar a perda de “uma simples esperança subjetiva”, nem tampouco de conferir ao lesado a integralidade do que esperava ter caso obtivesse êxito ao usufruir plenamente de sua chance. (...) A perda da chance se aplica tanto aos danos materiais quanto aos danos morais (...) (grifo nosso).
Flávio da Costa Higa (2012) afirma que a grande falha na tentativa de vincular a perda de uma chance à natureza jurídica de danos emergentes reside em que, de acordo com grande parcela da doutrina, somente se desdobraria em dano patrimonial, impedindo a aplicação da teoria nos casos em que o evento danoso gere apenas prejuízos na esfera extrapatrimonial. No entanto, o mesmo autor encontra uma saída jurídica para tal crise sistêmica e, buscando as lições jurídicas de Sílvio Neves Baptista (2003 apud HIGA, 2012, p. 80) vinculadas a uma doutrina minoritária, assevera que: “O estreitamento da classificação do dano emergente e do lucro cessante em, apenas, subespécies de dano patrimonial é uma restrição de todo inaceitável, pois é possível estendê-las a várias hipóteses de dano moral”.
Também se utiliza dos ensinamentos trazidos por Aguiar Dias (1960, p. 80 apud HIGA, 2012, p. 80), afirmando que a distinção entre o dano moral e o dano material:
(...) ao contrário do que parece, não decorre da natureza do direito, bem ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter da sua repercussão sobre o lesado. De forma que tanto é possível ocorrer dano patrimonial em consequência de lesão a um bem não patrimonial como dano moral em resultado de uma ofensa a bem material.
O entendimento acima transcrito afasta a noção de que o dano emergente pode ser vinculado, tão somente, ao dano patrimonial. Sob essa ótica seria possível enquadrar, sem qualquer crise sistêmica, a perda de uma chance como categoria pura de danos emergentes, visto que seria possível, em alguns casos, aplicá-la como desdobramento de lesões extrapatrimoniais.
Ainda no que tange à celeuma que orbita a questão da natureza jurídica, Gisela Sampaio da Cruz (2008, p. 93 apud SAVI, 2012, p. 42) se desvincula da “armadilha” do enquadramento classificatório ao dizer que a perda de uma chance tem característica de “situação lesiva”, passível de gerar qualquer espécie de reparação civil prevista no ordenamento jurídico. Ilustra da seguinte forma seu pensamento:
O dano decorrente da perda de uma chance nem sempre, porém, poderá ser qualificado como dano emergente, porque também pode envolver interesses extrapatrimoniais. Exatamente por isso, ao que parece, a perda de uma chance também não pode ser considerada propriamente, um terceiro gênero, ao lado do dano emergente e do lucro cessante, sendo antes uma situação lesiva da qual pode originar um dano patrimonial ou extrapatrimonial, a depender do interesse em jogo.
Com o intuito de uniformizar o entendimento divergente e contraditório dos tribunais, a problemática foi levada a debate na V Jornada de Direito Civil organizada pelo Conselho da Justiça Federal, tendo sido aprovado o esclarecedor enunciado n. 443. In verbis:
Art. 927. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos.
Com vistas a sintetizar o pensamento que hoje é muito bem visto na jurisprudência, a Ministra Nancy Andrighi, em voto didático proferido no já supramencionado REsp 1.079.185/MG, chancela o entendimento de que a perda da chance pode representar tanto um dano material quanto um “agregador” do dano moral, não admitindo, contudo, que seja visto somente como um dano exclusivamente de natureza moral.