Há várias décadas os estudiosos do direito administrativo brasileiro protestam contra a inexistência de uma lei de normas gerais de processo administrativo no país e denunciam o atraso da administração pública brasileira na matéria. O incremento da edição de leis sobre processo administrativo, em todo o mundo, nas três últimas décadas, tornou ainda mais visível essa lacuna do ordenamento jurídico brasileiro. Datam deste período, por exemplo, a edição ou a reforma das leis de processo administrativo da Argentina (1972), da Alemanha (1976), da Venezuela (1982), da Itália (1990), de Portugal (1991) e da Espanha (1992).
Essas leis gerais do processo administrativo, dedicadas a enunciar as normas básicas do modo de agir da administração pública, são consideradas em todo o mundo a carta de identidade da administração pública, o núcleo do ordenamento jurídico administrativo, o estatuto fundamental da cidadania administrativa. Esses adjetivos não são excessivos. Em geral, a disciplina abrangente do processo administrativo colabora para afastar da atividade administrativa o casuísmo e o excesso de subjetividade, assegurando à Administração meios para que sejam tomadas decisões legais, fundamentadas, objetivas e oportunas. As leis gerais de processo administrativo costumam assegurar a informação e a participação adequada dos interessados no processo de decisão administrativa, reduzindo, na medida em que asseguram maior transparência das razões de decidir, contendas desnecessárias nas vias judiciais. Nelas busca-se também fazer o detalhamento de formas inteligentes de atendimento à lei, voltadas antes ao cumprimento das finalidades legais do que a uma ordenação meramente formal, ritualística ou burocratizada da ação administrativa.
No Brasil, até recentemente, em razão da inexistência de normas gerais de processo administrativo no país, era comum que os agentes públicos desconhecessem por completo como proceder ante solicitações e recursos de particulares. Nestes casos, o agente público simplesmente se omitia de decidir, recusava liminarmente o pedido ou editava ato sem fundamentação mínima. Em todas essas hipóteses, a Administração sofria um prejuízo direto, pois o particular recorria ao Judiciário, a Administração arcava com os ônus próprios das demandas judiciais e perdia credibilidade ante o aparelho da Justiça. Não eram comuns, por outro lado, a utilização de institutos como a "convalidação" (correção de nulidades com efeito retroativo), a "conferência de serviço" (audiência de vários órgãos e entidades em reunião conjunta, num mesmo ato, com pronta solução de demandas), a "consulta e a audiência públicas" e a "padronização de respostas" para agilização da atividade administrativa. A ação administrativa caminhava sem prazos, ao sabor dos humores dos agentes públicos, que dilatavam os procedimentos segundo suas conveniências, sem atenção ao cidadão e à coisa pública, diante da ausência de marcos legais gerais objetivos que permitissem caracterizar esse comportamento como abusivo e desidioso. Os procedimentos existentes eram geralmente estabelecidos para finalidades específicas, conhecidos de poucos e auto-referidos, atendendo sobretudo às necessidades de documentação da burocracia.
Esse contexto começa a ser modificado. Marco dessa alteração é a edição da recente Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, no âmbito da União Federal, e da Lei n. 10.177, de 30 dezembro de 1998, no Estado de São Paulo. Antes desses dois diplomas, com caráter pioneiro, merece registro a Lei Complementar n. 33, de 26 de dezembro de 1996, do Estado de Sergipe.
A Lei n. 9784/99, Lei de Normas Básicas do Processo Administrativo da União, resultou de um texto elaborado por uma Comissão de Juristas, constituída pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, em 1996. O texto da comissão foi integralmente acatado no âmbito do Poder Executivo no encaminhamento do projeto de lei e, depois, numa raro exemplo de consenso parlamentar, aprovado com o aplauso de todas as tendências partidárias no Congresso Nacional.
A Comissão de Juristas foi composta pelos seguintes professores: Caio Tácito (RJ), Membro e Presidente da Comissão; Odete Medauar (SP), Membro e Relatora; Inocêncio Mártires Coelho (DF), Diogo de Figueiredo Moreira Neto (RJ), José Carlos Barbosa Moreira (RJ), Almiro do Couto e Silva (RS), Maria Zanella Di Pietro (SP), Adilson Abreu Dallari (SP), José Joaquim Calmon de Passos (BA), Carmem Lúcia Antunes Rocha (MG) e Paulo Modesto (BA), Membro e Secretário Geral da Comissão. O Prof. José Carlos Barbosa Moreira (RJ), iniciados os trabalhos, desligou-se da comissão por razões de ordem pessoal. Todos os membros da comissão de elaboração do anteprojeto original trabalharam sem remuneração, em atividade considerada como de prestação de serviços relevantes ao país.
A Lei n. 9.784/99 revoluciona a forma de relacionamento da Administração Pública com os administrados no âmbito da União. Redigida em linguagem simples, a Lei detalha os princípios aplicados ao processo administrativo (Art. 2º), os direito e deveres dos administrados (Art. 3º e 4º), proíbe a recusa sem motivação de documentos ou solicitações dos particulares (Art. 6º, § único), impõe o dever da Administração de decidir as pretensões dos administrados de forma expressa (Art. 48), adota a gratuidade como regra do processo administrativo (Art. 2º, § único, XI), estabelece o prazo de cinco anos como marco fatal para o decaimento do direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários (Art. 54), disciplinando ainda a instrução, os prazos, a forma e lugar dos atos do processo ordinário, inclusive as hipóteses de suspensão e impedimento dos agentes públicos e as formas de recurso e revisão das decisões administrativas.
A Lei Federal n. 9.784/99 disciplina o processo comum, ordinário, fixando as normas básicas da matéria, aplicáveis a todos os processos especiais existentes. Mas, ocorrendo norma especial, a aplicação da nova Lei será apenas subsidiária, preenchendo as lacunas da disciplina específica e auxiliando na interpretação dos seus termos (Art. 69). Trata-se de lei que busca permanentemente harmonizar dois objetivos enunciados desde o seu artigo primeiro: a proteção dos direitos dos administrados e o melhor cumprimento dos fins da Administração. Por isso, toma cuidados para não dificultar a ação administrativa. Mas é como diploma das garantias básicas do cidadão perante a Administração Pública que a Lei cresce em densidade e relevância. Espera-se que a sua edição colabore para que se alterem práticas atrasadas e autoritárias que ainda hoje insistem em vigorar nas repartições administrativas. É certo que pouco pode a Lei se não for bem conhecida, interpretada e empregada. Mas, nestes tempos de tanto pessimismo e inquietação, a sua promulgação constitui um avanço indiscutível e uma nova trilha para o exercício real da cidadania neste país. Guardo a esperança de que o seu conteúdo seja estudado e difundido, adotado ou aperfeiçoado também nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, com a edição de leis locais, para que vinguem em todo o território nacional os objetivos que perseguiu.
O autor foi membro e secretário geral da
Comissão de Juristas que redigiu o anteprojeto
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