Artigo Destaque dos editores

Anatomia da justiça do século XXI:

Justiça municipalizada

Exibindo página 2 de 2
01/05/2003 às 00:00
Leia nesta página:

XI - Duplo grau de jurisdição e juizados informais

            Outro aspecto que merece reflexão se liga aos recursos nos Juizados, em vista da "tradição" brasileira --, má tradição, por sinal --, de estruturar toda a Justiça com base no princípio do duplo grau de jurisdição, na suposição de que este seja uma exigência constitucional. A Justiça é uma instituição cara, o que desaconselha seja prestada, como regra, em mais de um grau de jurisdição, sem que a causa, pelo seu alcance, justifique o seu trâmite pelo Supremo Tribunal Federal.

            Os argumentos com os quais a doutrina tenta justificar o duplo grau de jurisdição não são científicos, mas emocionais, pois não se pode conceber que, pelo fato de a parte vencida se mostrar inconformada com a sentença, se lhe abram todas as chances de reformá-la, em detrimento daquela que venceu a demanda; além do que, nem sempre a justiça dos tribunais é mais justa do que a do juiz singular.

            A própria Constituição, ao prever, no art. 98, I, a criação dos juizados especiais, e estabelecer que serão permitidos, nas hipóteses previstas em lei, o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau, não impôs, necessariamente, a previsão de recursos. Os recursos nos Juizados Especiais só existem porque a lei os previu, mas se não os tivesse previsto, não teria cometido, no particular, nenhuma inconstitucionalidade. (16) Como disse JOAQUIN SILGUERO ESTAGNAN (17) o direito aos recursos deve ser entendido como "no como derecho a que las leyes prevean recursos, sino como derecho a pedir y obtener tutela por los causes de los recursos que las leys prevean". (18)

            Os Juizados Informais Municipais (19) devem ser realmente informais, e, além disso, sumaríssimos, ou seja, "simpliciter et de plano ac sine strepitu et figura iudicii", (20)o que significa um procedimento oral, informal, simples e célere, com sentença ditada na própria audiência, sem qualquer recurso; e, também, com execução imediata, no próprio processo, fora da tradicional execução do estatuto processual civil. Evidentemente, tudo com a observância dos princípios processuais constitucionais, (21) garantidores do devido processo legal, notadamente o contraditório.

            Antes de editada lei federal sobre a matéria, e para se evitar discussões sobre a constitucionalidade desses Juizados, podem eles funcionar centrados preferencialmente na pessoa do árbitro, que é, também, juiz leigo, pois, assim, a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou homologação pelo Poder Judiciário (art. 18 da Lei n. 9.307/96), constituindo título executivo judicial entre as partes e seus sucessores idêntico à sentença judicial (art. 31 dessa mesma Lei). (22)

            Se vierem, porém, esses Juizados, a ser estruturados com base apenas no juiz leigo,, pode-se admitir um "pedido de reexame" da sentença, para o juiz de direito da comarca mais próxima, ou para as Turmas Recursais dos Juizados Especiais, de que trata a Lei n. 9.099/95, como reza o art. 98, I, da Constituição. Penso apenas que deve ser evitada a palavra "recurso", para ir doutrinando o jurisdicionado brasileiro, de que o duplo grau de jurisdição previsto na Constituição não obriga a lei ordinária a prever recurso, ficando a critério do legislador ordinário a conveniência da sua adoção. Supor que os órgãos de segundo grau devam ser necessariamente colegiados, para permitir uma melhor discussão da causa, é outro mito que precisa ser desmistificado, haja vista a recente reforma processual, que permitiu o julgamento monocrático de recursos pelo relator do processo (art. 557 do CPC). (23)

            A pequena significação das demandas julgadas pelos Juizados (24) não justifica, por nenhum motivo, sobrecarregar os juízes togados, e muito menos uma turma composta de três juízes de primeiro grau, com rejulgamentos de causas já julgadas, (25) apenas diferindo para o futuro o trânsito em julgado da sentença. (26) A função dos juízes togados, técnicos em Direito, é resolver as questões que, pela sua natureza e importância, não possam ser resolvidas pelo leigo com base na eqüidade.

            Na medida em que os Juizados municipais tiverem como âncoras o juiz leigo e o árbitro, e como critério de julgamento a eqüidade, pouco ou nada restará ao reexame do juiz togado, num eventual "pedido de reexame", a não ser questões de índole processual ou procedimental, que só raramente comprometem a validade da decisão


XII – Da Justiça necessária à Justiça possível

            Quando esses Juizados forem estruturados nos moldes como devem sê-lo, como seus órgãos, atuando junto às comunidades municipais, sem lugar para procrastinações --, que serão neutralizadas pela força moral do julgador e pela confiança que as partes depositam nele --, teremos conseguido alterar a estrutura anatômica da Justiça brasileira, munindo o País de um organismo judiciário realmente adequado ao atingimento das suas finalidades.

            Precisamos aprender a fazer a justiça que temos condições de fazer, contando com os elementos com que podemos contar, sem copiar os figurinos estrangeiros fundados em princípios que não se amoldam ao nosso perfil, nem político, econômico, cultural ou social. (27)

            Os Juizados municipais atendem às peculiaridades de cada Município, pois os Estado-membros disciplinarão esses órgãos consoante a sua própria geografia social, política e cultural, contando com a colaboração dos próprios munícipes na administração da Justiça. Sob essa ótica, Estados federados, como Amazonas e Mato Grosso, poderão criar juizados integrados de juízes leigos e árbitros, compostos inclusive de indígenas e descendentes seus, para atender à necessidade dessa população minoritária. (28) O mesmo acontece com as comunidades que primam por certas peculiaridades --, e com as quais os juízes togados não guardam a menor identidade --, como as dos pescadores (29)e dos seringueiros, em que um Juizado, com juízes leigos escolhidos de preferência entre seus membros, teria muito mais autoridade moral sobre os litigantes do que a Justiça estatal imposta pelo juiz togado.

            O que se propõe é que bom senso aflore e que os responsáveis pelos destinos da Justiça neste País, se dêem conta de que os Estados federados nunca terão condições de ministrar justiça contando apenas com juízes togados, sediados nas comarcas, a não ser criando Juizados Informais Municipais em cada Município brasileiro, em número correspondente à sua potencialidade litigiosa, e estruturados com base nos juízes leigos, árbitros, e conciliadores.


XIII – Peculiaridades regionais e Juizados municipais

            Tendo os Estados-membros o poder de criar e estruturar os seus próprios Juizados municipais, atendendo às suas peculiaridades regionais, observarão determinados parâmetros – que podem vir a ser fixados por lei federal, para que se mantenha unidade sistêmica --, deixando que as diversidades corram por conta das normas procedimentais. Cada Município terá o seu Juizado, ou até mais de um, conforme as peculiaridades de cada região: funcionando diariamente, semanalmente, quinzenalmente, ou até mensalmente, durante o dia ou à noite; em qualquer lugar (escolas, clubes, associações, imóveis públicos ou particulares), facilitando ao máximo a solução dos conflitos e a preservação da paz social.

            Esses Juizados municipais podem conviver com os atuais Juizados Especiais --, que vêm aliviando a carga que pesa sobre a Justiça ordinária --, com a vantagem de serem uma solução municipalizada que não demandará muitos gastos, podendo funcionar até com o apoio de associações comunitárias.

            O processo dos Juizados municipais deve ser, por seu turno, o mais simples possível, e seguir um procedimento sumaríssimo e adequado à cultura do juiz leigo, já que o árbitro, segundo as regras ditadas pela Lei n. 9.307, de 1996, pode estabelecer o procedimento se não for este estabelecido pelos próprios interessados.

            A única saída para a morosidade da Justiça está na adoção dessas soluções alternativas, que devem ser buscadas nos próprios Municípios, onde ocorrem os conflitos e onde estão os contendores, para solucionar uns e apaziguar outros, criando em cada munícipe a consciência de que a Justiça, através do Juizado municipal, está presente na comunidade, e pronto para agir nos limites do seu território.

            Para que a Justiça não continue sendo esse templo, de portas largas na entrada --, por onde todos os jurisdicionados entram --, e com diminutas portas nos fundos --, por onde apenas uns poucos saem, é preciso que se alarguem essas portas, mediante a instituição de Juizados municipais, estruturados e mantidos pelos Estados-membros, mas com o apoio substancial e humano da municipalidade, (30) nos moldes de uma verdadeira "justiça local".


XIV - Conclusão

            Se o problema da Justiça é de ordem estrutural e não conjuntural, é preciso que se altere substancialmente a sua estrutura, porque reformá-la simplesmente não é a solução adequada para quem pretende uma Justiça no mínimo razoável, nem o meio de tornar acreditada essa instituição em torno da qual gravita a sorte do próprio Estado de Direito.

            Esta saída está na municipalização da Justiça, uma saída sem dúvida radical, na expressão de Cappelletti, mas a única capaz de mudar de vez o seu perfil atual, tornando-a operante e eficaz.


Notas

            01. Como vem acontecendo com as mini-reformas do Código de Processo Civil.

            02. A Lei n. 10.173, de 9/01/2001, que dá prioridade de tramitação aos procedimentos judiciais em que figure como parte pessoa com idade igual ou superior a 65 anos, pretende resolver essa situação.

            03. Fala-se, muitas vezes, no sagrado Templo da Justiça.

            04. A eqüidade é a justiça do caso concreto.

            05. CAPPELLETTI, Mauro, et alii. Acesso à Justiça, trad. de Hellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1988, p. 71.

            06. . O árbitro, depois da Lei n. 9.307, de 1996, é também um juiz leigo, de modo que essa figura não é mais desconhecida do ordenamento jurídico brasileiro.

            07. SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. "Globalização e Direitos Humanos: em busca da racionalidade perdida", Doutrina Civil, RT n. 757, pp. 57-62.

            08. Embora seja o juiz um meio-cidadão, cabe-lhe, por ironia da Constituição, garantir a cidadania completa aos cidadãos-totais.

            09. "Art. 95. Omissis.

            Parágrafo único. Aos juízes é vedado:

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

            III – dedicar-se à atividade político-partidária."

            10. Mesmo que, eventualmente, advogados ou bacharéis em Direito componham o Tribunal do Júri são, nessa instituição, considerados juízes leigos.

            11. Talvez em razão das antigas JCJ, onde os vogais, juízes leigos, nunca cumpriram a sua finalidade, do que resultou a sua extinção.

            12. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Comentada. São Paulo: Saraiva, 2000, p.856.

            13. CARREIRA ALVIM, J.E. et alii. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 8.

            14. "Art. 87. Os Juizados Especiais das Causas Cíveis de Menor Complexidade e das Infrações Penais de Menor Potencial Ofensivo terão sua composição e competência definidas em lei, obedecidos os princípios previstos no art. 81, I, da Constituição federal."

            15. "Art. 88. A lei disporá sobre a criação, funcionamento e processo dos Juizados Especiais de Pequenas Causas a que se refere o art. 24, X, da Constituição Federal."

            16. Aliás, no ordenamento jurídico nacional, as causas trabalhistas que não superam o dobro do valor de referência não permitem qualquer recurso, salvo se houver violação da Constituição (Lei n. 5.884/70, art. 2º, §§ 3º e 4º, com a redação da Lei n. 7.402/85), e nunca foi considerado inconstitucional.

            17. ESTAGNAN, Joaquim Silguero. La tutela jurisdiccional de los intereses colectivos a traves de la legitimacion de los grupos. Madrid: Editorial Dykinson, 1995, p. 95.

            18. "... não como direito a que as leis prevejam recursos, senão como direito de pedir e obter tutela por meio dos recursos que as leis prevejam."

            19. CAPPELLETTI fala em "procedimentos especiais para pequenas causas". Op. cit., p. 94.

            20. "Mais simples, sem estrépito ou aprimorada forma jurídica".

            21. O Direito Processual Constitucional é a reunião dos princípios para o fim de regular a denominada jurisdição constitucional (Karl Swab).

            22. "Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário."

            "Art. 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo."

            23. "Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante no respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

            § 1º-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso."

            24. Parafraseando Klaus Roxin, típicas "causas insignificantes".

            25. No direito estrangeiro, a tendência tem sido no sentido de descolegiar os órgãos de primeiro grau, com o propósito de agilizar a Justiça, como, recentemente, no direito italiano, e essa tendência atingirá também os tribunais, prestigiando os órgãos monocráticos, como o relator, o presidente, o vice-presidente, como sucede, no Brasil, com a recente reforma processual.

            26. "Art. 43. O recurso terá somente efeito devolutivo, podendo o juiz dar-lhe efeito suspensivo, para evitar dano irreparável para a parte."

            27. Os nossos juizados têm que ser mais especiais que os juizados dos outros , porque a nossa geografia é também mais especial que a geografia dos outros.

            28. Não é de se afastar até mesmo a jurisdicionalização da forma de resolução dos conflitos dessas comunidades, desde que observado o direito de defesa e o contraditório.

            29. A imprensa noticiou a existência, no Ceará, ao que parece, de um Tribunal numa aldeia de pescadores, e que, sem caráter jurisdicional, evidentemente, faz justiça na comunidade nas causas envolvendo questões ligadas à pesca.

            30. Esses recursos podem ser tanto materiais quanto humanos, e, nos municípios mais ricos, até contribuindo financeiramente para o melhoramento da Justiça municipal.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
José Eduardo Carreira Alvim

Advogado. Ex-Juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Professor da UFRJ. Doutor em Direito pela UFMG. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVIM, José Eduardo Carreira. Anatomia da justiça do século XXI:: Justiça municipalizada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4080. Acesso em: 19 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos