Feminicídio como exemplo do Direito Penal simbólico

09/07/2015 às 17:39
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Nas faculdades de direito é ensinado aos alunos que o direito penal é a ultima ratio, entretanto, tal ensinamento não se comprova na prática. O que não falta são "novos" tipos penais, criados para dar a população a falsa sensação de segurança.

Introdução

Cada vez que um crime grave é noticiado, surge na população o desejo de que tal conduta não fique impune. Movida pelo clamor emocional divulgado pela mídia e por políticos em busca de promoção social, a sociedade passa a acreditar que um direito penal máximo será a solução mais eficaz para os problemas sociais, protegendo a população dos indivíduos tidos como indesejáveis.

O presente trabalho tem por finalidade criticar o excesso de leis penais, cada vez mais presente em nosso país, utilizando o feminicídio como exemplo. Analisando os pensamentos doutrinários sobre o assunto, e mostrando o porquê de a criação desse novo tipo penal ser desnecessária e ineficaz.

1.Direito Penal Simbólico

Todos os dias a mídia nos oferece uma enorme quantidade de matérias relacionadas a crimes de natureza grave, causando revolta na população, que passa a acreditar que a solução para conter o problema da violência está na construção de um direito penal mais severo. A doutrina jurídica possui então três correntes sobre o assunto: o Abolicionismo, o movimento de Lei e Ordem e o Direito Penal Mínimo. A corrente abolicionista prega o fim do direito penal, bem como a sua substituição por outras áreas do direito, como o administrativo e o civil. Sua origem é atribuída a Filipo Gramatica, para o qual o Estado deveria adotar políticas voltadas para a manutenção da ordem social. Porém, tal movimento está longe de prosperar, pois ainda há casos em que a atuação do direito penal se imprescindível, como casos de homicídio e estupro, por exemplo.

O Direito Penal Mínimo, chamado por Rogério Greco de “Direito Penal do Equilíbrio”, busca manter o direito penal tutelando os bens jurídicos mais importantes. Assim, o Estado mantém seu direito-dever de punir, sem cometer exageros, levando o direito penal a cuidar de situações mais graves. Existem diversos princípios que orientam essa corrente, tais como o da dignidade da pessoa humana e o da intervenção mínima.

Por fim, o movimento de Lei e Ordem, fruto de uma sociedade cada vez mais acuada pela violência e descrente nas instituições públicas, que passa a acreditar que as normas penais são a melhor solução para os conflitos sociais. O Estado Social dá lugar então a u m Estado Penal, no qual políticas públicas voltadas para a prevenção do crime (investimentos em educação, lazer, saúde, entre outros) dão lugar às normas repressivas. Um dos principais exemplos práticos desse movimento foi a política de “tolerância zero” utilizada pelo prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, em 1984, que adotou uma postura de extrema repressão, por parte do Estado, contra todos os tipos de delitos, incluindo até mesmo o que chamamos de contravenções. Assim, as classes média e alta ficaram livres dos “indesejáveis” das classes inferiores.

Desse modo, o direito penal torna-se protetor de quase todos os bens jurídicos. A opinião pública passa a crer que os problemas foram sanados, mas isso não passa de uma ilusão. As causas da violência continuam a existir, embora a sociedade não entenda dessa forma, pois enxerga o crime como um fato isolado e não como o resultado de uma série de fatores. Assim, partindo para uma análise sociológica, a sociedade permanece “doente”, e apenas trata os “sintomas” com leis penais, sem prevenir a “doença” em si. Isso é o que chamamos de Direito Penal Simbólico: leis com excesso de rigor, carregadas de alta carga moral e emocional, que deixarão a opinião pública satisfeita, mas que possuirão pouca eficácia prática.

2.Falta de políticas públicas para a prevenção da violência contra a mulher.

Atualmente, um dos principais focos do Direito Penal Simbólico é a violência de gênero, por ser um tema constante na mídia e por causar grande comoção no público. Também é inegável que se trata de um tema que, infelizmente, faz parte do nosso cotidiano. A violência contra a mulher é, essencialmente, igual em todo o mundo: independe de religião, etnia, classe social, idade ou qualquer outra característica. Segundo o Mapa da Violência 2012, o Brasil é um dos países que lidera o ranking da violência de gênero, embora possua uma das legislações mais avançadas do mundo nessa área, o que prova que a lei penal, por si só, não trará resultados eficazes. Investir nas áreas sociais e na reeducação da sociedade é a melhor forma de prevenir o assassinato de mulheres por seus companheiros. Nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse período sofreu um aumento de 230%. Tais números são um reflexo de que os homens ainda são acompanhados por uma educação machista que tende a colocá-los no papel de líder do grupo familiar e, para que permaneçam nessa posição, é ensinado que o homem não deve demonstrar fraqueza, mas sim força, geralmente imposta pela violência. Embora haja estudos científicos que busquem associar o comportamento agressivo dos homens a fatores hormonais e genéticos, é inegável que o meio social influencia bastante no comportamento dos indivíduos.

Antes de chegar a cometer o feminicídio, há todo um histórico de agressões envolvendo vítima e agressor que deve ser considerado pelo Estado. Procurar estudar e solucionar o problema das agressões domésticas sem dúvida seria a chave para evitar o assassinato de mulheres. Quando pensamos em políticas públicas para a solução da violência doméstica, geralmente nos vêm à cabeça a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), as delegacias de mulheres, e as prisões dos agressores. Acontece que tais políticas, embora tenham papel importante na punição dos agressores, são voltadas justamente para a questão repressiva e não para a prevenção do problema. Ou seja, por mais louvável que tenha sido a intenção inicial dos criadores da Lei nº 11.340/06, ela não serve para reduzir os casos de violência, seu principal efeito é o de encher mais ainda o nosso sistema prisional.

As vítimas, em muitos casos, ainda se culpam pela agressão que sofrem, acham que de alguma maneira mereceram a violência que sofreram e têm esperanças de que o parceiro vai mudar o comportamento, muitas vezes permanecem na relação por não terem autonomia financeira. Segundo a terceira edição da “Pesquisa Violência contra a Mulher” do DataSenado (2009), conhecer a lei e seus benefícios não são motivos suficientes para que as vítimas denunciem as agressões. Ainda segundo a pesquisa, 78% das mulheres não denunciam por medo dos agressores, 62% acreditam que o fato de a denúncia não poder ser retirada influencia no silêncio das vítimas. Ao serem perguntadas sobre possíveis soluções para o problema da violência de gênero 22% indicaram as campanhas de divulgação a respeito dos direitos das mulheres, 22% citaram a denúncia das agressões e 17% optaram pela melhora da assistência à mulher.

Recentemente, uma pesquisa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça revelou que 80% das mulheres agredidas não querem que o autor da violência seja punido com prisão. Cristiane Brandão, uma das pesquisadoras, afirmou:

 “O que mais me chamou a atenção na realização dessa pesquisa foi notar a pouca preparação do Poder Judiciário para lidar com casos de violência doméstica, apesar de a Lei Maria da Penha estar em vigor desde 2006. Falta um atendimento especializado, com escuta mais humanizada e com apresentação de soluções viáveis e que fujam ao esquema de resposta criminal a um problema tão complexo.”

Embora, nossos legisladores se orgulhem toda vez que uma lei repressiva é aprovada, é notório que quando há a necessidade de uma expansão do Direto Penal, há também uma grande falha do Estado em prevenir a ocorrência de crimes. Saber que há uma parcela significativa de mulheres que viveram anos com companheiros abusivos e que,por fim, acabaram sendo mortas, demonstra que o problema vai muito além da esfera penal.

3.Feminicídio, conceito.

Entende-se por feminicídio o assassinato de mulheres em razão do seu gênero. A doutrina o subdivide em três tipos: feminicídio íntimo, quando um homem assassina uma mulher com a qual manteve algum tipo de relação íntima, podendo ser membro de sua família ou até mesmo fazer parte de seu círculo de amizade; feminicídio não íntimo, como o próprio nome sugere, é aquele no qual não havia um vínculo de proximidade entre a vítima e agressor; feminicídio por conexão, que pode ser entendido como um subtipo dos anteriores e ocorre quando um homem planeja matar uma mulher, mas erroneamente acaba matando outra que se encontrava na “linha de tiro”. O feminicídio não se restringe a conceitos clássicos de “mulher”, ou seja, um ser biologicamente feminino e com características comportamentais de tal gênero. Jeferson Botelho Pereira afirma que é possível que um homossexual, tanto masculino como feminino, e até mesmo um transgênero possam figurar como vítimas de feminicídio, desde que o crime tenha sido provocado por razões de gênero.

Para que o termo “feminicídio” fosse usado como qualificadora do crime de homicídio, com a Lei nº 13.104/15, houve um processo histórico de luta pelo combate à violência contra a mulher, em nosso país, sob o ponto de vista legalista podemos citar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (06 de junho de 1994), promulgada pelo Decreto 1.973 (1º de agosto de 1996). Também o marco mais famoso até agora a Lei nº 11.340/06, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, que trouxe para as mulheres uma série de garantias penais e cíveis, definindo as linhas de uma política de proteção que deve ser seguida pelo Estado. E, por fim, o “feminicídio”, inserido no artigo 121, §2º, VI, do Código Penal, através da Lei nº 13.104/2015, como uma qualificadora para o crime de homicídio, em casos em que haja violência doméstica e familiar ou sempre que houver menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Sem dúvida a aprovação de tal lei despertou reações positivas em grupos feministas e em boa parte da sociedade, que enxerga na punição severa dos agressores a melhor saída para o combate à violência de gênero. Entretanto, trata-se de mais uma medida jurídica de caráter simbólico e emergencial, elaborada por nossos legisladores com a finalidade de “acalmar” a sociedade, dando-lhe a impressão de que mais um anexo ao nosso Código Penal será a solução para um problema social, cuja verdadeira solução não está dentro da área penal.                                      

4.Feminicídio: um anexo desnecessário.

Embora a Lei nº 13.104/2015 tenha agradado grande parte da sociedade, a inclusão do feminicídio em nosso Código Penal tem gerado diversas críticas por parte dos próprios juristas. O primeiro ponto a ser analisado é se essa lei nos traz uma diferenciação injusta de gênero. O inciso I, do artigo 5º da nossa Constituição Federal diz que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Então é correto que o legislador crie uma lei afirmando que o assassinato de uma mulher, em razão se seu gênero, merece maior rigor da lei que o assassinato de um homem? A resposta só pode ser negativa, pois fere o princípio da isonomia entre os cidadãos. As mulheres, principalmente a partir do começo do século XX, passaram a lutar por direitos sociais e políticos, de modo que a figura feminina não fosse vista como um ser inferior ao homem, mas sim como sua igual.

Outro fator a ser observado é que se trata de um “pleonasmo jurídico”, ou seja, a repetição de um tipo penal já existente, mas reformulado com palavras diferentes, que na prática não trará grandes mudanças. Como exemplo podemos citar o artigo 121, §2º, incisos I e II, do Código Penal. O inciso I, qualifica um homicídio praticado mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe, definido pelas seguintes palavras de Fernando Capez: “torpe é o motivo moralmente reprovável, abjeto, desprezível, vil, que demonstra a depravação espiritual do sujeito e suscita a aversão ou repugnância geral”. E ainda completa: “são motivos torpes, pela repugnância que causam à coletividade, por exemplo, o homicídio da esposa pelo fato de negar-se à reconciliação; matar a namorada ao saber que ela não era virgem; a recusa em fazer sexo”. Já com relação ao inciso II, que qualifica o homicídio fútil, cuja definição é dada como desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime que se trata. Portanto, matar uma mulher por razões de gênero se encaixa perfeitamente nas qualificadoras citadas. Com relação à parte processual, embora a doutrina nos ensine que o princípio do in dubio pro reo deve vigorar, na prática os crimes dolosos contra a vida, julgados no Tribunal do Júri, acabam sendo vistos por um posicionamento pro societate. Logo, caberá ao réu a difícil missão de provar que o fato alegado não se trata de feminicídio.

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É importante ressaltar que o assassinato de mulheres deve ser combatido. Entretanto, a sociedade deve estar atenta para quais ações do Estado estão sendo implantadas e gerando resultados positivos, e quais são apenas fruto de uma política simbólica voltada para iludir a população, de modo a evitar políticas mais onerosas, porém realmente eficazes.

Considerações Finais

O direito penal máximo se faz presente quando o Estado falha em sua missão de educar e cuidar do cidadão. Áreas como a educação, saúde e lazer, essenciais ao bom desenvolvimento de qualquer ser humano, são deixadas em segundo plano. Para um país cheio de mazelas sociais é mais fácil para os governantes a criação de mecanismos de repressão social do que de prevenção da violência. Tal posicionamento fica nítido no que podemos chamar de simbolismo penal, em que as leis são criadas com o intuito de desviar a atenção da sociedade daqueles de que são os grandes responsáveis pelos problemas sociais.

A cada dia mais leis são aprovadas movidas pela opinião pública sem, contudo, provarem seus benefícios para a população. A criação do feminicídio é um exemplo de que as leis que punem os infratores com mais rigor, ganham imediata aprovação popular. O que a sociedade não entende é que as normas penais não existem para solucionar os problemas sociais, ao contrário das leis que visam a melhoria das condições de vida da população, mas não ganham a devida atenção dos veículos de comunicação e dos legisladores.

Referências Bibliográficas

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AROUCK, Vinicius Rodrigues. Feminicídio, uma alteração legislativa necessária? Disponível em < http://jus.com.br/artigos/36988/comentarios-acerca-do-feminicidio-uma-abordagem-critica#ixzz3Z5tvOSQH>

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Sobre a autora
Thaís Costa Lima

Acadêmica de direito na Universidade Federal do Amapá.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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