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As relações de tipicidade, antinormatividade e antijuridicidade

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Breve análise das relações de tipicidade, antinormatividade e antijuridicidade. Expõe-se o pensamento de Cláudio Brandão e a crítica, formulada por Alamiro Netto, acerca de tais relações na teoria da tipicidade conglobante, de Zaffaroni.

TIPICIDADE, ANTINORMATIVIDADE E ANTIJURIDICIDADE

Este trabalho realiza um breve resumo de dois posicionamentos acerca das relações de tipicidade, antinormatividade e antijuridicidade.

Inicialmente, expomos uma síntese do conteúdo do capítulo 1.2, da obra “Tipicidade Penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método entimemático[1]”, no qual o autor realiza a exposição específica do tema.

No segundo momento, expomos uma síntese da principal crítica formulada por Alamiro Velludo Salvador Netto, acerca das relações de antinormatividade e antijuridicidade existentes na teoria da tipicidade conglobante, de Eugênio Raúl Zaffaroni. Cumpre-nos esclarecer, de imediato, que aqui não se afirma que o primeiro autor adotou a teoria da tipicidade conglobante, mas, o segundo texto foi escolhido diante da especificidade do tema das relações de antinormatividade e antijuridicidade, uma vez que tais relações também se encontram dentro da referida teoria, apesar de comportar outros conceitos que resultam em críticas à própria teoria como um todo. Desta forma, a análise das mencionadas relações, no segundo momento, foi realizada pelo autor limitada ao âmbito da teoria proposta por Zaffaroni.


Tipicidade, antinormatividade e antijuridicidade (Cláudio Brandão)

Conforme leciona Cláudio Brandão, quando o legislador cria um tipo penal, ele elabora uma fórmula conceitual e comina uma pena. Tal fórmula, contudo, não se confunde com a norma penal. A norma se extrai do tipo, mas não se confunde com ele.

O tipo é a construção conceitual prevista numa lei que descreve e individualiza um comportamento contrário ao direito sob a ameaça de uma pena. Assim, trata-se de uma “descrição legal imaginada pelo legislador para a punição posterior das condutas que se amoldarem ao seu enunciado”. Destarte, quando o legislador tipifica a conduta de matar, associando uma pena, do tipo se extrai a norma penal “não se deve matar”.

O que se tem é que a norma não está na esfera da lei, pois é uma decorrência lógica extraída do tipo. “O tipo permite ver através dele a norma, que é um imperativo de comportamento, positivo ou negativo, mas esse imperativo é alheio ao próprio tipo”.

Quando alguém realiza uma conduta que corresponde, adequa-se, ao tipo modelar abstrato, tem-se a tipicidade. A conduta típica, por sua vez, sempre violará a norma, daí que toda conduta típica é antinormativa, pois toda conduta típica viola a norma que logicamente decorre da definição legal.

Assim, a verificação da tipicidade não é a análise da contradição da conduta com o ordenamento jurídico (antijuridicidade), mas a contradição da norma proibitiva, isto é, a antinormatividade.

Não se deve confundir a antinormatividade da conduta com a antijuridicidade, que é outra questão. Destarte, uma conduta pode ser antinormativa, por violar o imperativo de comportamento extraído do tipo, mas não ser antijurídica, por ter o agente atuado sob um preceito do ordenamento jurídico que autoriza a ação típica, excluindo a antijuridicidade da conduta. Será ainda, no entanto, portadora de certo desvalor, revelado pela contrariedade da norma proibitiva. Se assim não fosse, a ação de matar um ser humano, legitimada por uma causa excludente da ilicitude, seria equiparável a matar-se um mosquito.

Assim, deve ser analisado se a conduta antinormativa é também antijurídica, ou seja, é necessário analisar se existiu uma autorização dada por outro preceito para a realização da antinormatividade, isto é, da conduta típica.

Sintetiza Cláudio Brandão: “enquanto a relação entre a tipicidade e a antinormatividade é necessária, a relação entre a tipicidade e a antijuridicidade é contingente”. A relação contingente se fundamenta pelo fato da antijuridicidade ser a contradição da ação que realiza um tipo penal com o ordenamento jurídico em seu conjunto, não apenas com o comando da norma proibitiva.

O tipo penal não permite o conhecimento de preceitos permissivos, mas apenas da norma proibitiva, vez que sua função se esgota em proporcionar o conhecimento da proibição. Assim, a análise acerca de uma permissão para a realização da conduta será sempre posterior à norma proibitiva. Por conseguinte, a verificação da antinormatividade nada diz acerca da sua punibilidade. Isto porque a antinormatividade é uma condição necessária para a punibilidade, mas não uma condição suficiente, pois se esgota na tipicidade.

Contudo, só é possível avançar nos juízos posteriores do conceito de crime se a conduta foi antinormativa, já que é o tipo que permite conhecer o conteúdo da proibição, a qual gera a norma penal. A norma é, outrossim, a base pela qual se efetua o juízo de antijuridicidade, porque tem ele como objeto a própria ação antinormativa, pois se investigará se ela está justificada por algum preceito permissivo e o juízo de culpabilidade.

A importância do conceito de antinormatividade também se revela nas relações do tipo com a culpabilidade. Há uma interdependência da consciência de antijuridicidade com a tipicidade, que decorre do fato de que ela, a consciência de antijuridicidade, se dá com o conhecimento da norma proibitiva, ou melhor, com a consciência da antinormatividade. Sem a antinormatividade, que é uma decorrência da tipicidade, não haveria base de reprovação da culpabilidade, sendo assim a tipicidade um elemento indispensável para que se realize um juízo de reprovação sobre a pessoa. Tem-se, por conseguinte, que a antinormatividade está no fundamento hermenêutico da culpabilidade para possibilitar, ou não, a censura do agente que cometeu um fato típico e antijurídico[2].

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A antinormatividade e antijuridicidade na teoria do tipo conglobante (Alamiro Velludo Salvador Netto)

Alamiro Velludo Salvador Netto[3] critica o conceito de antinormatividade consequente da teoria da tipicidade congonblante, especialmente por entender que existe uma contradição com as teorias penais da antijuridicidade de forma que já não renegariam a ilicitude do direito em sua totalidade.

O autor ressalta exemplos dado por Zaffaroni. O primeiro retrata a situação de um oficial de justiça, que devidamente munido de ordem judicial de autoridade competente, exarada em um processo regular de execução, realiza uma ordem de penhora e sequestro de um bem de propriedade de um devedor.

Ao se apoderar do objeto, com a finalidade de executar a mencionada medida, a pergunta que é levantada pelo autor é acerca de como o direito penal e a teoria do delito compreendem este acontecimento. Desta forma, aduz que do ponto de vista formal há a existência da hipótese modelo do artigo 155 do Código Penal (furto), uma vez que, de fato, teria existido a inversão da posse em relação à coisa alheia móvel.

De acordo com o autor, em conformidade com o Código Penal brasileiro, “a explicação mais plausível para a resolução da questão é aquela que enxerga a ocorrência de uma causa de exclusão da ilicitude em razão do estrito cumprimento do dever legal, de forma com que a conduta do beleguim seria típica, porém não antijurídica”. Afirma, no entanto, que para Zaffaroni, com fundamento na necessidade de coerência normativa, tal posição não pode prosperar.

Acrescenta, outrossim, um exemplo de necessária menção. Trata do médico que realiza uma cirurgia no paciente, para salvar sua vida e desta forma lhe efetua um corte. Ressalta que em tal situação não se poderia falar de inexistência de dolo, uma vez presentes os elementos volitivo (vontade) e cognitivo (conhecimento).

Afirma, portanto, Salvador, que se estas questões forem resolvidas no âmbito da licitude, estariam, segundo a teoria, criando contradições no ordenamento normativo. Isto porque se “a tipicidade, aqui entendida em seu sentido material e não apenas legal, importa na antinormatividade, esta passa a ser a seara adequada para a resolução do problema”.

Ou seja, a antijuridicidade apenas possuirá valia quando a conduta típica estiver permitida pelo ordenamento jurídico de forma a conferir ao agente a faculdade de sua utilização, quando houver uma permissão excepcional. Ocorre que “nos exemplos expostos não se está diante de uma simples permissão, mas de uma ordem (no caso do oficial de justiça) e de uma atividade fomentada pelo direito (no caso do médico cirurgião)”.  Como consequência, tem-se, segundo a teoria, que, “normativamente, a conduta do oficial de justiça não está excepcionalmente justificada pela ordem jurídica, mas, ao contrário, está determinada pela ordem normativa com a qual aquela não se confunde”. Ademais o autor cita Zaffaroni ao afirmar que no seio de um sistema normativo não se pode conceber “que uma norma proíba o que outra ordena ou aquela que outra fomenta. Se isso fosse admitido, não se poderia falar de ‘ordem normativa’, e sim de um amontoado caprichoso de normas arbitrariamente reunidas”.

Sobre esta conclusão, afirma Salvador que o que se depreende é que mesmo antes da análise da existência de uma norma jurídica permissiva, o universo da antinormatividade já seria responsável pela exclusão de violações nas espécies de cumprimento de dever, o que não acontece com a legitima defesa e o estado de necessidade, que se encontrariam no patamar jurídico e não no normativo. Ou seja, sempre que se estiver diante de um dever, o local dogmático de solução não seria a antijuridicidade, mas a própria tipicidade, através da exclusão de antinormatividade. Desta forma, as condutas amparadas pela causa de justificação de estrito cumprimento de dever legal, portanto, seriam atípicas, não podendo recair sobre elas, inclusive, as exclusões da ilicitude.

Conclui o autor, sobre este ponto, que a separação de dois conceitos, de um lado a antinormatividade e do outro a antijuridicidade, parece em nada contribuir à resolução de casos concretos. Ademais, afirma que o conceito de antinormatividade não auxilia a atividade do intérprete, mas, ao contrário, confunde-o, principalmente em face do tratamento diferenciado que exige das causas de justificação que espelham atividades ordenadas ou fomentadas pela ordem normativa.

Afirma ainda que a relevância, para fins jurídicos, do conceito de normatividade é contraditória, vez que “a norma apenas se coloca para o direito na medida em que é jurisdicizada”. Aduz, por fim, que “se há a previsão legal, seguindo a postura de Zaffaroni, já se está diante do antijurídico, sendo despicienda a antinormatividade”.


Notas

[1] BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade Penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método entimemático. Coimbra: Almedina, 2012. pp. 59/67.

[2] BRANDÃO, Cláudio. Op. cit., pp. 171 e ss.

[3] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Reflexões dogmáticas sobre a teoria da tipicidade conglobante. In Revista Liberdades. N. 1. mai-ago/2009. São Paulo: IBCCRIM, 2009. Disponível em < http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=4>, acessado em 05/04/2015.

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Sobre o autor
Marcelo Santiago de Morais Afonso

Advogado Criminalista. Professor. Mestre em Direito pela Gottfried Wilhelm Leibniz Universität Hannover, Université de Rouen e Universidade de Lisboa. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AFONSO, Marcelo Santiago Morais. As relações de tipicidade, antinormatividade e antijuridicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4437, 25 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41261. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Texto submetido durante o mestrado Erasmus Mundus, na Universidade de Lisboa, à avaliação final do curso "História da Teoria do Crime".

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