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O direito de propriedade e o Código de Trânsito Brasileiro

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01/06/2003 às 00:00
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3 A APREENSÃO DE VEÍCULOS COMO PENALIDADE APLICADA À INFRAÇÃO DE TRÂNSITO

Não é inovação do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) a previsão da apreensão de veículo automotor em decorrência do cometimento de determinadas espécies de infrações de trânsito. O antigo Código Nacional de Trânsito, instituído pela Lei n.º 5.108, de 21 de setembro de 1966, e regulamentado pelo Decreto n.º 62.127, de 16 de janeiro de 1968, já fazia menção a ela. Na mesma lógica, foi editada a Lei n.º 6.575, de 30 de setembro de 1978, que "dispõe sobre o depósito e venda de veículos removidos, apreendidos e retidos, em todo o território nacional".

Certo é que não é intenção deste trabalho discutir a aplicação de penalidades pela via administrativa. O assunto é por demais complexo, controverso e poderia ser tema de um outra monografia. O que se irá aqui discutir é a aplicação da apreensão de veículos automotores pelo cometimento de infrações de trânsito e a forma como a mesma vem sendo aplicada.

Oportuno reparar que as três normas supra citadas foram editas em pleno regime militar pelo qual passou o Brasil a partir do Golpe de 1964 até meados da década de 80. Na ditadura, foram suspensas as garantias constitucionais e atitudes como a de exigir créditos tributários por meio de extorsão eram "engolidas" pela sociedade, que se viu obrigada, durante 20 anos, a conviver com os plenos poderes que possuíam os militares, que sempre os utilizaram de maneira déspota, não conseguindo, nem assim, transformar o País.

Advindo o novo regulamento do trânsito no Brasil, dispositivos desta natureza continuaram a compô-lo, numa flagrante manutenção de resquícios do autoritarismo que reinou no País por longa data, a despeito do mesmo ter sido elaborado à luz da Constituição Federal de 1988, que é, para muitos, a mais democrática e liberal de todo tempo e lugar.

Todavia, o que importa neste capítulo é entender o instituto da penalidade de apreensão de veículos automotores.

A apreensão do veículo consiste na sua retirada de circulação por não preencher os requisitos legais, especialmente aqueles que envolvem a segurança. Retira-se de circulação e recolhe-se em local determinado pela autoridade até o decurso do prazo estabelecido ou a cessação dos motivos determinantes da medida (RIZZARDO, 1998, p. 671).

O caput do art. 262 do CTB fixa o prazo máximo de permanência do veículo em 30 dias e a Resolução do CONTRAN n.º 53, de 21 de maio de 1998, fixou os prazos de apreensão segundo critérios da multa prevista para a infração, dentro daquele prazo máximo. Ademais, o caput do mesmo artigo determinou também que o ônus da permanência do veículo no depósito do órgão ou entidade apreendedora é do proprietário do veículo.

Como fora dito anteriormente e em consonância com o que dispõe a própria Lei 9.503/97, a apreensão do veículo é uma penalidade. Como tal, por uma questão de analogia e em respeito às garantias constitucionais do direito de ação, devem ser observadas todas as garantias processuais penais que, juntamente com outras garantias constituem a segurança em matéria penal.

Desta forma, para a aplicação da penalidade de apreensão do veículo, deve ser observada a garantia constitucional prevista no art. 5º, inciso LIV, segundo a qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. "Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude da defesa (art. 5º, LV) fecha-se o ciclo das garantias constitucionais" (SILVA, 1996, p. 411).

O que vem ocorrendo na prática é que os agentes das autoridades de trânsito, ao constatarem a infração, providenciam a remoção do veículo para o pátio de recolhimento e as autoridades de trânsito aplicam a penalidade de apreensão sem se respeitar o devido processo legal, sem abrir espaço ao contraditório e sem permitir a ampla defesa.

O Código de Trânsito Brasileiro não fez nenhuma menção à necessidade de um processo administrativo para a aplicação de penalidades pelo cometimento de infrações de trânsito, prevendo apenas o recurso às Juntas Administrativas de Infrações (JARI), todavia somente depois de já aplicada a penalidade.

Este ato, eivado de arbitrariedades, fere mortalmente o princípio constitucional do devido processo legal. Neste ponto, já havia observado brilhantemente o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello (1998) que não há necessidade da retirada definitiva do bem, bastando apenas a suspensão ou o sacrifício de quaisquer atributos legítimos inerentes ao direito de propriedade, mormente a posse, para caracterizar a privação. Ou seja, se a autoridade de trânsito irá aplicar a penalidade de apreensão do veículo por 10 (dez) dias, por exemplo, ela estará suspendendo a posse do bem, que é atributo legítimo inerente ao direito de propriedade sem observar as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Saliente-se, entretanto, que o Conselho Nacional de Trânsito, no ano de 1980, antes mesmo da promulgação da atual Constituição Federal, que estendeu a ampla defesa e o contraditório ao processo administrativo, baixou a Resolução n.º 568, criando a figura da defesa prévia.

Como o nome já diz, (defesa prévia) é a forma de o condutor defender-se, quando estiver insatisfeito por ato do agente da autoridade de trânsito, antes da aplicação da penalidade" (KRIGGER, 1999, p. 132).

A Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997, não fez nenhuma previsão quanto ao instituto da defesa prévia, tampouco o CONTRAN editou nova resolução reafirmando o disposto na Res. 568/80. Certo é que assim como pensa o autor Ilson Krigger (1999), a adoção deste procedimento deve ser tomada antes da autoridade aplicar a penalidade, pois só assim estariam sendo observados os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, vez que a defesa prévia, se utilizada, representaria um meio rápido, eficaz e justo de o suposto infrator se comunicar com a autoridade de trânsito, com o propósito de solicitar a correção de ato administrativo defeituoso ou irregular que, se levado adiante, certamente lhe causará enorme prejuízo, além, é claro, de suspender atributos intrinsecamente vinculados ao direito de propriedade.

Ocorre que a maioria absoluta dos órgãos de trânsito estão agindo de modo a ignorar o direito da defesa prévia, tanto na aplicação da penalidade de multa quanto na apreensão de veículos. Ressalve-se que a Resolução do CONTRAN de n.º 568/80 não foi expressamente revogada e, conforme estabelece o art. 314 do Código de Trânsito Brasileiro, as resoluções do Conselho Nacional de Trânsito existentes até a data da publicação do Código continuam em vigor naquilo que não conflitem com ele. Em sendo assim, além de agirem inconstitucionalmente, estes órgãos estão descumprindo orientação do órgão máximo do Sistema Nacional de Trânsito.


4 A DEPENDÊNCIA DA QUITAÇÃO DE TRIBUTOS, MULTAS E ENCARGOS PARA A OBTENÇÃO DO LICENCIAMENTO E PARA A LIBERAÇÃO DOS VEÍCULOS APREENDIDOS

Chega-se, neste momento, ao cerne da discussão mais importante a que se propôs o presente trabalho: a constitucionalidade dos §§ 2º dos artigos 131 e 262 do atual Código de Trânsito. Para tanto, é indispensável a transcrição destes dispositivos, o que se fará a seguir.

Dispõe o § 2º do art. 131 do CTB:

O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas.

E este é o conteúdo do § 2º do art. 262 do mesmo diploma legal:

A restituição dos veículos apreendidos só ocorrerá mediante o prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica.

Todo veículo automotor, elétrico, articulado ou semi-reboque, para poder trafegar pelas vias, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado o veículo. O licenciamento é, então, o documento indispensável para a circulação.

Como se depreende da análise do dispositivo supra, enquanto não se der o pagamento do IPVA, das multas e de outros encargos, não se efetiva o licenciamento. Ora, partindo do pressuposto de que a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens (art. 524, caput, Código Civil) e de que o licenciamento anual é condição apenas para que o veículo possa circular, qual a razão, senão o furor arrecadatório do Poder Público, de o legislador ter determinado que o pagamento destes encargos seja um dos requisitos para sua obtenção?

É tão facilmente presumível a única intenção arrecadadora que a exigência da aprovação em vistoria e em inspeção de segurança veicular e de controle de poluição (que até o presente momento não foi regulamentada pelo CONTRAN), que também é requisito para licenciar o veículo, veio em segundo plano no art. 131, constituindo seu terceiro e último parágrafo.

Se o veículo só poderá circular caso possua o Certificado de Licenciamento Anual, parece óbvio que muito mais importante do que pagar os encargos relativos a ele é comprovar sua aprovação nas inspeções de segurança veicular e de controle de emissões de gases poluentes e de ruído.

O verbo parecer, propositadamente utilizado, revela, todavia, que não é isso que vem acontecendo na prática. O Conselho Nacional de Trânsito ainda não regulamentou o § 3º do art. 131 e os órgãos executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal não têm exigido tal comprovação. Em contrapartida, o não pagamento do IPVA, das multas e de outros encargos têm impedido o licenciamento.

Quanto à questão das multas, o Poder Judiciário tem entendido que elas só poderão impedir o licenciamento quando estiverem consolidadas ou decididas, com a prévia notificação do devedor e a possibilidade dos meios de defesa.

Administrativo. Mandado de segurança. Renovação de licença de veículo. Pagamento de multa. Notificação do infrator. Direito de defesa. Irregularidade da constituição do débito. Recurso Especial provido.

Não se pode renovar licenciamento de veículo em débito de multas. Para que seja resguardado o direito de defesa do suposto infrator, legalmente assegurado, contudo, é necessário que ele (infrator) seja devidamente notificado, conforme determinam os arts. 194 e 210 do Decreto n.º 62.127/68, alterado pelo Decreto n.º 98.933/90.

Consoante jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal e desta Corte, se não houver prévia notificação do infrator, a fim de que exercite seu direito de defesa, é ilegal a exigência do pagamento de multas

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de trânsito, para a renovação de licenciamento de veículo.

Recurso provido sem discrepância. (STJ, em Recurso Especial n.º 34.657-8-SP, 1ª Turma, de 02/06/1993).

Em outra decisão: "É inadmissível condicionar a renovação de licença de veículo ao pagamento de multa da qual o motorista não foi regularmente notificado. Precedentes." (STJ, em Recurso Especial n.º 64.445-RS, relator o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, julgado em 18/03/1997).

Louváveis as duas decisões do Superior Tribunal de Justiça, que refletem o entendimento pacífico deste egrégio tribunal sobre o tema e que reforçam ainda mais a precária constitucionalidade e legalidade do aludido dispositivo.

É bom que se esclareça que em momento algum se pretendeu aqui questionar a legalidade da cobrança do IPVA, das multas e de outros encargos legalmente previstos relativos aos veículos automotores. Até mesmo porque o Estado de Minas Gerais instituiu, para o exercício de 2002, a Taxa de Licenciamento Anual de Veículos Automotores. Inúmeras foram as alegações de inconstitucionalidade do referido tributo, que não encontraram respaldo no Poder Judiciário. Com o que não se concorda é o fato de se vincular a quitação de tais encargos à obtenção do licenciamento. Considerando que este é condição para o veículo circular, não se admite a negativa em fornecer o certificado por esta razão. Em Minas Gerais, quem não quitou a aludida taxa e não recorreu ao Judiciário, não teve seu veículo licenciado neste ano.

Inobstante não tenham sido encontradas jurisprudências que afirmassem este entendimento, não se tem dúvida da flagrante inconstitucionalidade do § 2º do art. 131, que, por esta razão, deveria desaparecer do atual Código de Trânsito Brasileiro, já que a Administração Pública dispõe de instrumentos próprios para receber tais dívidas, como se verá adiante.

Já no que diz respeito às exigências para a liberação dos veículos apreendidos, as ilegalidades são ainda mais evidentes. A Lei 9.503/97, no caput do seu art. 262, preconiza que "o veículo apreendido em decorrência de penalidade aplicada será recolhido ao depósito e nele permanecerá (...) pelo prazo de até trinta dias (...)". Ao se analisar este dispositivo, tem-se a falsa impressão de que, aplicada a penalidade e cumprido o prazo de "reclusão", o veículo será imediatamente liberado. Ledo engano. O próprio artigo 262, em seus §§ 2º e 3º, estabelece, no entanto, duas condições para a liberação, respectivamente: o prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica e o reparo de qualquer componente ou equipamento obrigatório que não esteja em perfeito estado de funcionamento.

A exigência do reparo é mais do que justificável, inclusive e, principalmente, porque grande parte das infrações que prevêem a apreensão como penalidade são por motivos que envolvem a segurança.

O questionamento é, mais uma vez, quanto à dependência da quitação dos encargos relativos ao veículo para que o mesmo seja liberado.

Fazendo aqui uma abstração e comparando o sistema de aplicação de penalidades do Código de Trânsito com o Direito Penal brasileiro, não se encontra similitudes. Ao que consta, o preso, ao cumprir uma pena de reclusão, não tem sua liberdade condicionada ao pagamento de sua "estada" na prisão. Quem mantém o sistema penitenciário no Brasil é o contribuinte. É bem verdade que o correto e o justo seria que os presos pagassem com o trabalho as despesas que causaram à Administração Pública. Mas é de conhecimento de todos que não é isso que acontece na maioria absoluta das penitenciárias do País, onde os presos têm todo um sistema funcionando em função deles, com ônus para o Estado e permanecendo os mesmos em total ociosidade.

Não se quer com esta analogia justificar um erro pelo outro. Não, de forma alguma. Um veículo apreendido, por exemplo, por transitar em desacordo com a autorização especial, expedida pela autoridade competente para transitar com dimensões excedentes, ou quando a mesma estiver vencida, deve mesmo ser tirado de circulação e sofrer a penalidade de apreensão, pois, indubitavelmente, estará colocando em risco a segurança de todos os usuários das vias por onde ele passará.

O que se defendeu e vem sendo defendido ao longo deste trabalho é o respeito ao direito de propriedade, através da exigência do devido processo legal para a aplicação desta penalidade, que é a mais gravosa de todo o Código, a fim de que a mesma não acarrete ao proprietário outras penalidades acessórias.

Ocorre que os órgãos de trânsito têm cumprido fielmente o disposto no § 2º do art. 262, chegando alguns a exigir até mesmo o documento de nome "NADA CONSTA", expedido pelos Departamentos Estaduais de Trânsito dos Estados e do Distrito Federal. Essa atitude significa, para o proprietário do veículo, uma bi-penalização. Aquele que, ao sofrer a perda temporária de um bem cujo domínio lhe pertence, sem ao menos ter o direito ao contraditório e à plenitude de defesa, tem que arcar com o ônus da permanência de seu veículo no depósito e ainda pagar todas as dívidas registradas em nome do automóvel.

Este sistema transformou-se, em todo o País, num excelente negócio. Os órgãos de trânsito têm terceirizado seus pátios de apreensão de veículos, fixando os preços do reboque e das diárias em valores estratosféricos. Sendo assim, a administração dos pátios tornou-se uma atividade altamente lucrativa, gerando dividendos para as empresas que os administram e para o próprio Poder Público. Apesar das aberrações jurídicas encontradas ao longo de todo o CTB, certamente não era esta a intenção do legislador. Como sempre, os administradores interpretam a lei a seu bel prazer e conseguem "extorquir" cada vez mais o contribuinte e ainda enriquecer empresários, com interesses muitas vezes escusos, que não se preocupam nem um pouco com a sociedade que, ainda que indiretamente, os remunera.

Alheios a todas estas artimanhas, muitos cidadãos, cientes de seus direitos e por acreditarem que a República Federativa do Brasil constitui-se em verdadeiro Estado Democrático de Direito, assim como está estampado no caput do art. 1º da Constituição Federal, recorrem ao Poder Judiciário com a singela intenção de encontrar justiça, no sentido mais primitivo que esta palavra possa ter. E, felizmente, este órgão, que é um dos Poderes da União, tem prolatado decisões que procuram estar coerentes com os princípios e as garantias constitucionais, assegurando assim a efetiva tutela jurisdicional de direitos substanciais deduzidos.

Abaixo, segue a transcrição parcial de dois acórdãos que consideraram ilegal o condicionamento do pagamento de multas de trânsito à liberação de veículo apreendido, proferidos, respectivamente, pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e pelo Superior Tribunal de Justiça:

Mandado de segurança. Reexame. Apreensão de veículo. Liberação condicionada ao prévio recolhimento de multas. Ilegalidade. Autoridade coatora. Segurança concedida. Remessa desprovida.

Não há ilegitimidade passiva no mandado de segurança quando o impetrante indica como autoridade coatora aquela que praticou o ato violador de possível direito líquido e certo e é detentora de competência para desfazê-lo. É abusiva e ilegal a exigência de prévio pagamento de multas de trânsito, como condição para liberação do veículo apreendido. (TJSC, acórdão em Mandado de Segurança n.º 97.000756-6, 2ª C. C. Esp., relator o Desembargador Nilton Macedo Machado, julgado em 12/06/1997)

Administrativo. Retenção de veículo. Multas. Liberação condicionada à prévia satisfação das penalidades. Falta de notificação do infrator. "CNT", arts. 89, 95 e 99 – Lei 6.575/1978 (arts. 1º e 2º).

1- Configura-se ilegalidade condicionar a liberação de veículo apreendido à prévia satisfação das penalidades administrativas, aplicadas sem notificação do infrator, ferindo o devido processo legal.

2- (...)

3- (...)

(STJ, em Recurso Especial n.º 74.657-SP, 1ª Turma, relator o Ministro Milton Luiz Pereira, julgado em 07/10/1996)

Um país que se constitui em Estado Democrático de Direito, que tem como dois de seus princípios o princípio da constitucionalidade, "que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se fundamenta na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, com as garantias de atuação livre de regras da jurisdição constitucional" (SILVA, 1996, p. 122) e o princípio democrático, "que, nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º) (op. cit., p. 122), não pode ter em seu ordenamento jurídico dispositivos normativos, como os acima citados, que esbulhem do cidadão seus direitos públicos subjetivos, enunciados, na ordem política e na ordem social, com certa largueza, na própria Constituição da República Federativa do Brasil. Isso porque, segundo o Mestre Miguel Reale (1990, p.270-271):

Os direitos públicos subjetivos são momentos desse processo de organização da vida social, de tal sorte que não apenas existem direitos e deveres para os indivíduos, como também concomitantemente e paralelamente, direitos e deveres para o Estado: é algo que resulta da natureza mesma da evolução histórica. É tão essencial ao Estado, no mundo contemporâneo, o reconhecimento de esferas primordiais de ação aos indivíduos e grupos que, embora os direitos públicos subjetivos possam sofrer redução, grande número deles sempre subsiste, até mesmo nos Estados totalitários.

Com sua Teoria do Direito e do Estado, Reale evidencia que o fenômeno dos direitos públicos subjetivos, em virtude de sua complexidade, só poderá ser entendido levando-se em conta aspectos políticos, sociais e econômicos, e não só os jurídicos.

O problema dos direitos públicos subjetivos é um problema histórico-cultural, porquanto representa um momento de ordenação jurídica, atendendo a uma exigência social que se processa independentemente do arbítrio e da vontade daqueles que, transitoriamente, enfeixem em suas mãos o poder político (op. cit., p. 271).

E conclui:

Certo é, todavia, que o reconhecimento de direitos públicos subjetivos, armados de garantias eficazes, constitui uma das características basilares do Estado de Direito, tendo eles como fundamento último o valor intangível da pessoa humana, o que demonstra que, como em todo problema relativo ao fundamento de um instituto jurídico, não podemos deixar de elevar-nos até o plano da Filosofia (op. cit., p. 271).

Quando Miguel Reale fala em garantias eficazes, certamente ele está se referindo à própria Constituição escrita, que, ao estabelecer princípios que constituem o Direito público fundamental de uma nação, deve ser o pano de fundo de todo o ordenamento jurídico e, principalmente, dos atos do Poder Público, a fim de garantir, de maneira eficaz, a preservação dos direitos públicos subjetivos, que são, no modo de vista de Reale (1990), matéria que diz respeito ao que há de mais essencial ao homem, que é a sua posição jurídico-política no seio da comunidade e do Estado, como expressão de sua liberdade.

Face esta análise, não há como atacar veementemente os §§ 2º dos arts. 131 e 262 da Lei n.º 9.503, de 23 de setembro de 1997 e, não só afirmá-los inconstitucionais, mas ir além, dizer que afetam a própria dignidade do cidadão brasileiro, "(...) ameaçando a própria integridade da ordem jurídica" (REALE, 1984, p. 246).

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Sobre o autor
Mário Rocha Castro Júnior

advogado, pós-graduando em Direito Público, diretor de operações de transporte público da Secretaria Municipal de Trânsito e Infra-Estrutura do Município de Contagem (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO JÚNIOR, Mário Rocha. O direito de propriedade e o Código de Trânsito Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4131. Acesso em: 29 mar. 2024.

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