Declaração prévia de vontade de pacientes terminais: algumas reflexões

29/07/2015 às 22:44
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Este trabalho estabelece uma pequena reflexão sobre a declaração de vontade de pacientes terminais, também denominado testamento vital, numa perspectiva do direito à vida e o direito a uma morte digna.

Resumo: Este trabalho estabelece uma pequena reflexão sobre a declaração de vontade de pacientes terminais, também denominado testamento vital, numa perspectiva do direito à vida e o direito a uma morte digna. Sob a perspectiva da bioética, o artigo pretende analisar a autonomia do paciente quando em estágio terminal, escolhe esperar a morte, recusando qualquer tratamento. Tal atitude assemelhada a uma forma de eutanásia, não deve ser entendida sob qualquer crítica ou punição legal, mas como expressão de um direito implícito, no testamento vital.

Palavras-chave: Consentimento informado. Eutanásia. Testamento vital.

Introdução

O direito à vida é tema de grande complexidade quando envolve questões em torno dos pacientes terminais. A proteção legal, por si só, não dá conta de casos difíceis quando não há terapêutica suficiente, ou a doença ainda é quase uma total desconhecida da comunidade científica.

No caso de doenças incuráveis, o que está em jogo é o conceito de vida digna e o direito de não sofrer, ou não querer passar por um tratamento sem chances reais de cura. Daí calha perguntar: essas pessoas têm condições de uma opção consciente e clara sobre todas as informações de sua doença, (estágio, agressividade do vírus, tratamento, chances de cura) e, e fazendo esta opção por escrito, deixam uma ‘garantia para si mesmas’? Devem optar e não querendo tal terapêutica, por exemplo, ‘podem morrer em casa’? Não seria esta atitude outra forma de eutanásia?

            Em tese, estas indagações refletem no direito de morrer, ou na forma como se quer morrer quando se está com uma doença incurável e em estágio terminal. Sabemos também que a eutanásia é proibida no Brasil. O termo eutanásia, do grego eu (bom) e thánatos (morte), em breve conceito é um “procedimento pelo qual o paciente acometido de doença sem cura tem sua morte assistida por outrem mediante consenso entre as duas partes.” (ASSIS NETO, 2013). Estas partes são o paciente e o médico.

De certo modo, escolher não fazer um tratamento, poder interrompê-lo, decidir não fazer tratamento algum, poder esperar a morte serenamente em casa, não difere muito da forma como optamos morrer nos casos de eutanásia. Apenas estamos determinando previamente esta escolha, ‘só não estamos desligando ainda os aparelhos’. Por um principio de dignidade, podemos antecipar por escrito esta escolha porque talvez no momento avançado da doença, não teremos condições de decidir isto de modo consciente.

Assim, a discussão em torno dessas questões buscaria entender como podemos garantir a ponderação e o equilíbrio entre tais direitos, o direito à vida, o direito à escolha, e a dignidade da pessoa nesse contexto. Na verdade, busca-se consagrar a existência de um princípio fundamental implícito, que é de uma morte digna, tanto no plano jurídico como no plano da bioética. Sempre se pensou no direito à vida, mas só em pouco tempo se fala em direito de morrer.

Este singelo trabalho pretende lançar luzes para uma reflexão da ordem do dia, que é entender como o consentimento de pacientes terminais, também denominado testamento vital, pode ajudar uma prática médica a preservar este fundamento ético do direito de morrer.

Não queremos defender ou fazer apologia a qualquer forma de suicídio supondo que devemos incentivar a recusa a tratamentos sem chances de cura. Pretendemos apenas compreender e refletir, neste contexto de doenças graves e incuráveis, que a medicina, embora cada vez mais avançada, ainda não dá conta de certos problemas que envolvem os últimos momentos de sofrimento diante da morte.

Sem dúvida, a bioética é a ciência que nos pode dar elementos a uma reflexão mais isenta, mais elaborada. As ciências envolvidas neste tema, como as da área de saúde, a Psicologia e o Direito, não suprem totalmente uma falta que é própria da existência humana, o mistério da morte, cuja vivência é mais complexa que qualquer arcabouço de conhecimentos científicos.

A noção do direito à vida como direito fundamental e dignidade da pessoa humana

Direito humano fundamental, o direito à vida sempre foi um bem caro ao ser humano, sendo senão o maior deles, sobre o qual muitos ordenamentos jurídicos o protegeram. A expressão é recente, e basta lembrar que o primeiro documento a consagrar um direito à vida, na acepção próxima aos direitos humanos e direito fundamental, foi a Declaração de Virgínia, de 1776. Apenas com a Segunda Guerra Mundial é que a expressão tomou corpo nas constituições dos países, principalmente pela influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1948. (SARLET, 2012)

Ainda como auxílio de Ingo Sarlet, citando Canotilho, este assevera que a expressão direito fundamental se aplica àqueles direitos (em geral atribuídos à pessoa humana, reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que direitos humanos guardam relação com os documentos de direito internacional, aspirando à validade universal para todos os povos e lugares, tendo um caráter supranacional. (SARLET, 2012).

À parte dessa distinção, no caso brasileiro o direito à vida, disposto no art. 5º, caput da Constituição Federal, tem caráter distinto de vida digna, embora o princípio da dignidade da pessoa humana esteja explicitado constitucionalmente como princípio republicano no inciso III, art. 1º. Não há discrepância proteger a vida e a dignidade pessoa no mesmo ordenamento, embora em títulos distintos, pois estão imbricados no sistema constitucional brasileiro.

 Há sim, é verdade, permeada na legislação, uma séria de garantias para a efetivação do direito à vida digna, como o direito à saúde, sendo ainda nominado este direito como direito social, e o direito á integridade física e psíquica. Nesse ponto, o direito a uma morte digna está extremamente ligado a essas noções de direito à vida e dignidade, sendo portanto necessário ao Estado e aos demais particulares, (seus destinatários passivos), os deveres de proteção e de abstenção de práticas ofensivas a este direito.

Esta é a dimensão subjetiva, sendo a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, aquela de valor reconhecido e protegido objetivamente como bem jurídico. As obrigações estatais derivam do dever de proteção da vida por meio de medidas positivas, proibitivas e sanções aplicáveis ao Estado e aos particulares. Há por exemplo, o dever do Estado de prestar um sistema de saúde eficiente, fornecer amparo financeiro e medicamentos aos necessitados, e ainda no caso de proibição vinculada aos particulares, proibição de violação à integridade física e psíquica, os crimes contra a vida, a interrupção da gravidez em casos de anencefalia e a própria eutanásia, tipificada como crime de homicídio privilegiado, no art. 121, § 1 do Código Penal Brasileiro.

Assim, feita essa digressão de âmbito jurídico-constitucional, para clarear a noção do direito à vida, é preciso compreender que as proibições vinculadas aos particulares têm sim relevância no consentimento do paciente, principalmente o paciente de doença incurável, pois é ele o titular do direito à vida e cuja dignidade só a ele cabe aferir.

A bioética é chamada nesse momento, a discutir não o aspecto legal, mas entender o aspecto da ética em torno das perspectivas médicas e jurídicas. O arcabouço de proteção deste paciente não supre efetivamente os limites enfrentados pela medicina e o conflito sobre o melhor ao paciente A doença, o tratamento, as chances ou não de cura são conhecidas pelos médicos, mas são grandes mistérios aos pacientes e seus familiares.

Seria então o testamento vital uma forma de garantir o direito à morte digna ao paciente, de dá-lo o direito de escolha para não sofrer ou sofrer menos? Um auxílio aos médicos, familiares e toda a sociedade, no caso específico, para garantir uma aproximação do melhor possível naquele momento?

Assim, nesta linha de reflexão, passemos a discutir os princípios elementares da bioética, acerca do conflito entre a escolha do paciente terminal e os limites da medicina, sob a questão ética do testamento vital.

A bioética. Interdisciplinaridade.

“Bioética - de vida e ética - é um neologismo e significa a ética da vida” (PESSINI, 2009). Embora a ética seja uma reflexão sobre a moral, a bioética pode ser compreendida como produto da sociedade pós-moderna, onde a industrialização e o desenvolvimento da medicina tomaram corpo como o desenvolvimento das ciências biológicas, notadamente após a Segunda Guerra Mundial. A bioética tem ganhado notoriedade cada vez mais, devido principalmente ao desenvolvimento da biotecnologia, e das questões ligadas ao biodireito.

A bioética trata de valores relacionados ao médico e paciente, mas é mais que uma ética da medicina. Bioética envolve o estudo e a reflexão sobre as demais ciências biológicas, aos animais, plantas e o meio ambiente em geral. A bioética está ligada aos conflitos e questões profundas das ciências ligadas ao desenvolvimento da sociedade, sempre ligada ao tripé, médico (beneficência), paciente (autonomia) e a sociedade (justiça).

Este trinômio é o que forma sua base e indica não ser uma ciência pronta, tampouco pretende ser uma ciência. Não busca normatizar comportamentos, nem pretende elaborar teorias. Munindo-se de um esforço interdisciplinar dos diversos campos do saber, apóia-se no bom senso e na razão para humanizar o ambiente e difundir a dimensão ética de suas reflexões. É preciso dar mais importância às reflexões da bioética, pois sabemos que todas as áreas do conhecimento não dão conta de compreender totalmente, e solucionar a complexidade das questões. Haja vista a própria divergência quanto aos termos e conceitos.

Há sempre confusão nos termos, pois cada área lida com uma especificidade, e o senso comum, por vezes intensifica a difusão dos termos erroneamente. A eutanásia, ortotanásia e distanásia são exemplos notórios dessa confusão.

Faz-se imprescindível distinguir ainda que a grosso modo, os devidos termos para uma correta compreensão do problema. Como conceituado acima, a eutanásia refere-se a uma interrupção da vida do paciente a seu pedido. Ortotanásia se refere ao direito de morrer com dignidade; aqui a morte não é apressada, mas humanizada. Já a distanásia é o prolongamento da vida do paciente por meios artificiais, que já não possui chances de cura.

Assim, elencados en passant, os devidos termos, a questão do consentimento informado de pacientes terminais parece transpor as reflexões mais comuns para a questão do testamento vital. É preciso delimitar os conceitos, para determinar todas as implicações de um documento que visa assegurar uma anuência por escrito. É preciso pensar que o testamento vital, como a seguir vamos expor, não se reduz a um documento médico, (a Resolução nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina) a serviço de prevenir futuros problemas de ausência de autonomia do paciente. Garantir e preservar a escolha do paciente é importante, mas não é tudo.

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Mesmo se por documento pudesse garantir ao paciente a sua livre escolha e garantido o seu direito a todas as informações sobre sua doença, tratamento e chances de cura, isto não retira o fato de que este consentimento nunca será totalmente livre.  As dificuldades do que entendemos por direito de morrer ou de uma morte digna estão na base de uma situação que só pode ser aferida no plano concreto, da pessoa, sua estrutura familiar e até financeira. Se o paciente decide voltar pra casa e ‘aguardar’ sua morte, o que isto tem de revelador, é que nunca saberemos se é contra a morte que ele briga, querendo aproveitar seus últimos dias, ou se se deixa abater por ela.

A questão se agiganta quando pensamos que os limites da ciência médica são os limites determinados pela própria finitude, diante do que entendemos por vida boa ou dignidade, ou ainda por morte digna, nos limites da ciência. Daí porque a relação médico-paciente deve compartilhar o mesmo entendimento sobre noções que estão em planos distintos de valoração. E planos distintos a quase todas as pessoas, pois quase sempre todas as pessoas têm impressões distintas sobre uma doença grave, incurável e nunca são levadas a pensar na sua escolha.

Se há uma questão desse nível, em plano teórico, a resposta parece simples. Mas se é no mundo real em que as doenças graves, principalmente o câncer tem aparecido com freqüência, nunca sabemos realmente o que decidir. A gravidade, a rapidez e agressividade da doença não dão condições de uma resposta realmente satisfatória.

A questão é que garantir por escrito quando não se estiver em condições de escolha, com consciência para optar submeter-se a um tratamento ou não, parece óbvio. A autonomia deve prevalecer sobre a vontade do médico. No entanto, a questão relevante a se perguntar é: devemos nos antecipar a não querer algo diante de um ‘se tivermos tal doença, uma doença grave que nos dá alguns meses de vida’?

Esta questão passa a ser uma idéia sobre o desconhecido, diante de uma certeza irrefutável: a morte. Lembremos que estamos tratando do consentimento de pacientes terminais e teríamos que optar entre o tratamento ou não, em que condições, respiração por aparelhos, vida vegetativa, imobilidade, e perda de consciência. Seria o mesmo que pensar a partir de nossa identidade, a alteridade, (alter: outro). Pensar pelo outro, o que nem mesmo a nós poderíamos supor. Este pensar é especialmente uma idéia, ou suposição sobre algo que ambos, (nesse caso o doente e o médico) acham ou não sabem com certeza.

Nestes casos, o testamento vital, cujas diretrizes estão na Resolução 1995/2012, parecem não dar conta, embora seja de grande importância para garantir essa escolha. Contudo, diante de uma doença terminal, é possível falar em um consentimento que na sua base é de incerteza? Como consentir sobre determinado tratamento se a própria ciência especializada não detém certeza alguma sobre a cura pelo tratamento?

A questão do paciente terminal e o respeito à autonomia

Estamos em um momento ímpar de doenças graves em nossa sociedade. A industrialização dos alimentos, os transgênicos, vida estressante, tabagismo, sedentarismo e tantos hábitos tipicamente modernos já são fatores prejudiciais inquestionáveis à saúde. No entanto, ao mesmo tempo, e apesar dos avanços, o sistema de saúde para doenças graves ainda é deficitário. A tecnologia na área médica tem feito ‘milagres’, mas a medicina ainda encontra limites em certos casos. É preciso ressaltar que o governo nas três esferas, também encontra dificuldades em garantir a todos o direito à saúde de qualidade. E de certa forma, ‘custa caro’ a toda a sociedade.

Neste contexto, precisamos pensar que no momento como se apresenta o sistema público de saúde, e em casos de países com grandes dificuldades de desenvolvimento, os serviços públicos de saúde são precários. As dificuldades para encarar a gravidade de uma doença e cuidar de um familiar ou qualquer pessoa em estágio terminal, é pensar na qualidade dos últimos dias de vida desse paciente. Impossível não pensar, portanto, não mais no direito à vida, mas no direito a uma morte digna.

Também não se pode negar que o conceito de morte também sofreu transformações, inclusive pelas divergências de entendimento, como o de morte cerebral, e são questões complexas que interferem nas decisões dos familiares dos pacientes, por envolverem questões até mesmo religiosas.

Um caso emblemático foi o julgamento da ação de Argüição de Descumprimento de Preceito fundamental no STF, (APDF 54), no caso do julgamento dos fetos anencefálicos, em que toda a sociedade brasileira de certo modo, envolveu-se com grande temática bioética, e sobressaiu a divergência de conceitos e entendimentos. As interpretações variadas revelam o caráter multifacetado do que entendemos por vida e morte, e da sociedade brasileira. Vejamos as palavras do ministro Marco Aurélio Mello, na relatoria da APDF 54:

 “(...) Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana.” (grifamos)

A definição de paciente terminal, portanto também deve ser devidamente esclarecida para situarmos que estamos tratando de casos de extrema gravidade, onde não é possível pensar em possibilidade de cura. O paciente terminal refere-se a um quadro irreversível, apresentando alta probabilidade de morte num período de tempo relativamente curto. E essa fase é um limite que a medicina não consegue transpor, porque já ultrapassa o campo da ciência e do saber profissional. O que resta a fazer é aliviar a dor do paciente.

Falar de consentimento quando o paciente mais claramente percebe a probabilidade de sua morte, ou no caso de antecipar essa escolha ao se chegar a um estágio terminal, é falar de uma autonomia sobre sua vida, sobre como quer decidir morrer. O respeito à autonomia é um dos princípios basilares da bioética e remonta na origem, em Aristóteles e Kant, cuja discussão centra-se na histórica passividade do paciente, (e daí este nome).

No famoso juramento médico de Hipócrates, a passividade e a ausência de informação ao paciente estão claramente sugeridas. De lá pra cá, muita coisa mudou, mas permaneceu o juramento, e transformou-se a maneira de ver o doente como ser passivo. Obviamente, hoje o consentimento do paciente é uma mudança de paradigma. Antes submisso, o paciente agora interfere nas tomadas de decisões dos profissionais da área médica, sendo sua decisão sempre levada em consideração.

Embora isto seja uma conquista, é inevitável o conflito entre saber o que se considera ser o melhor para o paciente e o que este considera ser melhor ou deseja para si, numa situação que nem mesmo ele teria condições de aferir em sã consciência. É neste contexto da declaração antecipada que passamos adiante, para refletir sobre as conseqüências desse registro.

A declaração antecipada de vontade do paciente terminal: testamento vital.

Por certo, nestes casos a morte anda à espreita, e é sempre dolorosa uma decisão neste momento. No entanto, deixar antecipadamente este registro de vontade dá ao paciente, uma condição de importância extremamente valiosa. Sob o reconhecimento da autonomia, também vai ao encontro de outro princípio bioético, a beneficência, que é o dever de agir no interesse do paciente.

Este paciente pode ter sua decisão ou escolha não respeitada, até mesmo por desconhecimento da família, por ignorância, e assim se feriu seu direito, sua autonomia. Daí a importância de se registrar expressamente sua vontade, quando em condições de decidir, possa manifestar seu interesse em saber das intercorrências da doença, o seu tratamento, quais doenças podem também aparecer, efeitos colaterais, e das chances ou não de cura.

Por isso mesmo, o CFM, por meio da Resolução 1.995/2012, (publicada no D.O.U. no dia 31 de agosto de 2012, seção I, pág. 269/270), teceu diretivas entendendo a declaração antecipada de vontade como um instrumento que visa registrar a expressão da vontade do paciente a prevalecer em situações futuras.

Este documento denominado declaração prévia de vontade do paciente terminal, mais conhecido como testamento vital, surgiu como documento legal na Califórnia na década de 70. O testamento vital delibera quanto ao direito de o paciente consentir submeter-se ou não a terapêuticas médicas quando não mais puder se manifestar no momento da tomada de decisão, por encontrar-se em estado incurável ou terminal. (ANDRÉIA RIBEIRO DA ROCHA, 2013).

Vejamos a Resolução:

“Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.”

Contudo, o ponto de debate que a Resolução não dispõe é no caso de pacientes terminais que não querem tratamento algum, dado o conhecimento de um grau avançado da doença, ou se descobrem com uma doença grave com poucos meses de vida. Eles estão conscientes, e optam por escolherem algo que ainda sequer sabem, mas quando souberem, estarão recusando o tratamento, porque sabem que será ineficaz e muito doloroso.

Neste caso, respeitar sua escolha é respeitar que ele mesmo opta por uma eutanásia sem aparelhos, e estamos diante de um conflito ético que a todos envolve. Envolve a família, os médicos, a sociedade, envolve o mercado de medicamentos. Não podemos interferir, não podemos dizer: “você tem que tentar”. “Se fosse comigo, eu tentaria?” Sabemos que não haverá cura, e a esperança toma forma de uma prática médica que envolve setores econômicos. O tratamento custa caro, os remédios custam caro. ‘Morrer custa caro’.

E como não falar da crença ou esperança do paciente nos avanços da medicina. O saber médico e a comunidade científica devem informar que mesmo novos recursos e medicamentos podem prolongar o sofrimento do paciente, sem trazer benefícios. Mesmo com tecnologia avançada, ou ainda experimental, em muitos casos não há certezas de cura, e há doenças que se revelam mais agressivas. O testamento vital pode dar alento a paciente, quando tiver que enfrentar este dilema.

Mesmo uma interpretação sistemática da Resolução com os preceitos da ética médica e da bioética, é preciso entender que não há solução para os casos difíceis em que o paciente escolhe ir para casa, ou não quer se submeter a qualquer tratamento. Expectativa de vida de alguns meses envolve dilemas que remontam a uma trajetória de vida. Neste momento, a psicologia entra em cena, mas também não dá conta de dizer que o paciente deve tentar. Deve tentar por um respeito moral de valor da vida? A um princípio social de dignidade humana?

Devemos ressaltar que “no Brasil não há regulamentação sobre o Testamento Vital. Na maioria dos países que aceitam o Testamento Vital, como no caso dos Estados Unidos, exige-se que o mesmo assinado por pessoa maior e capaz, perante 2 (duas) testemunhas independentes, e que só tenha efeitos depois de 14 (quatorze) dias da assinatura, sendo revogável a qualquer tempo. Além disso, tem valor limitado no tempo (aproximadamente de 5 anos). O estado de fase terminal deve ser atestado por 2 (dois) médicos. O médico que desrespeitar as disposições do testamento pode sofrer sanções disciplinares.” (ANA PAULA PACHEO CLEMENTE, WALDEMAR J. D. PIMENTA.)

Lá como aqui, buscou-se preservar a autonomia do paciente, e a conduta médica estará eticamente correta, mas sabemos que não há respostas definitivas. Estamos referindo a um paciente terminal que não tem condições de prever que ‘já está um paciente terminal’, cuja consciência atual apenas lhe permite ver que pode escolher lá na frente o tratamento possível, e não o tratamento desejável diante da proximidade da morte. E sabemos, só saberá se optar saber sua real condição.

Por isso, o diálogo entre médico e paciente deve ser reforçado, sempre com vistas ao melhor interesse do paciente, preservando sua autonomia. Mas é preciso cautela naquilo que sempre se entendeu como superioridade do saber médico, pois até eles mesmos podem não saber decidir. Daí porque até mesmo a Resolução em análise, dispõe em caso de falta de consenso:

“Art. 2º

(...)

§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente. (grifamos)

CONCLUSÃO

Na trajetória da vida, seguimos caminhos tortuosos e de um momento para outro, deparamo-nos com a morte diante dos olhos. A morte dos outros, a morte do corpo, a morte como problema existencial. E talvez por isso, refletimos sobre ela quando ela está longe de nós; não pensamos nela quando estamos saudáveis. Não pensamos nela quando não queremos imaginar descobrir uma doença e ter alguns poucos meses de vida. Mas acontece.

Certo de que nem mesmo a bioética encontra todas as respostas, este singelo trabalho também não buscou uma definição sobre o tema e não buscou questionar a ineficiência do testamento vital. Ele complementa uma prática ética. Ele guarda esperança a pacientes que nunca pensaram sobre a morte. Ele resguarda a paz de uma família que quer preservar o interesse de seu familiar.

No entanto, dado o desenvolvimento da medicina, dos avanços tecnológicos e ao mesmo tempo o aumento de doenças, é preciso refletir sobre questões mais próximas de nós, como o direito de morrer, e não tanto um direito à vida. Parece ilusório discutir um direito à vida e suas implicações médico-jurídicas, eutanásia, aborto, anencefalia, quando toda sociedade morre sem discutir direitos básicos de saúde.

Precisamos nos dar conta de que o avanço médico nos leva a questões nunca antes discutidas, e por isso vimos que a bioética tem assumido papel importante, mas nem por isso, garante a todos o acesso aos tratamentos possíveis e desejáveis. Esbarramos na burocracia do sistema de saúde, na urgência de atendimento, e na ineficiência do sistema diante de casos mais básicos.

Preservar a autonomia do paciente é importante, mas é preciso mais que isso, pois como nos ressalta Pessini, ‘a psicologia humana é muito complexa e a autonomia é muito frágil.”(pág. 65). Diante da morte, não nos damos conta de pensar, e antecipar-nos a um tratamento, ou ter conhecimento e desejos sobre a forma de escolher.

Ainda que com o auxílio médico, nada garante que tenhamos uma escolha totalmente livre e adequada. A cada um, isto reflete de modo especial, e é preciso entender a individualidade de cada pessoa. Não julgar uma escolha, mas ao menos dar elementos e suporte para um momento tão difícil.

REFÊRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bioética. Um grito por dignidade de viver. Léo Pessini. 3ª Ed. rev. e atual. São Paulo: Paulinas, 2008.

Curso de Direito Constitucional. Ingo W. Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. São Paulo: Revista dos tribunais, 2012.

Fundamentos da Bioética. H. Tristram Engelhardt, jr. São Paulo: Loyola. 2011.

Fundamentos da bioética. Léo Pessini, Christian de Paul de Barchifontaine (orgs). São Paulo: Paulus, 1996.

Manual de Direito Civil, (volume único). Sebastião de Assis Neto, Marcelo de Jesus, Maria Izabel de Melo. Bahia: Juspodivm, 2013.

Pensar a bioética. Metas e desafios. Diego Gracia. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Centro Universitário São Camilo. Loyola. 2010.

Artigos:

Declaração prévia de vontade do paciente terminal: reflexão bioética. Andréia Ribeiro da Rocha, Giovana Palmieri Buonicore, Anelise Crippa Silva, Lívia Haygert Pithan, Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó. Revista de Bióetica (Impr.) 2013; 21 (1): 84-95.

Testamento Vital. Rui Nunes. Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto S. Bioética e Ética Médica. Acesso em xxx

Testamento Vital na perspectiva de médicos, advogados e estudantes. Revista - Centro Universitário São Camilo - 2011;5(4):384-391

Uma reflexão bioética do testamento vital: o que você faria se tivesse 7 dias? Ana Paula Pacheco Clemente, Waldemar J. D. Pimenta. http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1231. Âmbito jurídico. Acesso em 17/02/2014.

RESOLUÇÃO CFM nº 1.995/2012 (Publicada no D.O.U. de 31 de agosto de 2012, Seção I, p.269-70)

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Sobre o autor
jorge luís teixeira

Advogado.<br>Licenciado em Filosofia pela UFSJ. Cursando História pela mesma Universidade. Pós-Graduando em Processo Civil pelo IED-MG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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