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Da garantia fundamental ao silêncio e à não autoincriminação

05/08/2015 às 14:28
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O direito de não produzir prova contra si visa a proteger a dignidade humana, a integridade física e mental, e a capacidade de autodeterminação, consubstanciado no direito de não ser obrigado a depor contra si.

Embora seja difícil de precisar a origem da garantia da não autoincriminação, também chamada de nemo tenetur se detegere[1] ou nemo tenetur se ipsum accusare[2], ou ainda privilege against self-incrimination no direito anglo-americano, o fato é que somente a partir do século XVIII ela começou realmente a ganhar força, como reação aos abusos que marcaram o período absolutista[3]. Desse princípio, pode-se extrair a ideia de que o indivíduo, no curso da persecução, não está obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Tal garantia, a princípio, não encontra previsão, nestes termos, em nenhuma norma interna. Decorre, contudo, do artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal, que dispõe: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado”; ou seja, encontra-se implícita na previsão do direito ao silêncio. O Pacto de São José da Costa Rica, documento internacional do qual o Brasil é signatário, em seu artigo 8º, número 2, alínea “g”, garante expressamente que toda pessoa “tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”.

O nemo tenetur se detegere visa a proteger a dignidade da pessoa humana, sua integridade física e mental, sua capacidade de autodeterminação, consubstanciado no direito de não ser obrigado a depor contra si[4]. Da forma como o direito de não se autoincriminar foi descrito em nossa Constituição no artigo 5º, LXIII, poder-se-ia  concluir que esta garantia tem como destinatário apenas a pessoa presa e se limita ao direito de permanecer calado[5]. Contudo, o entendimento da doutrina majoritária, diante sobretudo da previsão do Pacto de São José de Costa Rica, é o de que qualquer pessoa a quem esteja sendo imputado ou em vias de ser imputado um ilícito penal tem o seu direito preservado de não contribuir para a formação de sua culpa, esteja ela presa ou não[6].

Como desdobramento deste princípio na legislação infraconstitucional, pode ser mencionada a previsão constante do artigo 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal, com a redação conferida pela Lei 10.792/2003, ao vedar expressamente que o silêncio possa ser valorado em desfavor do acusado. E, mais recentemente, com o advento da Lei 11.689/2008 e a nova redação do art. 457 do Código de Processo Penal, que prevê a possibilidade de realização de sessão do Tribunal do Júri independentemente da presença do acusado devidamente intimado, facultando-lhe analisar a conveniência de se fazer presente no julgamento[7]. Pode-se entender inclusive que, nos moldes do art. 478, II, do Código de Processo Penal, da mesma maneira que é vedada, sob pena de nulidade, a referência nos debates perante o conselho de sentença do tribunal do júri ao exercício do direito de silêncio pelo acusado, também se encontra proibida a menção à sua ausência no dia do julgamento, por se tratar de manifestação da autodefesa. 

O nemo tenetur se detegere é consagrado em diversos ordenamentos. Tal garantia encontra-se prevista no parágrafo do art. 136 do Código de Processo Penal Alemão (StPO). Segundo relata Claus Roxin, a jurisprudência germânica extrai do dispositivo diversas consequências, como a necessidade de informação ao acusado acerca do direito ao silêncio na produção da prova oral para validade da prova e da sentença nela fundamentada. Também se encontra vedada a autoincriminação involuntária, através de métodos como detectores de mentira, hipnose, administração de drogas e maus-tratos[8].

Questões instigantes nesta matéria envolvem as chamadas intervenções corporais, tais como coleta de sangue, testes de DNA, fornecimento de padrões gráficos e testes de alcoolemia. Segundo noticia Aury Lopes Júnior, na Alemanha o § 81, “a”, do StPO (Código de Processo Penal Alemão), ao tratar de intervenções corporais, prevê que a possibilidade de extração de sangue, determinada pelo juiz ou pelo Ministério Público, em caso de urgência, sempre que tal medida seja de importância para o processo, realizada de acordo com um meio em conformidade às regras do saber médico, e que não exista perigo para a saúde do imputado[9]. Portugal disciplina de forma genérica o assunto, prescrevendo seu Código de Processo Penal, nos artigos 171 e 172, ser possível a realização de exames contra a vontade do indivíduo por decisão da autoridade judicial competente. Na Itália, os artigos 244 e 245 do Código de Processo Penal genericamente dispõem que a intervenção corporal deve ser determinada por uma decisão judicial motivada, podendo ser realizada por médico, assegurando-se ao imputado a faculdade de ser assistido por uma pessoa de sua confiança, com respeito à sua dignidade e, na medida do possível, ao seu pudor na inspeção. Em França e na Espanha, é possível a responsabilização pelo delito de desobediência em caso de recusa de submissão à intervenção corporal[10].

Aponta Aury Lopes Jr. que uma das diferenças dos citados países para o Brasil é que neles existem normas expressas que dispõem sobre a relativização da garantia da não autoincriminação no que toca às intervenções corporais. Ao contrário, não há no direito brasileiro uma norma que discipline de maneira detida a matéria, regulando a forma e os casos de admissão da intervenção corporal[11]. Ademais, como adverte Eugênio Pacelli de Oliveira, “no Brasil, as intervenções corporais previstas em lei são pouquíssimas e, não bastasse, nem sequer vêm sendo admitidas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sempre fundamentada no princípio constitucional da não auto-incriminação”[12].

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Outra questão controvertida envolve a recusa de submissão às intervenções corporais. Para Aury Lopes Jr., sendo a recusa de contribuir para a produção probatória um direito do imputado, ela não pode gerar uma presunção contra o mesmo[13], e nem mesmo gerar sua responsabilização penal por desobediência[14]. No entendimento de Eugênio Pacelli de Oliveira, “a única alternativa que se abre ao Estado, uma vez admitida a validade de suas disposições interventivas na pessoa do acusado, é a valoração desta recusa, por ocasião da formação do convencimento do juiz”[15].

Denílson Feitoza, por sua vez, ressalta que não existe direito fundamental absoluto. E, embora entenda que a recusa de produzir prova contra si mesmo não pode acarretar uma presunção de culpabilidade, “não estamos convencidos de que o princípio em tela tenha um caráter absoluto no direito brasileiro. O tema ainda está demandando estudos mais aprofundados, que, certamente, terão de enfrentar critérios como a gravidade do fato delituoso e o princípio da proporcionalidade”[16].           


Notas

[1] “Em vernáculo: ninguém pode ser obrigado a se descobrir, a se pôr a descoberto, a se desvendar, a se pôr a nu (sinteticamente: ninguém tem que se acusar)” (FEITOZA, Denílson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6. ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 144).

[2] “Em vernáculo: ninguém pode ser obrigado a acusar-se a si mesmo [...]” (FEITOZA, Denílson. Op. cit, p. 144).

[3] Para uma referência mais detida: ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p.15 e s.

[4] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 336. E também: BINDER, Alberto M. Introdução ao direito processual penal. Trad. de Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 135.

[5] Defendendo a limitação ao direito de silêncio: SOUZA, José Barcelos de. "Bafômetro", intervenções corporais e direitos fundamentais, parte II. In: Jornal O Tempo, Belo Horizonte, 29 mar. 2005. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=13201>. Acesso em 10/03/2010.

[6] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. v. 01. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 206. E, ainda a respeito: ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. Op. cit., p. 03 e s.

[7] A respeito: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 571 e s.

[8] ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el proceso penal. Trad. de Carmen Gómez Rivero y Maria del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant lo blanch, 2000, p. 126-136. Ressalte-se, todavia, que, apesar de críticas, é admitida pela jurisprudência alemã a infiltração de agentes policiais como mecanismo de combate à criminalidade organizada, hipótese em que é permitida a obtenção, sob engano, de declaração auto-incriminatória validamente (ROXIN, Op. cit., p. 143).

[9] LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 247. E ainda: GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 118-119. E também: ROXIN, Claus. Op. cit., p. 139.

[10] LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal, cit., p. 248. Defendendo, nestes casos, a possibilidade de responsabilização pelo crime de desobediência no direito brasileiro: ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer. Op. cit., p. 147-148.

[11] LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal, cit., p. 247 e 249.

[12] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 337.

[13] “O direito à prova não vai ao ponto de conferir a uma das partes no processo prerrogativas sobre o próprio corpo e a liberdade de escolha da outra [...] no âmbito criminal, diante da presunção de inocência, não se pode constranger o acusado ao fornecimento dessas provas, nem de sua negativa inferir a veracidade do fato” (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Op. cit.,  p. 119).

[14] LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal, cit., p. 243-244.

[15] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 341.

[16] FEITOZA, Denílson. Op. cit, p. 145.

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Sobre o autor
Reinaldo Daniel Moreira

Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Reinaldo Daniel. Da garantia fundamental ao silêncio e à não autoincriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4417, 5 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41446. Acesso em: 2 nov. 2024.

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