A dignidade da pessoa humana como parâmetro de interpretação jurídica

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05/08/2015 às 15:34
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1 INTRODUÇÃO

O princípio da dignidade da pessoa humana foi elevado a fundamento da República na Constituição da República do Brasil de 1988. Além do mais, outros direitos e garantias foram elencados como fundamentais dos indivíduos, em princípio, oponíveis ao Estado. Assim, é importante saber qual é a importância dada a esse princípio e por que ele foi elevado a este patamar. Outra: saber qual o âmbito de sua aplicação no universo jurídico, isto é, frente apenas ao Estado ou também aos particulares.

O trabalho será desenvolvido em seis capítulos. No primeiro será tratado o conceito de Constituição e sua importância na orientação das demais normas numa nação.

No segundo capítulo será tratado especificamente o fenômeno da Constitucionalização do Direito, que é importante pois traz a ideia de que o direito, independente do ramo, não poderá ser mais analisado individualmente, mas sim de acordo com a constituição.

No terceiro capítulo será tratada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, sua aplicação nas relações entre particulares.

No quarto capítulo será tratado o Estado Democrático de Direito, que coloca o ser humano como centro do Direito.

No quinto será tratada propriamente a dignidade da pessoa humana na constituição de 1988.

O sexto capítulo será destinado à análise da dignidade da pessoa humana como parâmetro de interpretação jurídica e também como limite e tarefa do Estado, da comunidade e dos particulares.

O presente trabalho tem como base o exame da doutrina e jurisprudência pátria.


2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição Federal representa a norma jurídica fundamental de cada Estado. Assume a missão de organizar racionalmente a sociedade, principalmente no seu aspecto político. É, pois, o estatuto do poder e o instrumento jurídico com que a sociedade se previne contra o instinto milenar de abuso dos governantes.[1] 

Em outras palavras, diz-se que a Constituição do Estado é o conjunto dos elementos essenciais sobre a organização jurídica de uma nação, definindo as regras e princípios jurídicos que regularão o Estado.

Nestes termos, ensina José Afonso da Silva, in verbis:

A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essencias: um sistema de normas jurídicas, escritas ou constumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.[2]

Importante também trazer o conceito dado por Alexandre de Moraes, com base em J.J. Gomes Canotilho, neste termos:

[...] Contituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a Constituição que individualiza os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas.[3]

Conceito interessante também é de Michel Temer:

Portanto, a Constituição é o conjunto de preceitos imperativos fixadores de deveres e direitos e distribuidores de competências, que dão a estrutura social, ligando pessoas que se encontram em dado território em certa época.[4]

Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho,

o termo Constituição deixa de designar qualquer organização básica do Estado. Passa a designar uma determinada organização do Estado, estabelecida por escrito e solenemente declarada, que visa a resguardar os direitos naturais, com o fim de impedir a opressão e o arbítrio por parte dos que detêm o poder.[5]

Importante trazer ainda as lições de Luís Roberto Barroso, que afirma que

A Constituição, portanto, cria ou reconstrói o Estado, organizando e limitando o poder político, dispondo acerca de direitos fundamentais, valores e fins públicos e disciplinando o modo de produção e os limites de conteúdo das normas que integrarão a ordem jurídica por ela instituída. Como regra geral, terá a forma de um documento escrito e sistemático, cabendo-lhe o papel, decisivo no mundo moderno, de transportar o fenômeno político para o mundo jurídico, convertendo o poder em Direito.[6]

Assim, com base nos conceitos trazidos, é possível dizer que o termo constituição traz a ideia de organização e formação[7], isto é, a afirmação de uma nova realidade jurídica dentro da nação, estabelecendo as normas essenciais e fixando o poder estatal com soberano.

Por fim, mister dizer que o conceito de Constituição abrange as normas de orientação das missões sociais do Estado, bem como para a coordenação de interesses variados, que são característicos da sociedade plural na qual vivemos.[8]


3 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

É impossível negar que ocorre o fenômeno chamado constitucionalização do Direito. Esta ideia está relacionada a um efeito expansivo das normas constitucionais, com força normativa, por todo sistema jurídico.[9]

Assim, os valores, os fins públicos e os comportamentos presentes nas normas da Constituição passam a estar condicionados a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional.[10]

Isto quer dizer que todo ordenamento jurídico deve caminhar em um mesmo sentido, qual seja, aquele ditado pela Constituição. Não pode, assim, uma norma infraconstitucional ir de encontro a um princípio norteador do sistema constitucional, como por exemplo: o da dignidade da pessoa humana.

Explica, ainda, Luís Roberto Barroso, que esse fenômeno repercute nos três poderes, inclusive nas suas relações com particulares. Expõe desta forma:

Relativamente ao Legislativo, a constitucionalização (i) limita sua discricionariedade ou liberdade de conformação na elaboração das leis em geral e (ii) impõe-lhe determinados deveres de atuação para realização de direitos e programas constitucionais. No tocante à Administração Pública, além de igualmente (i) limitar-lhe a discricionariedade e (ii) impor-lhe deveres de atuação, ainda (iii) fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente da interposição do legislador ordinário. Quanto ao Poder Judiciário, (i) serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado (incidental e por ação direta), bem como (ii) condiciona a interpretação de todas as normas do sistema. Por fim, para os particulares, estabelece limitações à sua autonomia da vontade, em domínios como a liberdade de contratar ou o uso da propriedade privada, subordinando-a a valores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais.

Em outras palavras, está-se diante de verdadeira dominação de todo o sistema jurídico e também de toda relação jurídica pela Constituição. Isto é, as diretrizes sociológicas e filosóficas que regem à Constituição deverão nortear toda e qualquer atividade jurídica, mesmo as de âmbito notoriamente privado.

Vigora-se, então, o entendimento de que todos os ramos do direito devem ser interpretados sob a ótica constitucional, a exemplo do Direito Civil, conforme ensina Joaquim de Sousa Ribeiro:

As normas de direito civil que porventura prevejam a situação sub judice não podem ser lidas isoladamente, como um complexo normativo separado e autosuficiente, devendo antes ser pensadas em conjunto com as normas constitucionalizadoras dos direitos afectados pelo caso em apreço. O que leva, em primeira via, a uma interpretação da lei ordinária em conformidade com a Constituição. Se persistir uma contrariedade insanável constitucional, o que investe o juiz no dever de não aplicar a norma que a viola.[11]

Nesse mesmo sentido, afirma Giovanni Ettore Nanni,

Nessa trilha é concebido o direito civil constitucional, em que é atribuída a tarefa de harmonizar-se o direito civil aos princípios constitucionais ou à Constituição como um todo orgânico. A norma constitucional passa a ser parte integrante do sistema civil, não apenas como regra hermenêutica mas como norma vinculante de comportamento, incidindo sobre as relações privadas e tutelando seus valores fundamentais, especialmente a pessoa humana.[12]

Desta maneira, a exemplo do que foi já citado, a constitucionalização do direito é algo patente atualmente, não podendo mais ser ignorado qualquer que seja o ramo do direito estudado.


4 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O Estado-opressor foi por muito tempo a preocupação central na defesa e na satisfação de direitos fundamentais. Justamente pelo fato de lhe ser dado enorme poder, o Estado estabelecia uma relação vertical com o indivíduo singularmente considerado, daí se falar em eficácia vertical dos direitos fundamentais. Passada essa fase, pois consolidado o entendimento de que o Estado devia respeitar os direitos e garantias fundamentais de seus cidadãos, passou-se a falar de uma eficácia horizontal (entre particulares).  Assim, a eficácia externa (ou horizontal) dos direitos fundamentais é a vinculação dos particulares à observância dos direitos fundamentais nas relações entre si, e não apenas a vinculação do Estado às declarações desses direitos.[13]

Sobre tal assunto, ensina Daniel Sarmento que:

O Estado e o Direito assumem novas funções promocionais e se consolida o entendimento de que os direitos fundamentais não devem limitar o seu raio de ação às relações políticas, entre governantes e governados, incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de trabalho e a família.[14]

Segundo Alexy,

O Tribunal Constitucional Federal procura conceber o “efeito irradiador” das normas de direitos fundamentais no sistema jurídico com o auxílio do conceito de ordem objetiva de valores. Para usar as palavras do tribunal: “Segundo a jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional Federal, as normas de direitos fundamentais contêm não apenas direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra o Estado, elas representam também uma ordem objetiva de valores, que vale como decisão constitucional fundamental para todos os ramos do direito, e que fornece diretrizes e impulsos para a legislação, a Administração e a jurisprudência”.[15]

Com a promulgação da magna carta de 1988, a interpretação jurídica brasileira foi modificada, pois os valores trazidos por ela trouxeram forte carga valorativa, conforme ensina Willis Santiago Guerra Filho:

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A entrada em vigor de uma Carta constitucional no Brasil em outubro de 1988 representa um sério desafio para os estudiosos do Direito em nosso país, pois traz consigo um imperativo de renovação da ordem jurídica nacional, por ser totalmente nova a base sobre a qual ela se assenta. Tem-se, portanto, de re-interpretar o Direito pátrio como um todo, à luz da “Constituição da República Federativa do Brasil” (abrev.: CR), o que pressupõe uma atividade interpretativa da própria Lei Fundamental. O objetivo último das pesquisas de base que se precisa agora realizar seria o de fornecer subsídios teóricos para auxiliar a tarefa de interpretar (e concretizar) a Constituição, partindo do pressuposto de que se trata de uma tipo de interpretação dotado de características e peculiaridades que o distinguem claramente da inteligência de normas infraconstitucionais.[16]

Importante ainda a constatação de Ingo Wolfgang Sarlet de que

Há que acolher, portanto, a lição de Vieira de Andrade, quando destaca os dois aspectos principais e concorrentes da problemática, quais sejam, a constatação de que os direitos fundamentais, na qualidade de princípios constitucionais e por força do princípio da unidade do ordenamento jurídico, se aplicam relativamente a toda a ordem jurídica, inclusive privada, bem como a necessidade de se protegerem os particulares também contra atos atentatórios aos direitos fundamentais provindos de outros indivíduos ou entidades particulares.[17]

Partindo dessa realidade factível, são duas as principais teorias explicativas sobre o assunto, a saber: a teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais e a teoria da eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais.

Segundo Sarlet,

De acordo com a primeira corrente (indireta), que pode ser reconduzida às formulações paradigmáticas do publicista alemão Dürig, os direitos fundamentais – precipuamente direitos de defesa contra o Estado – apenas poderiam ser aplicados no âmbito das relações particulares após um processo de transmutação, caracterizado pela aplicação, interpretação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado à luz dos direitos fundamentais, falando-se, nesse sentido, de uma recepção dos direitos fundamentais pelo direito privado. Já para a corrente oposta, liderada originalmente por Nipperdey e Leisner, uma vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais encontra respaldo no argumento de acordo com o qual, em virtude de os direitos fundamentais constituírem normas de valor válidas para toda ordem jurídica (princípio da unidade da ordem jurídica) e da força normativa da Constituição, não se pode aceitar que o direito privado venha a formar uma espécie de gueto à margem da ordem constitucional.[18]

Apesar de existirem duas correntes quanto à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o que se nota é a inexistência de soluções uniformes nesta área. É o caso concreto que dirá o modo pelo qual a vinculação do particular se dará, isto é, direta ou indiretamente, pois isso depende da existência de uma norma de direito privado e da forma como esta dispõe sobre as relações entre os particulares. [19] 

Sobre isso, cita, Sarlet, as hipóteses:

a) poder-se-á sustentar que a concretização de determinadas normas de direitos fundamentais por intermédio do legislador ordinário leva a uma aplicação indireta da Constituição na esfera das relações privadas, no sentido de uma aplicação mediada pelo legislador, que, na edição das normas de direito privado, deve cumprir e aplicar os preceitos relativos aos direitos fundamentais; b) uma aplicação indireta da Constituição também se verifica quando o legislador ordinário estabeleceu cláusulas gerais e conceitos indeterminados que devem ser preenchidos pelos valores constitucionais, de modo especial os contidos nas normas de direitos fundamentais. Por derradeiro, estar-se-á em face de uma aplicação direta da Constituição quando inexistir lei ordinária concretizadora, não houver cláusulas gerais ou conceitos indeterminados aplicáveis à espécie ou mesmo quando o seu campo de aplicação for mais restrito do que o das normas constitucionais.[20]

Ainda nesse assunto, se dividem em dois pólos no que toca aos destinatários da vinculação dos direitos fundamentais no âmbito privado, a saber, as relações (manifestamente desiguais) que se estabelecem entre o indivíduo e os detentores de poder social, e as relações entre os particulares em geral, situadas fora das relações de poder, pois presumidamente iguais. [21]

Quanto ao primeiro pólo, que coloca os particulares em situação desigual, o entendimento é pacífico no sentido da possibilidade de se transportarem diretamente os princípios relativos à eficácia vinculante dos direitos fundamentais para o campo privado, justamente pelo fato da disparidade de poder ser similar a ocorrida nas relações entre Estado e indivíduo. Acrescenta-se também que, quando há pelo particular detenção de poder social, a relação se iguala à vinculação direta.[22]

Nesse sentido afirma Gilmar Ferreira Mendes:

A vinculação aos direitos fundamentais estende-se, igualmente, às pessoas jurídicas de direito privado que exercem atividades públicas, tal como amplamente consolidado na jurisprudência.[23]

É importante ainda frisar que há também o consenso de que

no âmbito da perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, que todos, Estado e particulares, se encontram a estes vinculados por um dever geral de respeito, situação que costuma ser identificada com uma eficácia externa dos direitos fundamentais, na qual os particulares assumem a posição de terceiros relativamente à relação indivíduo-poder, na qual está em jogo determinado direito fundamental. [24]

Já quando se trata de particulares em condições de igualdade (relativa), a regra é que prevalece o princípio da liberdade, só se aceitando uma eficácia direta dos direitos fundamentais neste tipo de relação privada quando a dignidade da pessoa humana estiver ameaçada ou diante de uma ingerência indevida na intimidade pessoal.[25]

Ainda no tocante as relações entre particulares, porém fora da vinculação das entidades dotadas de poder social e das outras questões de desigualdade, é válido defender pelo menos uma eficácia mediata (ou indireta) dos direitos fundamentais, o que foi pelos alemães chamado de eficácia irradiante.

Sarlet ensina que:

as normas de direito privado não podem contrariar o conteúdo dos direitos fundamentais, impondo-se uma interpretação das normas privadas (infraconstitucionais) conforme os parâmetros axiológicos contidos nas normas de direitos fundamentais, o que habitualmente (mas não exclusivamente) ocorre quando se trata de aplicar conceitos indeterminados e cláusulas gerais do direito privado. [26]

Daniel Sarmento afirma que:

a eficácia irradiante enseja a ‘humanização’ da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo aplicador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional.[27]

Isso significa dizer que as normas de direito privado devem estar em consonância com o conteúdo dos direitos fundamentais, bem como que o julgador deverá dar às normas privadas, quando de sua aplicação, a devida ótica constitucional, sob pena de dedução em juízo.

Ingo Wolfgang Sarlet, após as análises demonstradas até aqui e também do direto constitucional positivo brasileiro, inclina-se em prol de uma necessária vinculação direta (imediata) prima facie também dos particulares aos direitos fundamentais, mas reconhecendo que a aplicação dos direitos fundamentais às relações jurídicas entre particulares não é uniforme, razão pela qual as decisões deverão ser ponderadas e proporcionais. [28]                                                               

No Brasil, o caso mais emblemático sobre o tema foi o RE 201.819, interposto pela União Brasileira de Compositores (integrante do ECADE) em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que mantivera decisão que reintegrara associado excluído do quadro daquela sociedade civil, com fundamento de que seu direito de defesa havia sido ferido, pelo fato de não ter lhe sido oportunizado o direito de contestar o ato que resultou na sua punição, nestes termos[29]:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (RE 201819, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821)

Apesar da importância do julgado, que notoriamente resultou em entusiasmado debate entre os Ministros, com especial destaque para a atuação do Ministro Gilmar Mendes, cujo argumento da aplicabilidade direta do direito à ampla defesa à relação privada em causa prevaleceu, dificilmente poderá servir de paradigma para outras decisões, porquanto o caso em análise envolvia notoriamente uma organização privada detentora de poder social e não de uma relação de entre dois particulares em situação de relativa igualdade.[30]

Assim, não ficou elucidado qual é o posicionamento do Supremo Tribunal no tocante ao mais intrigante assunto neste tema, qual seja, a vinculação dos particulares, em situação de igualdade, a direitos fundamentais. Todavia, o voto é importante, não só porque introduziu a discussão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, mas também porque dá a entender por não admiti-la tão ampla e irrestritamente, uma vez que qualificou a entidade particular envolvida.

Sobre o voto afirma André Ramos Tavares que:

parece inclinar-se por não admiti-la tão irrestritamente, já que se faz alusão especial à situação peculiar da entidade envolvida, situação essa que a obrigaria a observar imediatamente os direitos fundamentais. Em outras palavras, se se admitisse tão amplamente a eficácia imediata, não se teria de cogitar do papel “semiestatal” desempenhado pela entidade, o que a vincula aos direitos fundamentais.[31]

Tem razão o autor nessa apurada análise, uma vez que a invocação de detenção de poder social e do papel semiestatal da parte, impede a conclusão de que os direitos fundamentais são aplicáveis de forma imediata aos particulares em pé de igualdade.

Importante frisar que na doutrina brasileira prevalece a tese de uma eficácia direta não absoluta e diferenciada. [32]

Por fim, cabe trazer o importante prognóstico feito por André Ramos Tavares a respeito de se permitir a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais de forma irrestrita, nestes termos:

Realmente, com a eficácia direta e imediata corre-se o grave risco, especialmente no Brasil, de constitucionalizar todo o Direito e todas as relações particulares, relegando o Direito privado a segundo plano no tratamento de tais matérias. Como produto dessa tese ter-se-ia, ademais, a transformação do STF em verdadeira Corte de Revisão, porque todas as relações sociais passariam imediatamente a ser relações de índole constitucional, o que não é desejável. Mas, de outra parte, não se pode negar, em situações de absoluta omissão do legislador, que os direitos “apenas” constitucionalmente fundados sejam suporte para solução imediata de relação privada. A Constituição do Brasil não previu a vinculação dos particulares, mas também não a proibiu expressamente. Se o problema é a abstratividade, as ‘cláusulas gerais’ da legislação (porta de entrada para os direitos fundamentais) são tão imprecisas quanto as previsões constitucionais desses direitos. Ademais, não se pode negar a inércia legislativa que tem sepultado diversos direitos constitucionais.[33]

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Sobre o autor
Alexandre Castro

Possui graduação em Direito - Faculdades Integradas de Vitória (2010). Atualmente é mestrando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em Direito Civil Comparado (bolsista pelo CNPq).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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