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Lixo hospitalar

01/06/2003 às 00:00
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A disposição, coleta e tratamento dos resíduos sólidos de saúde – o chamado lixo hospitalar – têm sido alvo de grande preocupação da sociedade moderna que, embora ainda não saiba completamente como tratar os 30 trilhões de quilos de lixo produzidos no planeta todos os anos, se indigna ao saber que materiais como seringas, agulhas, bisturis, curativos e bolsas de sangue contaminados, tecidos e partes anatômicas de corpos humanos, bem como remédios e drogas vencidos, dentre outros, todos integrantes de uma grande lista de resíduos gerados nos estabelecimentos de saúde e órgãos congêneres, são depositados livremente em lixões, a céu aberto, onde ficam em contato direto com catadores, animais e insetos.

A tragédia então é inevitável: os inúmeros vetores exponenciam o fator de risco desse tipo de material contaminado, principalmente através do ar, dos alimentos e da água, transformando-nos em alvos iminentes de doenças e outros males.

O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), preocupado com a questão, expediu a Resolução n° 5/93, estabelecendo padrões de qualidade ambiental em relação ao RSS, em consonância com a NBR 1004 (ABNT), classificando-os em quatro grupos: A – Risco Biológico (sangue e hemoderivados, dentre outros); B – Risco Químico (drogas e resíduos farmacêuticos); C – Risco Radioativo; e D - Comum (os resíduos não enquadrados nos demais grupos). Por essa norma, recomenda o CONAMA a destruição dos materiais enquadrados nos grupos A e B, através de incineração ou esterilização a vapor, de forma a anular suas características físicas, químicas e biológicas; o cumprimento das normas do CNEN (Conselho Nacional de Energia Nuclear) quanto aos resíduos radioativos do grupo C; e a disposição dos demais materiais do grupo D em aterros sanitários.

Posteriormente, o mesmo CONAMA, através da Resolução n° 283/01, permitiu excepcionalmente a possibilidade de disposição dos resíduos do grupo A e B, sem tratamento, em áreas remotas ou de fronteira, obedecendo, porém, a critérios técnicos dos órgãos ambientais.

Todos esses procedimentos decorrem de dois princípios básicos em direito ambiental: o princípio da precaução e do poluidor pagador (Constituição Brasileira, art. 225).

O primeiro em razão da evidente cautela que todos devemos ter diante da livre disposição desse tipo de resíduo em lixões e sabe-lá-Deus-onde-mais. O segundo porque o gerador do resíduo deve suportar o ônus dele decorrente, pois se aufere os lucros dessa atividade, não pode querer socializar os custos correspondentes. É o que os economistas chamam de externalidades negativas, em razão do qual os produtores hedonistas procuram maximizar seus lucros, repassando os custos para terceiros e para o meio ambiente.

Começaram então a ser discutidos e analisados em todo o Brasil os melhores métodos para o tratamento deste tipo de resíduo, dentre os quais: a) térmicos (microondas, autoclave, incineração, plasma térmico); b) químicos (tratamento com cloro, derivados de cloro); c) radioativos (tratamento com ultravioleta, cobalto 60 e infravermelho); e d) mecânicos (disposição em valas sépticas).

Todas essas técnicas têm vantagens e desvantagens, se confrontados seus custos com a eficiência do tratamento. Em Natal, assim como em outros Municípios, como Recife, optou-se pela incineração, método de eliminação estabelecido na Lei Orgânica de Limpeza Pública e Código do Meio Ambiente do Município.

Nada disso, contudo, era cumprido. Apenas para se ter uma idéia, somente um hospital de Natal tratava seu RSS, mesmo assim pelo sistema de autoclavagem.

Quando me inteirei desses fatos, instaurei um Inquérito Civil e constatei uma verdadeira calamidade, uma histórica retrospectiva de descaso e irresponsabilidade dos Órgãos Públicos com a coleta e tratamento do lixo hospitalar.

Vários obstáculos foram então apresentados para que a lei não fosse cumprida: a regulação da matéria apenas através de resoluções, inexistência de empresas no município com tecnologia para incinerar o lixo de acordo com os padrões de qualidade ambiental, falta de recursos orçamentários, necessidade de licitação, burocracia na expedição de licenças, dentre outros.

O primeiro round dessa luta foi vencido com a promulgação da Lei Promulgada n° 187/02 (Lei Hermano Morais) que, quanto à classificação e tratamento do lixo hospitalar no Município de Natal, praticamente reproduziu, agora na via legal, os parâmetros fixados pelo CONAMA.

A sociedade então passou a fazer uma cobrança muito grande para que a lei fosse efetivamente cumprida e não caísse no desuso, como outras normas jurídicas conhecidas de todos. Por isso, expedi uma recomendação específica para a Companhia de Limpeza Urbana, objetivando que a empresa fiscalizasse o cumprimento da lei no município.

Outro complicador, porém, retardou novamente o processo: um dos municípios da região, local onde uma das empresas interessadas na incineração do RSS instalou seus equipamentos, embalado por um discurso político populista do tipo "não vamos receber aqui o lixo de Natal", não concedeu o alvará de funcionamento antes prometido, impedindo que uma empresa, já pronta para iniciar as suas operações, pudesse obter a licença de operação do IDEMA, Órgão Ambiental Estadual.

De todos os problemas, entretanto, a falta de recursos dos Órgãos Públicos para a implantação do tratamento do lixo hospitalar foi o que mais preponderou, afinal, não me senti à vontade de cobrar da rede privada de hospitais uma obrigação que não era cumprida pelos hospitais públicos.

Pouco a pouco, porém, todas essas barreiras foram sendo transpostas, até que, em dezembro de 2002, já havia pelo menos duas empresas privadas em Natal com licença ambiental para incinerar os RSS, de acordo com os parâmetros estabelecidos pela Resolução n° 316/02, norma ambiental recentemente aprovada no CONAMA que estabelece parâmetros para este tipo de operação, como, por exemplo, a que prevê que o "sistema crematório deve ter, no mínimo, a câmara de combustão e a câmara secundária para queima dos voláteis", sendo que a "a câmara secundária deverá operar à temperatura mínima de oitocentos graus Celsius, e o tempo de residência dos gases em seu interior não poderá ser inferior a um segundo" (art. 17).

A partir daí, contando com a importante colaboração da Urbana, empresa de limpeza pública municipal e da Secretaria Municipal de Saúde, através da Vigilância Sanitária, o desfecho deste processo então seguiu a passos largos: inicialmente toda a rede pública hospitalar, municipal, estadual e federal e, posteriormente, os grandes hospitais e clínicas privadas instaladas em Natal, passaram a cumprir a lei e a queimar o lixo hospitalar.

Em meados de março, visitei pessoalmente os incineradores e constatei que estavam sendo queimados quase dois mil quilos de lixo hospitalar por dia!! Configurou-se assim, o sucesso do empreendimento.

Meu vizinho, que acompanhou a todo o processo, um dia deparou-se comigo no portão e gracejou: "Doutor, a lei pegou, né?"

Um fato inusitado, todavia, ameaça mudar o rumo desse processo.

A ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) acaba de publicar a Resolução 33/03 (DOU de 5.3.03), no qual estabelece padrões bastante inferiores aos estabelecidos nas normas ambientais acima narradas.

Para se ter uma idéia, a norma prevê, por exemplo, que bolsas contendo sangue ou hemocomponentes com volume residual superior a 50 ml, peças anatômicas (tecidos, membros e órgãos) do ser humano, que não tenham mais valor científico ou legal, e/ou quando não houver requisição prévia pelo paciente ou seus familiares; fetos com peso menor que 500 gramas ou estatura menor que 25 centímetros ou idade gestacional menor que 20 semanas, carcaças, peças anatômicas e vísceras de animais provenientes de estabelecimentos de tratamento de saúde animal; todos os resíduos provenientes de paciente que contenham ou sejam suspeitos de conter agentes que apresentem relevância epidemiológica e risco de disseminação; dentre outros, não precisam mais ser tratados, basta que sejam jogados em aterros sanitários!!!

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Em outras palavras, o que fez a ANVISA foi desobrigar os estabelecimentos de saúde da necessidade antes estabelecida de destruir as características físicas, químicas e biológicas dos resíduos de saúde classificados nos grupos A e B, ou seja, incinerar ou esterilizar esse tipo de lixo.

Penso que, com a devida vênia, a referida resolução revela ter a Agência adotado por uma estranha e mal alinhavada via, o modelo de gestão avançada de resíduos sólidos de saúde existente na Alemanha, onde o RSS é uma média de 0,05 a 0,4 kg/leito/dia na sua rede hospitalar. É também o modelo usado também no Canadá, Suécia, Áustria e Holanda.

Outros países, contudo, adotam um modelo clássico de tratamento dos RSS, como o Reino Unido, África do Sul, França e Bélgica, onde se considera a quase totalidade dos resíduos produzidos nos hospitais como lixo hospitalar. Assim, por excesso de cautela, contabiliza uma média de 1,5 a 2,0 kg/leito/dia de RSS em sua rede hospitalar.

No Brasil, o modelo clássico implantado pela legislação até então existente, fazia com que a rede hospitalar em geral produzisse uma média de 1,2 a 3,8 kg/leito/dia de RSS [1], predominando a autoclave e incineração, como métodos de tratamento desse tipo de resíduo.

A nova classificação dos RSS pela ANVISA pode, contudo, criar situações extremamente graves, a despeito do relevante papel da Agência no controle de infecções e endemias. Por exemplo, no item em que obriga o gerador do RSS a depositar bolsas contendo sangue ou hemocomponentes com volume residual superior a 50 ml em aterros sanitários (item 8.2.2), a contrario senso, desobriga-o de qualquer tratamento quando esse resíduo for inferior a esse mesmo valor – o que, a toda evidência, gera uma enorme preocupação para quem lida com esse tipo de material, pois se sabe que mesmo uma pequena fração desse volume de sangue contaminado pode infectar uma pessoa que entre em contato com ele.

Os garis de Natal, através de seu sindicato, já falam em entrar em greve, em parte com razão, creio eu, já que incidentes sempre podem ocorrer.

Basta lembrar o que houve recentemente em Uberlândia/MG, noticiado no jornal nacional de 14 de abril de 2003, no qual vândalos quebraram uma espécie de gaiola, onde são guardados o lixo produzido em um hospital, para furtar o que ali havia de valor. O que eles não levaram foi jogado no pátio de uma escola pública. Em conseqüência disto, oito alunos brincaram com o material e quatro se feriram com seringas.

A partir da Resolução da ANVISA alguns empresários de Natal rapidamente determinaram que seus estabelecimentos hospitalares obedecessem a essa norma, possivelmente esquecendo sua formação e sua responsabilidade como médicos, para pensar exclusivamente em seus lucros, nada obstante todo o processo de transporte e incineração lhes custa pouco mais de R$ 1,00 por quilo de lixo hospitalar.

Prefiro, contudo, pensar que eles estão sendo mal assessorados.

De fato, qualquer médico pode diagnosticar facilmente que essa resolução se encontra em estado terminal e, em alguns aspectos, natimorta.

Primeiramente porque, como em muitos outros municípios no Brasil, ainda não existe aterro sanitário em Natal – o que, por si só, inviabiliza parcialmente a sua aplicação. Inobstante a resolução da ANVISA prever essa situação (item 8.2.3), nos milhares de municípios brasileiros onde ela tem abrangência pode ocorrer uma verdadeira calamidade, pois é muito comum a confusão feita entre lixão e aterro sanitário. Pode-se imaginar o que está preste a ocorrer...

Além disso, deve ser lembrado que o conflito de normas ambientais e de saúde pública é resolvido pela aplicação da norma mais restritiva, ou seja, no caso concreto pelas Resoluções do CONAMA. Isso sem levar em conta que as normas ambientais explicitam um direito de cidadania ao meio ambiente sadio, impondo-se ao poder público e à coletividade preservá-lo para as presentes e futuras gerações, na melhor tradução do disposto no art. 225, caput, da Constituição Federal.

Na hipótese em análise, verifica-se claramente que cumprindo a Resolução do CONAMA estaria o hospital também cumprindo a Resolução da ANVISA; cumprindo, porém, somente a Resolução da ANVISA, não estará obedecendo a Resolução do CONAMA.

Apesar de óbvias, todas essas questões deixam de ter importância para o deslinde do problema, quando se verifica que aqui no Município de Natal existe uma lei – a Lei 187/02 – que expressamente determina a destruição do lixo hospitalar dos grupos A e B, como apontado acima, afastando qualquer outra discussão sobre a matéria, em razão da hierarquia das normas jurídicas.

Espero que o Município de Natal, assim como em outros municípios brasileiros, continue executando seu papel fiscalizador, seja através do poder de polícia conferido à vigilância sanitária ou aos Órgãos ambientais, não permita que alguns maus empresários, inconscientes da responsabilidade social que lhes é conferida, venham a obstacular todo o processo histórico de mudança pelo qual atualmente está passando o gerenciamento dos resíduos sólidos de saúde.


Notas

01. Fonte: JOFFRE, Álvaro Felim. Gestíon Avanzada de resíduos biosanitários. Revista Todo Hospitalal/97 de junio de 1997.

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Sobre o autor
João Batista Machado Barbosa

promotor de Justiça da Comarca de Natal (RN), professor de Direito da Universidade Potiguar, da Faculdade para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte e da Fundação Escola do Ministério Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, João Batista Machado. Lixo hospitalar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4159. Acesso em: 22 dez. 2024.

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