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A nova lei de tóxicos.

Aspectos processuais

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01/06/2003 às 00:00
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"Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil e mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como, certamente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema penal." [1]


1) Introdução

No dia 27 de fevereiro do ano de 2002 [2] entrou em vigor em nosso país a Lei nº. 10.409/02 que dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde. Ao todo, foram onze anos de discussão no Congresso Nacional.

Esta lei, concebida para disciplinar toda a questão referente às drogas em nosso país, nos seus aspectos jurídicos e administrativos, acabou sofrendo um veto do Presidente da República que sancionou o Projeto de Lei no. 1.873, de 1991 (nº 105/96 no Senado Federal), apenas parcialmente, alegando a sua inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O veto alcançou cerca de 30% do texto integral. Em linhas gerais, vejam as razões dos vetos:

"A inconstitucionalidade de artigos isolados do projeto, bem como o veto sugerido a todo o Capítulo III, que trata dos Crimes e das Penas, resulta na incapacidade de o sistema legal proposto substituir plenamente a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, que "Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Além disso, o espírito do projeto é compatível com a Lei nº 6.368/76, que, embora carente de atualização, vem permitindo a sedimentação da jurisprudência ao longo de mais de duas décadas. O legislador, ciente dos avanços tecnológicos, da complexidade crescente da criminalidade, e da necessidade de tratamento jurídico diferenciado entre traficantes e usuários de droga, aprovou o projeto. Todavia, repita-se, a incompatibilidade de alguns dispositivos com a Constituição barrou alguns avanços. Por causa disso, estuda-se a elaboração de projeto de lei em regime de urgência para, sanados os vícios, alcançar à sociedade os aspectos positivos que o legislador sensivelmente expressou. Assim, o projeto soma-se à ordem legal já vigente. Apenas são derrogadas as normas que tratam de matéria especificadamente veiculada nos artigos, parágrafos e incisos sancionados."

A lei é extremamente confusa e dá azo a enormes confusões interpretativas. Das boas novidades, algumas foram vetadas, como pode ser conferido adiante. É de uma atecnia absoluta, sem falar que desatendeu manifestamente a Lei Complementar nº. 95/98 (alterada pela Lei Complementar nº. 107/2001) que dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. Como bem acentuou João José Leal, "ao contrário de trazer consigo a solução para as questões jurídico-penais e processuais relativas à matéria, acabou se constituindo num grande problema de hermenêutica jurídica." [3]

Aliás, possivelmente ciente do equívoco, o próprio Governo já encaminhou ao Congresso Nacional um novo projeto de lei (o de nº. 6.108/02), tendo sido aprovado no Senado um substitutivo (nº. 115/02).

Os dois primeiros capítulos dispõem sobre questões administrativas, sanitárias, preventivas e de tratamento relacionadas com o uso de entorpecentes e o seu combate, revogando, nesta parte, a lei anterior. Neste tocante, e para que se dê uma idéia geral da lei e das justificativas aos vetos, iremos basicamente transcrever os artigos, os vetos e as suas respectivas razões.

Quanto aos capítulos IV e V, que abrangem toda a persecutio criminis, procuraremos fazer uma análise mais detida e crítica.


2) O Capítulo I – Disposições Gerais

O veto presidencial [4]começou já no art. 1º. deste Capítulo que dispunha, in verbis: "Esta Lei, que tem aplicação no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, regula as operações e ações relacionadas aos produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica."

O art. 2º. estabelece ser "dever de todas as pessoas, físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras com domicílio ou sede no País, colaborar na prevenção da produção, do tráfico ou uso indevidos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica", determinando que a "pessoa jurídica que, injustificadamente, negar-se a colaborar com os preceitos desta Lei terá imediatamente suspensos ou indeferidos auxílios ou subvenções, ou autorização de funcionamento, pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, e suas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações, sob pena de responsabilidade da autoridade concedente." Por outro lado, a "União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão estímulos fiscais e outros, destinados às pessoas físicas e jurídicas que colaborarem na prevenção da produção, do tráfico e do uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica."

O art 3º. também foi vetado. Ele estabelecia que para "os fins desta Lei, são considerados ilícitos os produtos, as substâncias ou as drogas que causem dependência física ou psíquica, especificados em lei e tratados internacionais firmados pelo Brasil, relacionados periodicamente pelo órgão competente do Ministério da Saúde, ouvido o Ministério da Justiça", competindo ao "Ministério da Saúde disciplinar o comércio de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência física ou psíquica e que dependam de prescrição médica", e estabelecendo que "sempre que as circunstâncias o exigirem, será revista a especificação a que se refere o caput, com inclusão ou exclusão de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência física ou psíquica." Este dispositivo também foi vetado sob a seguinte justificativa:

"Em face da permanência em vigor da Lei nº 6.368/76, assim como de avanços legislativos ocorridos durante o período em que tramitava o projeto, o art. 3o. corresponderia a um retrocesso em relação aos esforços empregados no aperfeiçoamento da regulamentação da matéria. É contrário, portanto, ao interesse público que a definição de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, que determinem dependência física ou psíquica, e afins, sofra restrições pela interpretação da lei. A expressão "para os fins desta Lei" é, portanto, potencialmente lesiva à modernização e à complexidade da legislação penal brasileira."

Dispõe o art. 4º. ser "facultado à União celebrar convênios com os Estados, com o Distrito Federal e com os Municípios, e com entidades públicas e privadas, além de organismos estrangeiros, visando à prevenção, ao tratamento, à fiscalização, ao controle, à repressão ao tráfico e ao uso indevido de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, observado, quanto aos recursos financeiros e orçamentários, o disposto no art. 47", estabelecendo que "entre as medidas de prevenção inclui-se a orientação escolar nos três níveis de ensino."

No seu art. 5º. afirma-se que as "autoridades sanitárias, judiciárias, policiais e alfandegárias organizarão e manterão estatísticas, registros e demais informes das respectivas atividades relacionadas com a prevenção, a fiscalização, o controle e a repressão de que trata esta Lei, e remeterão, mensalmente, à Secretaria Nacional Antidrogas - Senad e aos Conselhos Estaduais e Municipais de Entorpecentes, os dados, observações e sugestões pertinentes", cabendo ao "Conselho Nacional Antidrogas - Conad elaborar relatórios global e anuais e, anualmente, remetê-los ao órgão internacional de controle de entorpecentes" e sendo "facultado à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, ao Ministério Público, aos órgãos de defesa do consumidor e às autoridades policiais requisitar às autoridades sanitárias a realização de inspeção em empresas industriais e comerciais, estabelecimentos hospitalares, de pesquisa, de ensino, ou congêneres, assim como nos serviços médicos e farmacêuticos que produzirem, venderem, comprarem, consumirem, prescreverem ou fornecerem produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica" (art. 6º.). Neste caso, a "autoridade requisitante pode designar técnico especializado para assistir à inspeção ou comparecer pessoalmente à sua realização." O § 2º deste art. 6º. ainda estabelece que "no caso de falência ou liquidação extrajudicial das empresas ou estabelecimentos referidos neste artigo, ou de qualquer outro em que existam produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, ou especialidades farmacêuticas que as contenham, incumbe ao juízo perante o qual tramite o feito:

I – determinar, imediatamente à ciência da falência ou liquidação, sejam lacradas suas instalações;

II – ordenar à autoridade sanitária designada em lei a urgente adoção das medidas necessárias ao recebimento e guarda, em depósito, das substâncias ilícitas, drogas ou especialidades farmacêuticas arrecadadas;

III – dar ciência ao órgão do Ministério Público, para acompanhar o feito", sendo que a "alienação, em hasta pública, de drogas, especialidades farmacêuticas ou substâncias ilícitas será realizada na presença de representantes da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, dos Conselhos Estaduais de Entorpecentes e do Ministério Público." O "restante do produto não arrematado será, ato contínuo à hasta pública, destruído pela autoridade sanitária", na presença daqueles representantes da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, dos Conselhos Estaduais de Entorpecentes e do Ministério Público.

O art. 7º. exige que da "licitação para alienação de drogas, especialidades farmacêuticas ou substâncias ilícitas, só podem participar pessoas jurídicas regularmente habilitadas na área de saúde ou de pesquisa científica que comprovem a destinação lícita a ser dada ao produto a ser arrematado", sendo que os "que arrematem drogas, especialidades farmacêuticas ou substâncias ilícitas, para comprovar a destinação declarada, estão sujeitos à inspeção da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad e do Ministério Público."

Observa-se que o Ministério Público terá atuação importante nestas medidas administrativas, devendo, evidentemente, adequar-se a estas novas atribuições, criando interna corporis uma estrutura suficiente para esta demanda que se inicia.


3) O Capítulo II - Da Prevenção, da Erradicação e do Tratamento

Neste capítulo, a primeira seção trata da prevenção e da erradicação, estabelecendo no art. 8º. que são "proibidos, em todo o território nacional, o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de todos os vegetais e substratos, alterados na condição original, dos quais possam ser extraídos produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, especificados pelo órgão competente do Ministério da Saúde", podendo este órgão "autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput, em local predeterminado, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, sujeitos à fiscalização e à cassação da autorização, a qualquer tempo, pelo mesmo órgão daquele Ministério que a tenha concedido, ou por outro de maior hierarquia." Fora desta hipótese permissiva, as "plantações ilícitas serão destruídas pelas autoridades policiais mediante prévia autorização judicial, ouvido o Ministério Público e cientificada a Secretaria Nacional Antidrogas - Senad." Observa-se, aqui, mais uma vez a intervenção obrigatória do parquet.

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Vetou-se, porém, a disposição que estabelecia que em "hipóteses excepcionais, as plantações ilícitas poderão, sem a prévia autorização judicial, ser destruídas por determinação do delegado de polícia da circunscrição, que imediatamente comunicará a ocorrência e as razões da medida às autoridades e órgãos previstos no § 2o. (o Ministério Público e a Secretaria Nacional Antidrogas – Senad) e registrará a localização, extensão do plantio e demais informações destinadas a promover a responsabilização", sob o seguinte argumento:

"A norma presta-se ao desvirtuamento do trabalho policial, na medida em que prioriza a destruição de plantações em detrimento da consecução de prova judicial sólida. Esta última, que permite a prisão de criminosos e o desmantelamento de organizações ilícitas, é realmente instrumento eficiente no combate ao crime. A prova capaz de ensejar a condenação deve ser judicializada. As indeterminadas ´hipóteses excepcionais´ de eliminação da materialidade do delito seriam potencialmente nocivas ao interesse público. Além disso, a regra geral da prévia autorização judicial para o ato policial estipula diligência de dificuldade semelhante à prevista no próprio parágrafo da proposta, qual seja a de ´determinação do delegado da circunscrição´. Por outro lado, normas gerais impedem que haja prejuízo ao trabalho policial em casos excepcionais. A proteção jurídica ao cumprimento do dever e a relevância penal da omissão apontam, portanto, para a desnecessidade da norma." Cremos que o veto foi correto, até porque o dispositivo poderia ensejar, como é óbvio, um sem número de arbitrariedades.

Manteve-se, no entanto, a disposição segundo a qual a "destruição de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica será feita por incineração e somente pode ser realizada após lavratura do auto de levantamento das condições encontradas, com a delimitação do local e a apreensão de substâncias necessárias ao exame de corpo de delito", sendo que "em caso de ser utilizada a queimada para destruir a plantação, observar-se-á, no que couber, o disposto no Decreto nº 2.661, de 8 de julho de 1998, dispensada a autorização prévia do órgão próprio do Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama." Tal erradicação "far-se-á com cautela, para não causar ao meio ambiente dano além do necessário." A preocupação aqui demonstrada pelo legislador foi extremamente salutar.

Em seguida, dois outros artigos foram vetados. O primeiro estabelecia que a "autoridade que descumprir o preceito do § 6o.(logo acima transcrito) sujeitar-se-á às sanções administrativas da Lei no. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, após apuração em processo administrativo." Vetou-se, sob o argumento de que "com ou sem o § 7o. em questão, as operações que exacerbarem o necessário na destruição de culturas ilícitas, e causarem danos ambientais, estarão, de qualquer modo, sujeitas às penas da Lei no. 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente). Há mais: a autoridade pública deve conhecer a legislação em sua plenitude. Haja ou não a remissão constante do § 7o., eventual conduta lesiva ao meio ambiente estará induvidosamente sujeita à Lei dos Crimes Ambientais. Desse modo, por ser desnecessário, pronuncia-se o Ministério da Justiça pelo veto do dispositivo enfocado." Em seguida ocorreu o veto ao parágrafo que estabelecia que as "glebas em que forem cultivadas plantações ilícitas serão expropriadas, conforme o disposto no art. 243 da Constituição Federal, mediante o procedimento judicial adequado, ressalvada, desde que provada, a boa-fé do proprietário que não esteja na posse direta", alegando-se que o "art. 243 da Constituição dispõe que as glebas onde forem localizadas culturas ilegais serão imediatamente expropriadas, sem qualquer indenização ao proprietário. A instituição, por meio de lei, de ressalva para os casos de boa-fé do proprietário que não esteja na posse direta da terra é inconstitucional. Além disso, a Lei nº. 8.257/91 já trata da matéria, de forma conveniente ao interesse público."

Determina-se no art. 9o. ser "indispensável a licença prévia da autoridade sanitária para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, ou produto químico destinado à sua preparação, observadas as demais exigências legais", dispensando-se, porém, esta exigência para "a aquisição de medicamentos, mediante prescrição médica, de acordo com os preceitos legais e regulamentares."

No entanto, o Ministério da Saúde sugeriu o veto ao inciso II do parágrafo único do art. 9º. que dispensava aquela licença prévia da autoridade sanitária na "compra e venda de produto químico, ou natural, em pequena quantidade, a ser definida pelo órgão competente do Ministério da Saúde, destinado a uso medicinal, científico ou doméstico." O veto existiu "tendo em vista a competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA estabelecida na Medida Provisória no. 2.190-34, de 23 de agosto de 2001, que altera a Lei no. 9.782/99, no seu art. 7o., VII: ´autorizar o funcionamento de empresas de fabricação, distribuição e importação dos produtos mencionados no art. 8o. desta Lei de comercialização de medicamentos´." E, continua: "tal como está redigido o inciso II do parágrafo único do art. 9o. do projeto de lei, cujo veto está sendo sugerido, haverá uma liberalização generalizada, que restringe o exercício do poder de polícia da ANVISA, no tocante a fiscalização e controle elencados no dispositivo retromencionado da Medida Provisória e ainda invalida o preceito do parágrafo 1o. do art. 3o. do projeto de lei. Vale salientar que da forma que foi escrito o projeto de lei, poderá haver uma vulnerabilidade do controle e da fiscalização, já exercidos pela ANVISA, em conformidade com o art. 6o. da Lei nº 6.368/76, em função, principalmente, da ausência de clareza na conceituação sobre produto, substância e droga que causa dependência, destinados a uso lícito e ilícito, gerando conflitos de controle no que tange ao uso lícito e também superposição de competências (Ministério da Saúde e Ministério da Justiça) quanto ao controle e fiscalização do uso ilícito. Lembramos ainda, que as ações de controle e fiscalização do uso lícito, de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, incluídos aqueles que causam dependência, historicamente atribuídas ao Ministério da Saúde e hoje, por força da Lei no. 9.782/99, desenvolvidas pela ANVISA, visam sobretudo coibir o uso abusivo e indevido, protegendo e promovendo a saúde e o bem-estar da população."

O art. 10 prevê que os "dirigentes de estabelecimentos ou entidades das áreas de ensino, saúde, justiça, militar e policial, ou de entidade social, religiosa, cultural, recreativa, desportiva, beneficente e representativas da mídia, das comunidades terapêuticas, dos serviços nacionais profissionalizantes, das associações assistenciais, das instituições financeiras, dos clubes de serviço e dos movimentos comunitários organizados adotarão, no âmbito de suas responsabilidades, todas as medidas necessárias à prevenção ao tráfico, e ao uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, que causem dependência física ou psíquica", sendo que as "pessoas jurídicas e as instituições e entidades, públicas ou privadas, implementarão programas que assegurem a prevenção ao tráfico e uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica em seus respectivos locais de trabalho, incluindo campanhas e ações preventivas dirigidas a funcionários e seus familiares." Estas medidas de prevenção são "as que visem, entre outros objetivos, os seguintes: incentivar atividades esportivas, artísticas e culturais; promover debates de questões ligadas à saúde, cidadania e ética; manter nos estabelecimentos de ensino serviços de apoio, orientação e supervisão de professores e alunos; manter nos hospitais atividades de recuperação de dependentes e de orientação de seus familiares." Importante disposição, pois este controle informal é fundamental no combate a este tipo de criminalidade, ainda mais se considerando o caráter subsidiário do Direito Penal [5]. A propósito, vale a advertência da educadora espanhola Encarna Bas, doutora em Ciências da Educação, segundo a qual "la educación sobre drogas requiere una política real de prevención, que contemple la formación del profesorado, de los padres y madres, y de otros mediadores sociales, para el desarollo de programas globales, fundamentados, coherentes, continuos, sistemáticos y creativos." [6]

3.1) A Justiça Terapêutica:

Na seção II deste capítulo, temos a matéria referente ao tratamento do dependente ou usuário de droga. Aqui vemos uma clara opção do legislador pela chamada "Justiça Terapêutica" de origem estadunidense, e de relativa eficácia, pois equipara injustificadamente o dependente (este sim passível de ser tratado) ao mero ou ocasional usuário de drogas, não necessariamente dependente. Como anota Luiz Flávio Gomes, pretende-se "que todos os usuários sejam submetidos a tratamento. Isso constitui erro clamoroso. É preciso distinguir o usuário dependente do não dependente. O mero experimentador ou ocasional usuário não tem que se submeter a nenhum tratamento, porque dele não necessita. O tratamento não pode nunca ser visto como uma ´pena´ ou um ´castigo´. É apenas uma oferta para recuperar o dependente." [7] Muito antes, Maria Lúcia Karam afirmava que "leis penais, como a brasileira, que impõem a obrigatoriedade do tratamento àqueles que têm sua culpabilidade excluída, em razão da dependência, contrariam o princípio básico de que o êxito de qualquer tratamento, nesta área, está condicionado à voluntariedade de sua busca." [8]

Assim, o art. 11 começa por estabelecer que o "dependente ou o usuário de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, que causem dependência física ou psíquica, relacionados pelo Ministério da Saúde, fica sujeito [9] às medidas previstas neste Capítulo e Seção", devendo o "tratamento do dependente ou do usuário ser feito de forma multiprofissional e, sempre que possível, com a assistência de sua família", cabendo ao "Ministério da Saúde regulamentar as ações que visem à redução dos danos sociais e à saúde." Por outro lado, as "empresas privadas que desenvolverem programas de reinserção no mercado de trabalho, do dependente ou usuário de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, ou que causem dependência física ou psíquica, encaminhados por órgão oficial, poderão receber benefícios a serem criados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios". Ademais, os "estabelecimentos hospitalares ou psiquiátricos, públicos ou particulares, que receberem dependentes ou usuários para tratamento, encaminharão ao Conselho Nacional Antidrogas - Conad, até o dia 10 (dez) de cada mês, mapa estatístico dos casos atendidos no mês anterior, com a indicação do código da doença, segundo a classificação aprovada pela Organização Mundial de Saúde, vedada a menção do nome do paciente. No caso de internação ou de tratamento ambulatorial por ordem judicial, será feita comunicação mensal do estado de saúde e recuperação do paciente ao juízo competente, se esse o determinar. As instituições hospitalares e ambulatoriais comunicarão à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad os óbitos decorrentes do uso de produto, substância ou droga ilícita."

O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sugeriu o veto ao caput do art. 12 que tinha a seguinte redação: "As redes dos serviços de saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado o disposto nos arts. 4o. e 47, desenvolverão programas de tratamento do usuário de substâncias ou drogas ilícitas ou que causem dependência física ou psíquica", sob o argumento de que "da maneira como se encontra grafado, o artigo em questão determina, em outras palavras, que somente mediante financiamento com recursos arrecadados pela Secretaria Nacional Antidrogas é que as redes de serviços de saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios desenvolverão programas para tratamento do usuário de drogas. Desse entendimento, decorre que essa proposta vai de encontro ao estabelecido pela Política Nacional Antidrogas, conforme pressuposto básico por ela definido no item 2.12. de seu texto. Ainda, relativamente aos objetivos do Sistema Nacional Antidrogas – SISNAD, da mesma maneira não encontra guarida, uma vez que esse Sistema orienta-se por esse pressuposto básico, a responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, adotando como estratégia a cooperação mútua e a articulação de esforços entre Governo, iniciativa privada e cidadãos - considerados individualmente ou em suas livres associações. Por outro lado, podem ser considerados, isoladamente, como fatores impeditivos à consecução do desiderato pretendido pelo artigo em comento, a diminuta previsão orçamentária disponibilizada para o Fundo Nacional Antidrogas, mais especificamente, no que diz respeito à fonte de recursos vinculados à arrecadação, bem como a reduzida estrutura da SENAD, que não pode ser comparada à rede do Serviço Único de Saúde – SUS, para efeitos de aplicação, controle e fiscalização do emprego de tais recursos. Nesse sentido, este Gabinete vislumbra que o presente dispositivo deverá ser contemplado em diploma legal especialmente voltado para o assunto, devidamente consideradas as limitações e responsabilidades de todos os órgãos que integram o Sistema Nacional Antidrogas, bem como o Sistema Único de Saúde, em todos os níveis da Federação, uma vez que é legítima a preocupação do Legislador sobre a questão do tratamento do usuário, que se constitui primordialmente em ação de saúde pública, e esta um dever do Estado."

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. A nova lei de tóxicos.: Aspectos processuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4161. Acesso em: 4 mai. 2024.

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