1. O Que Levou ao Genocídio:
Ruanda é um pequeno país africano, de cultura essencialmente agrária e pecuária, montanhoso (é apelidado de “terra das mil colinas”) e sem saída para o mar. Historiadores têm o território de Ruanda como sendo bastante seguro, e essa sua situação, no passado, fez com que o país estivesse livre de forças e invasões estrangeiras, ao menos até o início da chegada das grandes potências do ocidente.
A população ruandense é dividida, basicamente, em três tribos: os Twa, os Hutu e os Tutsi. Os primeiros são a pequena minoria, menos de 1% da população. Já os Hutu são a maioria, chegando a aproximadamente 85% do povo do país. Os Tutsi são o restante.
Em 1884, com a Conferência de Berlim, as grandes potências europeias dividiram o continente africano entre si, e à Alemanha coube o território ruandense. Dez anos depois, em 1894, a Alemanha chegou a Ruanda para tomar para si o poder, sem que sequer o povo da localidade soubesse da existência da divisão feita anteriormente. Isso findou por acabar com a independência do país, não obstante a monarquia, regime da época, tenha prosperado, mesmo com menos força e poder.
Após a Primeira Guerra Mundial, no entanto, com a derrota alemã, coube à Bélgica os poderes sobre Ruanda. A partir de então, a força política do povo ruandense decaiu, e teve início uma enorme segregação entre os povos Hutu e Tutsi – o que levou a um dos maiores genocídios que já se teve notícia.
A administração belga no território de Ruanda enxergava os Tutsi como sendo superiores aos Hutu, o que a levava a favorecê-los, de todas as maneiras. Começou com uma inscrição no documento de identificação de todo indivíduo, em que se dizia a qual etnia tal pessoa pertencia. Além disso, apenas aos Tutsi era dado o poder se serem oficiais (favorecidos na hierarquia do governo) e, como tais, abusavam do seu poder contra os Hutu, a torto e a direito, enquanto que os belgas faziam vista grossa, endossando tal comportamento.
Ainda sob domínio belga, tiveram início em Ruanda vários eventos violentos. Após ser tratado por um médico da Bélgica, o rei ruandense faleceu, o que gerou uma revolta na elite Tutsi, os quais culpavam, além dos próprios belgas, os Hutu, pelo acontecimento. Além disso, teve início uma matança de pessoas de ambas as etnias, o que levou a uma perseguição em massa aos Tutsi, com a morte de milhares de pessoas. Nessa época, vários Tutsi tiveram que se refugiar, e a investida Hutu sobre eles ficou conhecida como “o vento da destruição”. Tais eventos deram início, inclusive, à independência de Ruanda.
Em 1962, Ruanda foi declarada independente, e teve, por onze anos, um presidente Hutu, Kayibanda, o qual manteve seu governo inteiro formado apenas por Hutu, excluindo os Tutsi da política. O nome do partido ao qual fazia parte era chamado de “partido para a emancipação Hutu”. Com a segregação étnica arraigada, o governo de Kayibanda, tão logo foi criado, iniciou a perseguição aos oponentes políticos Tutsi.
Os Hutu se reuniam em grupos organizados, iam até áreas isoladas “em busca” de vítimas Tutsi, e se utilizavam de armas brancas para matar. Estima-se que, nos onze anos de governo de Kayibanda, por volta de 14 mil pessoas tenham sido exterminadas.
Após um golpe, um oficial das forças armadas de Ruanda, Habyarimana, assumiu o poder e, por cerca de vinte anos, Ruanda viveu em calmaria, com as perseguições entre as etnias sobrestadas. Em 1989, no entanto, o país passou por uma grave crise econômica, levando-o a um colapso, e fazendo-o enfrentar uma guerra civil drástica. Os Tutsi que haviam se refugiado em países vizinhos se organizaram, e começaram a investir sobre pequenas comunidades, tornando-se peça participante do processo político do país. Isso fez com que o governo ruandense triplicasse o seu exército (com camponeses sem treinamento), e começasse a confabular maneiras de se exterminar toda a população Tutsi, no intuito de alargar a escala de mortes da década de 1960. Foram, inclusive, criados jornais, programas de rádio etc com o objetivo de espalhar, ainda mais, o ódio entre as etnias Hutu e Tutsi.
Em 06 abril de 1994, o presidente Habyarimana foi assassinado, juntamente com outras pessoas do alto escalão do governo Hutu, num atentado que derrubou o seu avião – atentado esse atribuído ao Tutsi – tendo isso sido o ponto chave para o início do genocídio ocorrido. No dia seguinte, forças Hutu estavam nas ruas, fazendo bloqueios, e requisitando as carteiras de identificação das pessoas: quem fosse identificado como Tutsi morreria de pronto; as perseguições às pessoas “marcadas para morrer” começaram, e se seguia uma lista já elaborada há meses.
Durante os meses subsequentes ao atentado ao presidente, as forças Hutu, em todo o país, tomaram as ruas, assassinaram os Tutsi que apareceram na frente, estupraram as mulheres, espancaram tropas belgas até a morte, mataram a sua própria primeira-ministra, cercaram escolas, hospitais, centros comerciais, fazendo uma verdadeira caçada aos Tutsi, aos Hutu “moderados” e àqueles que não possuíam documentos. As igrejas que eram buscadas como abrigos acabaram por se tornar armadilhas mortais, aos que ali se refugiaram. As mídias, controladas por extremistas, a cada dia, incitava o ódio e o genocídio.
As notícias são de que, entre abril e julho de 1994, 5 mil pessoas foram mortas por dia. Cerca de 67 mil corpos foram recolhidos apenas na primeira semana. Rios e lagos inteiros foram poluídos por causa dos corpos que eram neles depositados.
Durante o período do genocídio, as organizações Tutsi foram ganhando força, e rumando à capital de Ruanda, Kigali, enquanto que os Hutu concentraram sua atuação na matança propriamente dita, deixando o país para trás, e levando o “seu povo” ao exílio. Ao final, em julho de 1994, os Tutsi conseguiram o poder político de Ruanda, praticamente pondo fim à guerra civil.
A contabilidade total de mortos em Ruanda chega a um milhão de pessoas.
2. Criação e Atuação do Tribunal Penal Internacional Para Ruanda:
Essa corte internacional foi criada em novembro de 1994, a partir de um pedido do próprio Estado Nacional de Ruanda ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. O objetivo do Tribunal era, então, realizar as investigações, os julgamentos e aplicar as devidas punições aos principais envolvidos no genocídio e nas demais violações ao Direito Humanitário ocorridos em Ruanda, bem como em seus países vizinhos, exclusivamente no ano de 1994. Assim, com a resolução de nº 955/1994, o Conselho de Segurança da ONU funda o TPI para Ruanda, com assinatura favorável de diversos países membros, inclusive do Brasil.
Esse TPI era composto de três câmaras de 1ª instância, cada uma contendo três juízes; e uma câmara de apelação (câmara tal partilhada com o TPI para a ex-Iugoslávia), a qual continha sete juízes. Em cada apelação julgada, deveriam funcionar cinco dos sete juízes. Nenhum dos juízes deveria ser do mesmo Estado Nacional. No total, dezesseis juízes compunham o TPI para Ruanda.
Em 1995, a corte foi fixada em Arusha, na Tânzania, uma vez que foi lá que um primeiro acordo para a paz entre as etnias Hutu e Tutsi foi assinado pela ONU, em 1993.
O fato de a sede do Tribunal ter sido estabelecida na Tânzania, e não em Ruanda, fez com que este país fosse, inclusive, contra a sua criação, mesmo tendo sido ele quem a requereu.
O TPI para Ruanda foi estabelecido seguindo princípios versados para o Direito Humanitário, como o da proibição da pena de morte e dos trabalhos degradantes ou forçados, bem como da proibição do bis in idem. Também reservou um artigo consideravelmente extenso de seu estatuto, apenas com os direitos do arguido. Dentre eles, o de ser considerado inocente até prova incontestável de sua culpa e o de ter um julgamento equitativo e público. Também, o TPI para Ruanda, como era de se esperar, adotou o princípio da complementariedade, apenas atuando quando o Estado Nacional “falhava”.
Por ter sido criado através de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, alguns doutrinadores contestaram a legitimidade do Tribunal, aduzindo que padece de fundamento jurídico o poder da ONU de instituir tribunais. No entanto, após discussões nesse sentido, entendeu-se que a criação do TPI para Ruanda foi legítima, e baseada em normas internacionais reconhecidas e válidas, no intuito de restabelecer e manter a paz naquele país, especificamente, nos arts. 39 a 42 da Carta das Nações Unidas, os quais estabelecem que à ONU cabe determinar a existência de ameaças ou atos de agressão que possam deturpar a paz, bem como fazer recomendações e/ou decidir as medidas que deverão ser tomadas, com o fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacional.
Ao se fazer uma retrospectiva, vê-se que o maior legado deixado pelos organismos internacionais para Ruanda foi, exatamente, o Tribunal ad hoc. Apesar de organizações como a ONU, ou mesmo os países ocidentais, pudessem ter feito muito mais, no sentido de evitar a varreção em massa de uma etnia, a sua atuação durante o período de guerra civil no país foi ínfima. Ao final, já com o deslinde prático da guerra, é que foi feito algo de concreto em Ruanda, que foi a criação da corte internacional.
Além disso, o TPI para Ruanda não impediu quaisquer das atrocidades ocorridas naquele país, mas apenas focou em um passado recente, no intuito de minorar o sofrimento de vítimas, e pessoas próximas a elas.
Também há notícias e relatos que dão conta de que os ruandenses haviam pedido ajuda à ONU para que eles próprios, os ruandenses, pudessem julgar e punir os seus nacionais. Porém a ONU teria ignorado o pedido e, ao invés de auxiliar Ruanda, tomou para si o encargo, e se utilizou do modelo já em andamento para a ex-Iugoslávia, e o implementou para Ruanda.
No que diz respeito à atuação propriamente dita do TPI para Ruanda, há bastantes críticas direcionadas a ela. Da mesma forma, há vários “elogios” e pontos positivos a serem citados.
Há críticas no sentido de que o período que delimitou a sua competência temporal foi muito exíguo – apenas o ano de 1994 –, quando, na verdade, deveria ter sido, ao menos, a partir do ano de 1990, que foi quando os Tutsi refugiados começaram a se organizar, e a investir contra os limites de Ruanda.
Da mesma maneira, critica-se o fato de que os mentores do genocídio, julgados pela corte internacional, foram, de fato, beneficiados. Isso porque a pena máxima aplicada a eles foi a de prisão perpétua, enquanto que os executores, julgados pelo próprio Estado Nacional de Ruanda, muitos deles foram condenados à pena de morte. Ainda seguindo essa mesma linha, muito se fala, também, do fato de que o TPI para Ruanda teve uma quantidade expressivamente menor de julgamentos do que o próprio país.
Também em relação às penas, tem-se que as sentenças aplicadas aos condenados, em regra, não individualizavam a pena, mas esta era aplicada sempre a cargo do órgão julgador.
A morosidade para o término de um julgamento também foi alvo de comentários negativos. Em alguns casos, os acusados ficaram oito, e até doze anos, presos preventivamente, antes que se chegasse a um veredito.
Também se traz à tona os custos para se manter um tribunal do porte do de Ruanda. Estima-se que um valor superior a 400 milhões de dólares tenha sido gasto com o TPI para Ruanda, até o ano 2000 – período com poucas condenações. De lá para cá, mais outro montante desse deve ter sido despendido. Essa crítica se faz pertinente quando analisada em contrapartida à quantidade de ruandenses que, por muito tempo, ficaram à margem de ter uma estrutura adequada, vivendo na total miséria.
Em oposição a essas críticas, os pontos positivos do Tribunal Penal Internacional para Ruanda também são inúmeros. A começar pelo fato de que os julgamentos dos líderes do genocídio, ao serem feitos por uma corte internacional, tiveram um caráter bastante impessoal, diferentemente do que poderia acontecer se tais julgamentos fossem realizados na jurisdição do próprio país.
Também pôde-se ver que o TPI não mediu esforços para que os julgamentos acontecessem da melhor maneira possível, sem a promoção de linchamento dos acusados, mas, ao contrário, com uma grande preocupação na garantia dos seus direitos fundamentais, durante todo o andamento dos processos, e com a prolação de sentenças absolutórias, quando não havia as provas necessárias à condenação.
De mais em mais, o TPI para Ruanda trouxe avanços na jurisdição internacional, atuando de forma inovadora e progressista, tendo o seu objetivo alcançado, uma vez que a sua criação e os julgamentos por ele realizados foram um grande impulsionador para a criação do Tribunal Penal Internacional permanente que hoje existe – o que, há muito, se fazia mister.
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