Este estudo busca averiguar a questão da arbitragem em contratos sujeitos ao regime de direito público, pouco explorada pela doutrina e jurisprudência pátrias, tendo-se em vista a recente evolução do instituto da arbitragem no Brasil, bem como o grande processo de evolução da Administração Pública brasileira iniciado em 1988, a partir da promulgação da Constituição Federal. Faz-se o mesmo necessário, mormente tendo-se em vista as notícias veiculadas pelos meios de comunicação acerca da imperiosa necessidade de revisão dos contratos de concessão de serviços de fornecimento de energia elétrica e de telecomunicações, no tocante aos índices pactuados nos mesmos para reajuste do preço dos serviços, posto que os mesmos se revelam inadequados e afrontam o interesse público. Ainda, deve-se atentar para o novo enfoque dado à questão, deslocando-se a discussão subjetivista da perquirição da possibilidade do Estado ser parte em arbitragem para um novo sentido objetivista, da possibilidade de, em contrato sujeito ao regime administrativo, seja qual for a pessoa jurídica que o celebre, ser admissível a instituição de cláusula compromissória, estando então aberta a possibilidade de solução de eventuais conflitos de interesses mediante o instituto da arbitragem.
De plano, podemos constatar uma divisão a ser feita na atividade negocial do Estado, instrumentalizada por contratos administrativos, a par da conhecida divisão, feita em sede jurisprudencial, dos atos de Estado ius imperii ou ius gestionis, que fundamentam as decisões do Supremo Tribunal Federal no que tange a vários julgamentos de questões trabalhistas envolvendo Consulados ou Embaixadas, que em princípio gozam da imunidade de jurisdição, e brasileiros nestas empregados. Com efeito, há que se separar nos contratos administrativos aqueles que são realizados em virtude do preenchimento da finalidade perene da Administração Pública, qual seja, o atendimento do interesse público, daqueles outros que a Administração celebra sem perseguir de maneira direta sua finalidade, sendo que estes últimos existem sempre de forma instrumental e subsidiária. Assim é que a própria Lei 8.666/93, que disciplina as contratações administrativas, distingue a atividade administrativa negocial em
a)Contratos de direito privado da administração, regidos pelo direito privado quanto ao conteúdo e efeitos, e apenas quanto a eles, visto a remissão que o art. 62, § 3º faz aos arts. 55 a 58 e 61 da Lei 8.666/93, sendo que o mencionado dispositivo faz menção expressa aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado, além dos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público;
b)Contratos administrativos regidos quanto ao conteúdo e efeitos pelo direito público, embora supletivamente incidam os princípios da teoria geral dos contratos e as normas de direito privado, de acordo com o art. 54 da Lei.
Deste modo, podemos verificar que existem duas modalidades de contratos celebrados pelo Estado: por um lado, aqueles de direito privado em que incidem normas de direito público; de outro, os de direito público em que incidem normas privatísticas. Cremos que, a despeito das discussões em sede doutrinária e jurisprudencial, ser razoável que, naqueles contratos regidos primariamente pelo direito privado, é perfeitamente cabível a instituição de compromisso, sendo tal compatível com os princípios da economicidade e da efetividade que regem a atividade administrativa das pessoas jurídicas de direito privado sujeitas à disciplina do direito público.
Assim, podemos ponderar que existem interesses da Administração Pública que são indisponíveis, quais sejam, todos aqueles que dizem respeito ao atendimento imediato do interesse público, e, por outro lado, interesses disponíveis da Administração Pública, que normalmente se revestem do caráter de renúncia a um direito conferido por contrato privado, de ordem patrimonial ou relacionados a prazos ou condições de pagamento, bem como referentes à fixação de preços dos contratos que, por sua natureza, os têm indeterminados. Embora nestes as normas de direito público incidam apenas supletivamente, além de que, tendo-se em vista sua disponibilidade, poderiam, em tese, ser objeto de arbitragem, instituída mediante cláusula compromissória, tal não se faz possível, posto que o princípio da legalidade não pode, sob hipótese alguma, ser maculado, e a atividade da Administração Pública deve cingir-se aos estritos ditames da lei, embora esta possa conferir espaço à discricionariedade do administrador, definindo suas margens.
A legislação federal encontra-se em processo de adequação aos novos tempos em que vivemos, estando o esforço de atualização e de renovação ainda em meio. Deste modo, diplomas instituindo o que há de mais moderno em termos de administração pública gerencial convivem com textos legais feitos em outros tempos, alicerçados em paradigmas totalmente ultrapassados. No Brasil, a lei geral de contratações administrativas (nº 8.666/93) não contempla o instituto da arbitragem como forma de soluções de conflitos de maneira direta, fazendo de forma oblíqua, ao estipular em seu art. 55, § 2º a obrigatoriedade de cláusula estipulando que o foro para que sejam resolvidas as questões decorrentes de contratos administrativos é sempre o da sede do órgão ou entidade contratante, ressalvando, tão somente, caso previsto no art. 33, § 2º do mesmo diploma legal. Este afasta a incidência daquela norma, no caso das licitações internacionais para a aquisição de bens e serviços cujo pagamento seja feito com o produto de financiamento concedido por organismo financeiro internacional, de que o Brasil faça parte, ou por agência estrangeira de cooperação, bem como nos casos de contratação com empresa estrangeira, para a compra de equipamentos fabricados e entregues no exterior, desde que para este caso tenha havido prévia autorização do Chefe do Poder Executivo, ou ainda nos casos de aquisição de bens e serviços realizada por unidades administrativas com sede no exterior. Por outro lado, há jurisprudência do antigo Tribunal Federal de Recursos, citada inclusive pelo Tribunal de Contas da União em decisão administrativa [1], reconhecendo que, embora contrária aos princípios de direito público, o único óbice à adoção da arbitragem nos contratos sujeitos ao regime de direito público é a falta de autorização legislativa.
Repare-se que o dispositivo da Lei nº 8.666/93 impede a estipulação da cláusula compromissória na esmagadora maioria dos contratos administrativos celebrados pela Administração Pública, o que ensejou a proposta do Advogado administrativista Leon Frejda Szklarowsky de acréscimo de uma cláusula geral de admissibilidade da arbitragem à Lei nº 8.666/93, que pemita que "no âmbito das licitações e nos contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas físicas e jurídicas, inclusive aquelas domiciliadas no estrangeiro, as divergências contratuais e sobre o certame licitatório poderão ser solucionadas, de forma amigável, por meio da arbitragem, contando com a presença de representante do contratante — Poder Público — e desde que prevista, no edital e no contrato" [2]. Entretanto, pensamos ser a cláusula abrangente demais, devendo a lei contemplar a possibilidade de instituição, nos editais e contratos administrativos, de cláusula compromissória. Repare-se que não haveria, posto que impossível, mitigação do princípio da indisponibilidade, que configurar-se-ia contrária ao Direito Administrativo pátrio; o que ocorreria seria a autorização legislativa expressa para que, nos casos em que a Administração Pública se visse sujeita, em primeiro plano, às normas de direito privado, e apenas subsidiariamente às de direito público, ou ainda, quando o contrato celebrado com a Administração Direta com particular tenha como objeto modo de intervenção do Estado na Ordem Econômica, pudesse o administrador público resolver as questões daí decorrentes, mediante o estabelecimento de arbitragem. Adotada esta alteração, consagrar-se-ia outro princípio, o da responsabilidade do Administrador Público no exercício de suas funções.
A adoção de cláusula geral que permitisse o estabelecimento de cláusula compromissória — note-se que esta não seria incluída em todo contrato administrativo, cabendo ao administrador, quando da confecção dos editais e dos contratos administrativos, perquirir sobre a necessidade e os efeitos do estabelecimento da mesma — seria importante principalmente àqueles entes da Administração Indireta consubstanciados em pessoas jurídicas de direito privado, quais sejam, sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações privadas e organizações da sociedade civil de interesse público que recebam verbas públicas, além das organizações sociais. Estes, por encontrarem-se no limiar da separação entre a atividade estatal e a atividade privada, devem ter maior poder de decisão e de escolha a fim de tornarem-se realmente efetivas na consecução da busca do interesse público quando do desenvolvimento de atividades que tenham expressão econômica.
Note-se, ainda, que esta é a tendência adotada pelos novos diplomas legislativos que disciplinam o Regime Geral de Concessão e Permissão de Serviços Públicos (Lei federal nº 8.987/95), a Lei Geral de Telecomunicações (Lei federal nº 9.472/97), a Lei do Petróleo (Lei federal nº 9.478/97) e a Lei de Transportes Terrestres e Aquaviários (Lei federal nº 10.233/01), que permitem o estabecimento de foro ou do modo amigável de resolução de controvérsias, quando não explicitamente indicaram a possibilidade da instituição de compromisso arbitral nos contratos que celebrarem. Tal se dá tendo-se em vista a alta complexidade técnica e ao forte impacto econômico dos mesmos, cujas questões controversas seriam efetivamente avaliadas por técnicos, restando ao Poder Judiciário o exame da adequação da atividade administrativa negocial aos princípios insculpidos no art. 37 da Constituição Federal.
Observe-se, por fim, que a questão da arbitragem, neste caso, identifica-se com o caráter de um julgamento sobre avaliação técnica, que pode ser econômica, financeira, contábil, de engenharia ou de outra disciplina estranha ao Direito. O leading case conhecido como "Caso Lage" [3] dizia respeito à questão de avaliação por arbitragem da extensão da responsabilidade do Estado por danos causados, bem como da fixação de valor dos ativos de várias empresas que foram nacionalizadas durante a Era Vargas, em que a arbitragem autorizada por Decreto-lei foi tratada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal como meio legítimo para que se fixasse um valor justo para indenização, como reclamado pela Lei de Desapropriações, bem como pela Constituição Federal de 1988.
Concluindo, concordamos que ao Estado, como parte nas relações jurídicas, bem como pela natureza de suas próprias funções, não caberia precificar — usamos aqui o jargão econômico — o objeto das controvérsias em que toma parte, até mesmo pelo princípio da imparcialidade. Esta, em última análise, a função da arbitragem, como mediador em busca de soluções negociais, tendo-se em vista o caráter subjetivo e disponível do valor das coisas que estão no comércio, valendo-nos aqui da distinção civilista que o Direito Romano nos legou.
Notas
01. TC 8217/93-9, Rel. Min Homero Santos.
02. A Arbitragem e os Contratos Administrativos. Disponível em www.direito.adv.br/artigos/arbitragem.htm.
03. Agravo de instrumento nº 52.181-GB, Rel. Min. Bilac Pinto. RTJ 68/382.