A sociedade do medo.

O medo do vizinho que transforma o desespero em atos de ignorância

12/08/2015 às 00:17
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Como chegamos ao ponto de não conhecermos a vida lá fora dos muros? E qual o motivo? Esse medo que existe do outro pode nos levar a um trágico desfecho, mas de onde ele vêm? Vivemos, infelizmente, em uma nova Guantánamo dentro de nossas fronteiras. O texto é uma critica ao modo que vivemos nos dias de hoje, cercados de apresentadores circenses e vendedores do sangue alheio e de novelas sem sentido ou nexo real. As vidas são mais que simples panorama para a TV e estão sendo transformadas em um simples emaranhado de medo, de receio e ansiedade.

Vamos deixar um pouco de lado as tecnicidades e o apregoado cientificismo jurídico e falar abertamente de uma maneira franca e um tanto audaciosa. Criticas virão e todas são bem vindas a partir do momento em que se pondera o real motivo de realiza-las. Será que concordo, ou na dúvida discordo, ou até pelo simples fato de ainda não possuir um pensamento a respeito do assunto, então melhor abster-se de qualquer discussão a respeito. Mas as críticas são necessárias para o crescimento intelectual e para o desenvolvimento de uma resposta, que indefinidamente forma a antítese, a tão famigerada resposta qual Hegel definiu em terreno tão fértil: o da dúvida.

Vivemos em um circo. O resultado de nossa cruel evolução hoje chega aos tempos de barbárie, e dessa forma, só nos resta seguir em frente já que não mais podemos retornar. A “datenização” da televisão nacional fidelizou tanto o pensamento rotineiro do cidadão quanto a “novelização” globista o fez. Talvez a grande diferença entre as duas esteja no fato de que enquanto a primeira se beneficia dos dramas reais de uma sociedade narrados por apresentadores circenses, a segunda aliena e desfaz o pouco de sobriedade que ainda existe, demonstrando a vida como deveria ser. Aí, ao cair na malha do judiciário o inicio das investigações já parte do comum alarde, feito com imparcial pretensão de conhecer mais a teoria das penas do que o próprio magistrado: “Fulano foi preso e pode pegar mais de duzentos e oitenta anos de prisão.” Como todo sensacionalismo inaudito o momento propicia um grande eco. Todos os “datenistas” de plantão clamam e urgem contra o acusado repetindo: “Duzentos e oitenta anos de prisão.” Findado o processo, o sujeito condenado, culpado, confesso, sem antecedentes, é punido com quinze anos de prisão. Mas então esta feito o alarido! E todos uníssonos: como a justiça faz uma coisa dessas? O Brasil é o País da impunidade! Não eram duzentos e oitenta anos? Por outro lado, ainda, ao inverter todo um processo de defesa do réu, a delação premiada no processo, ou seja, o acordo de entregar todos os participes do crime feito pelo Ministério Publico e o réu, que se encontra preso, ainda traz uma nova fonte para o direito processual penal: na dúvida, não há dúvida, se prende o acusado negando anos de estudo jurídicos acerca o direito penal e o processo justo e imparcial. Afinal, não temos mais tempo para dúvidas, como diria Sallah Kalled Jr., in dubio pro HELL.

Prosseguindo em nossa aventura nas atualidades do direito vemos uma nova Guantánamo no interior de nossas fronteiras. A pós-modernidade trouxe além de um constante desenvolvimento e crescente globalização aquilo que Bauman conhece como o medo do outro, ou a Mixofobia. Esse receio do que não se conhece vem crescendo dia após dia, ventilado pela representação digna de Oscar dos datenas da vida alheia, que invertem a ordem e aplaudem a comercialização do sangue, da violência e da intolerância Brasil afora, transportando para dentro dos lares desconhecidos de milhares de anônimos que, estaticamente, estão dentro das probabilidades de que aconteça também com eles o que ocorreu com o infeliz que jaz sem vida em sua TV. Assim, o pavor se renova e a fobia do desconhecido traz um novo inimigo, que não é mais a Polícia, nem o traficante do alto do morro, muito menos o soturno mão leve da noite, mas sim, o vizinho. É esse o inimigo dos dias de hoje, o medo do desconhecido em nossas portas, no batente dos quartos de nossas crianças. a intolerância hoje não mais é um aspecto longínquo e que ocorre apenas em locais definidos pela diferença de cor ou raça. A intolerância esta dentro das igrejas e dos templos, dentro do Congresso Nacional e das prisões, ela vive tão dentro das favelas quanto no interior dos luxuosos condomínios. Ao relatar a desconfiança do outro, o sociólogo polonês Bauman nos relatou aquilo que, impreterivelmente, já era conhecido, mas que nunca fora tão escrachado e abertamente dito por alguém dessa estatura intelectual. O medo do outro formou uma sociedade que se liquefaz a cada desconfiança, engendrando raízes que se fincam profundamente nas comunidades.

Tradicionalmente, todo esse receio é estatístico. Se existe a possibilidade mínima dessa estatística atingir o individuo, então esse começa a se precaver e a antever as situações que possam com ele ocorrer. Grosso modo, ao determinar que está inserido dentro de uma fatia da sociedade atingida por uma calamidade, improvisasse para não ser atingido por tal mal. Dessa forma, o conceito de medo parte para o próximo passo, que é o agir consciente. Determina esse agir com forma e vontade, ora, se a violência é eficaz em minha comunidade, vou comprar uma arma, nem que seja no mercado negro, ou como se diz na gíria, por baixo dos panos. Todavia, se o problema do local forem os assaltos, zonas de segurança serão criadas. E é nesse momento que o próximo passo determina quem é o inimigo. Essas zonas de segurança você já pode ter encontrado algum dia, ou, alguma vez, ou todos os dias se depara com ela. Nas comunidades do Rio de Janeiro essas zonas de segurança surgiram com o motivo “pacificador”, ao tentar retirar as favelas do domínio dos traficantes. Mas não vamos nos ater às UPPs. Vamos nos concentrar no mal pior que existe e ainda pode vir a explodir de uma forma estupida. Nas cidades, ou melhor, nos bairros, existe a parcela da população que por esse medo desenfreado do outro contrata segurança particular, que passam a noite apitando ou buzinando em frente de suas casas. Mesmo que tal dispositivo seja duvidoso, que contenha algum “medo” a se realizar é esse um dos primeiros passos ao que veio logo após.

Imbuídos por essa ideia, muitos moradores se uniram formando associações da vila ou da comunidade, numa representação daquilo que imaginam a segurança privada porem, exercida por todos. Pois bem, em frente de suas casas puseram então cartazes onde dizeres avolumados mostram ao indesejado visitante de que há panópticos por todo o lado e disso não se pode fugir. Geralmente o “estamos de olho em você” ou “comunidade de olho” são os mais encontrados. Assim, o receio das pessoas e o medo fez com que alarmes fossem dispostos dentro de casa, e, ao avistar alguém desconhecido andando pela rua de maneira comprometedora, soa-se então o alarme para que todos saibam que há no local um meliante. Pela visão da dona de casa, já assustada pelo fato de ter que colocar alarme particular dentro de casa, o qual ela mesmo teria que apertar caso algo fora do comum fosse enxergado, e, pelas atividades circenses dos apresentadores de telejornais policiais, qualquer atitude é suspeita. Estamos vivendo o período do medo.

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É somente comprovando que se obtém a positividade das criticas a esse sentido. Desde o começo do ano inúmeras foram as vezes que se viu nos jornais destaque para o espancamento de possíveis bandidos, amarrados em poste, mortos e linchados pela população. Também devemos lembrar o caso emblemático da mulher tomada por uma sequestradora em uma comunidade no Paraná, apenas por ter os cabelos tingidos de vermelho, a mesma cor da pessoa vista fugindo com as crianças. Essa mulher estava no lugar errado, no momento errado, e, vivendo na sociedade do medo. Foi espancada até a morte, sem ter nada com o crime. Vários casos semelhantes na história mostram que é melhor dois culpados em liberdade do que um inocente preso, se estiver ainda dúvida quanto a isso, imagine você o inocente.

Na situação dos bairros, o grande potencial destrutivo começou. A ideia de pacificação não existe. Só se pacifica o local em guerra, e é, em guerra, que essas pessoas vivem. Problema maior pode ser desenhado quando se imagina quem é que caminha de forma inidônea pela rua e que merece ser taxado de comprometedor da paz social. E ainda, quem julga aquele que deve ser chamado como o estranho, o causador do medo.

Nota-se que essas mazelas estão interferindo na sociedade de uma forma volátil, onde não mais existe a empatia ou a alteridade, nem ao menos a conversa. Dentro dos muros de suas casas e dos condomínios existe um local de paz e proteção e é lá que se deve ficar, identificando tudo o que esta do lado de fora como o inimigo em comum, aquele que deve ficar de fora, aquele ser monstruoso que deve ser extirpado de nossa visão. E não para por aí, emblematicamente, muitas vezes esse inimigo é o próprio vizinho de porta, o qual já não mais se cumprimenta nem se olha nos olhos.

A “datenização” chegou ao seu ápice. Conseguiram fazer de nós aquilo que queriam desde o inicio: seres amedrontados, com dificuldade de iniciar uma conversa, com pessimismo a flor da pela, com uma desmotivação além do limite e enfim, com um receio de ter que viver, mesmo sabendo que morrer é difícil. Sim, vivemos uma nova Guantánamo bem aqui, dentro dos bairros, nas comunidades tradicionais, nos lugares onde passamos a nossa infância.

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Sobre o autor
Iverson Kech Ferreira

Advogado especializado em Direito Penal. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional (2014) e Pós Graduação pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal. É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com enfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal. Associado aos quadros de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil desde Março 2015.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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