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A construção da participação popular na Assembleia Nacional Constituinte

13/08/2015 às 10:36

Resumo:


  • A participação popular na Constituinte de 1987-1988 permitiu a apresentação de emendas populares, contribuindo para o texto constitucional promulgado.

  • Esse processo abriu as portas do Congresso Nacional à sociedade civil, possibilitando uma atuação ativa dos brasileiros na elaboração da Constituição Federal de 1988.

  • A experiência de mobilização e participação na Constituinte gerou aprendizados políticos, jurídicos e sociais, sendo fundamental para a consolidação da democracia participativa no Brasil.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A participação popular prevista na Constituição Federal de 1988 foi resultado de um processo que abriu as portas do Congresso Nacional à sociedade civil. A Assembleia Nacional Constituinte contou com a participação cidadã ativa dos brasileiros.

Resumo: A participação popular prevista na Constituição Federal de 1988 foi resultado de um processo que abriu as portas do Congresso Nacional à sociedade civil. A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 contou com a participação cidadã ativa dos brasileiros, que por meio das emendas populares apresentadas, contribuíram para o texto constitucional promulgado.  

Palavras-chave: Participação popular - Constituição Federal - Assembleia Nacional Constituinte


INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito após um longo período autoritário. O caminho para chegar até o texto promulgado foi trilhado na Assembleia Nacional Constituinte.

O processo constituinte possibilitou a participação da população brasileira por meio da apresentação de emendas populares, iniciativa inédita na história do país. A sociedade civil fez uso desse instrumento e apresentou proposições que foram contempladas de certo modo no texto constitucional.

Dessa forma, a mobilização e a atuação da população nesse processo vai gerar resultados positivos para a sociedade brasileira, seja em forma de importantes direitos assegurados constitucionalmente, ou pelo caráter pedagógico de aprendizado participativo que pode ser levado para além do período de transição democrática.

Assim, revela-se muito importante realizar essa retrospectiva histórica  a partir do anos 70, quando se iniciam os primeiros movimentos pela  transformação do Brasil numa democracia, perpassando todo o processo constituinte.


1. REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA E PARTICIPAÇÃO

O golpe militar no Brasil gerou uma conjuntura política adversa à participação popular, de grande repressão da mobilização política, enquadrando na ilicitude a manifestação dos movimentos populares e organizados da sociedade. Ainda assim, resistentes e "da clandestinidade, muitos grupos contestavam essa convivência com as regras autoritárias." (MICHILES, 1989, p.22)

Apresentado aqui de forma simplificada, o processo de transição política para a democracia foi objeto de divergências e questionamentos que persistem até os dias atuais, seja por seu caráter de "transição transacionada" ou pelo procedimento adotado para convocação da constituinte.

Todavia, não são estas controvérsias que correspondem à memória democrática do processo constituinte de 1987-1988, mas o grande esforço empreendido pela garantia e defesa da participação popular.

O processo constituinte teve como protagonista uma sociedade civil que amargara mais de duas décadas de autoritarismo. Na euforia- saudável euforia- de recuperação das liberdades públicas, a constituição foi um notável exercício de participação popular. Nesse sentido é inegável seu caráter democrático. (BARROSO, 2008, p. 42)

Oliveira (2008, p.22) argumenta ser necessária a compreensão de que o fracasso a ser apontado neste processo pertence apenas aos setores das elites civis e militares brasileiras que acreditavam na realização de uma transição "pelo alto", e estrategicamente planejada, da ditadura para a democracia, o que não ocorreu em virtude da notável participação da cidadania mobilizada politicamente.

Essa experiência de mobilização da sociedade brasileira antes e durante a constituinte, além de repercutir no texto constitucional de 88, resultou num aprendizado político, jurídico e social, que não se esgotou ali, naquele momento histórico.

Nesse momento de inegável importância histórica para o país, importava mais não a perspectiva estanque da Constituinte em si, mas o seu caráter processual. Ou seja, a mobilização popular que seria despertada com a realização da Constituinte. O seu caráter pedagógico, de aprendizagem política e, principalmente, seu significado na luta pela construção na cidadania do povo brasileiro. (MICHILES, 1989, p. 20)

Portanto, necessário se faz o resgate, a reflexão e o exercício dessa memória. Afinal, atualmente estamos vivendo novas etapas de luta, pois ainda hoje, em plena democracia, é preciso manter a participação popular ativa e reflexiva para garantir a fruição das conquistas contidas na Constituição Federal.

Afinal, como alerta Silva (2007, p.45), democracia não é um conceito estático e absoluto, nem é algo que há de instaurar-se de uma vez, de forma acabada, e durar dessa forma pela eternidade. Ao contrário, a democracia é um processo dialético, de lutas e de construção permanente.

No mesmo sentido, Demo (1999, p.18) esclarece que participação é processo "em constante vir-a-ser, sempre se fazendo [...] existe enquanto conquista processual. Não existe participação suficiente, nem acabada".

Nesse ponto, o conhecimento a respeito dessa luta participativa e democrática da constituinte é imprescindível para não cessar sua defesa, sob pena de dar continuidade a tradições autoritárias com as quais a Constituição promulgada em 1988 veio romper.


2. A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA CONSTITUINTE DE 1987-1988

Após anos de censura à imprensa e às artes, proscrição da atividade política, extinção de organização estudantis, perseguição e repressão orquestrados em sucessivos atos institucionais pela Ditadura Militar, em meados dos anos setenta começa no Brasil um processo de transição, lento e gradual, com a revogação dos atos institucionais, reintrodução do pluripartidarismo, anistia  ampla e irrestrita, e abertura do caminho para a redemocratização no país.

Todavia, Bonavides e Andrade (2006, p. 456) advertem que "não se pode dizer em absoluto que esse processo foi dádiva do Estado", afinal a sociedade brasileira estava mobilizada, "inumeráveis organizações civis, entidades populares, órgãos de imprensa, estudantes, advogados, professores, trabalhadores e políticos de oposição[...] não cessaram de requerer a volta de um regime marcado pela confiança e credibilidade nos poderes de governo e na investidura legítima de seus titulares".

Nesse período, duas importantes campanhas estiveram nas ruas: o movimento pelas "Diretas Já", que pretendia o restabelecimento das eleições diretas para Presidente da República, e a mobilização pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que reclamava a "reconstitucionalização democrática do Brasil" (SILVA, 2007 p. 28).

Sobre esse momento histórico, José Afonso da Silva (2007, p. 19) ofereceu seu testemunho:

Todos sentem que o Brasil vive aquele momento histórico que a teoria constitucional denomina de situação constituinte, situação que se caracteriza pela necessidade de criação de normas fundamentais, consagradoras de nova ideia de direito, informada pelo princípio da justiça social, em substituição ao sistema autoritário que nos vem regendo há vinte anos. Aquele espírito do povo, que transmuda em vontade social, que dá integração à comunidade política, já se despertara irremissivelmente, como sempre acontece nos momentos históricos de transição, em que o povo reivindica e retoma seu direito fundamental primeiro, qual seja o de manifestar-se sobre a existência política da Nação e sobre o modo desta existência, pelo exercício do poder constituinte originário, mediante Assembleia Nacional Constituinte. (grifo do autor)

No entanto, o movimento de massa pelas "Diretas Já" foi frustrado quando fracassou a Proposta de emenda à Constituição de 1967 nº 05, de 02 de março de 1983, que atenderia a este objetivo.

Assim, com a rejeição daquela PEC, teve lugar o último colégio eleitoral da ditadura, que elegeu Tancredo Neves Presidente da República. Como Tancredo faleceu antes de tomar posse, foi seu vice, José Sarney quem assumiu a Presidência, e enviou ao Congresso Nacional uma proposta de convocação de Assembleia Nacional Constituinte, aprovada como Emenda Constitucional nº 26, de 27/11/1985.

A rigor, o que se fez por intermédio daquela emenda foi convocar as instituições constituídas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, reunidos num Congresso Constituinte, livre e soberano, para elaborar a nova Constituição. No ano de 1986 foram eleitos de forma direta, livre e democrática os deputados e senadores membros da Constituinte, que inaugurou seus trabalhos no ano subsequente.

Ressalte-se que esta proposta governamental de convocação, então levada a cabo, contrastava com os movimentos sociais que reivindicavam uma Constituinte exclusiva, isto é, eleita especificamente para elaboração da nova Constituição numa Assembleia de iguais, sem a divisão dos constituintes em senadores e deputados, e sem execução de seus trabalhos em paralelo às atividades normais do Congresso.

Iniciados os trabalhos da Constituinte, o Regimento Interno regulamentou o procedimento a ser observado: havia oito comissões temáticas (I-Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, II-Organização do Estado, III-Organização dos Poderes e Sistema de Governo, IV- Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições, V-Sistema Tributário, Orçamento e Finanças, VI-Ordem Econômica, VII-Ordem Social e VIII- Família, Educação, Cultura, Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação), cada qual contando com três subcomissões. Além destas, haveria uma comissão central, denominada de Comissão de Sistematização, para onde convergiria todo o trabalho produzido nas oito comissões temáticas, cujas ações seriam coordenadas e sistematizadas pelo relator e de onde nasceria o primeiro esboço de anteprojeto de constituição.

A metodologia abarcava ainda a realização de audiências públicas para ouvir a sociedade e a apresentação de sugestões nas Comissões, bem como a apreciação de emendas populares pela Comissão de Sistematização, propostas por no mínimo três entidades associativas legalmente constituídas e endossadas por, pelo menos, 30 mil assinaturas de eleitores brasileiros.

Além disso, conforme o Regimento Interno, um dos signatários da emenda popular, indicado quando da sua apresentação, poderia usar da palavra para defender a proposta em plenário, pelo prazo de vinte minutos.

[...]a Constituinte abriu as portas à presença popular e fez a sociedade participar por via de grupos e correntes que ajudaram a formular, com iniciativas de colaboração, o projeto finalmente aprovado e convertido em Lei Magna. Um fato, aliás, cabe acentuar, sem precedentes em toda a história constitucional do Brasil. Colocou-nos ele tão perto da realidade, do instante concreto, que a Constituinte congressual perdendo em parte  o traço elitista, típico das Constituintes passadas, soube congregar o povo e ouvir sua palavra, soube auscultar os centro de opinião e dialogar com o país." (BONAVIDES E ANDRADE, 2006, pág. 491.)

A introdução destas previsões participativas inéditas na história constitucional brasileira no regulamento da Constituinte foram resultado de uma batalha regimental.

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A composição do Congresso eleito era claramente desfavorável aos interesses populares. Tomava-se então extremamente importante lançar-se na batalha do regimento interno, para assegurar uma real participação popular no trabalhos da Constituinte, num "esforço consistente para conjugar o risco que o Congresso tem corrido, desde os tempos do arbítrio, de se isolar e deixar de exprimir os anseios nacionais". (MICHELES, 1989, p. 50)

Para a conquista e intensidade de utilização das emendas populares, instrumento de participação popular inédito no Brasil, tiveram papel fundamental os plenários, comitês e movimentos pró-participação popular. Estas eram organizações suprapartidárias (ainda que algumas tenham nascido da atuação de partidos ou de militantes políticos) voltadas específica e diretamente para a Constituinte, cuja história de engajamento pode ser desdobrada em diversas fases.

Primeiramente, sua atuação correspondia à mobilização para participação e articulação na luta por uma Constituinte exclusiva. Frustrado esse objetivo, num segundo momento, buscava-se a formulação de propostas populares para a nova Constituição, bem como o compromisso com estas propostas por parte dos candidatos e partidos que disputavam as eleições ao Congresso Constituinte.

Foi na terceira fase que se conheceu uma primeira mas importante vitória: a incorporação da "iniciativa popular" no regimento interno. A partir de então os plenários se consolidaram como forma de organização, induzindo o surgimento de grupos em todo o país e a participação das organizações populares no processo de coleta de assinatura. (MICHIELES, 1989, p.40)

Michiles (1989, p.37) observa que no processo de ruptura com o regime tecnoburocrático-militar, a sociedade brasileira despertou para o verdadeiro embate de interesses que ocorreria na elaboração de uma lei maior e para defesa dos interesses de seus diferentes segmentos não era suficiente a eleição de representantes, seria preciso reivindicar suas propostas e tentar influenciar diretamente nas decisões.

Em decorrência disso, a característica mais marcante da Constituição de 1988 será certamente o alto nível de participação da sociedade na sua elaboração.

Foram apresentadas à Comissão de Sistematização 122 emendas, que contabilizaram mais de doze milhões de assinaturas. Segundo Michiles (1989, p. 105) esse quantitativo deve ter correspondido aproximadamente à 10 ou 12% do colégio eleitoral à época, porcentagem considerada expressiva tendo em vista a facultatividade do ato de subscrição, o prazo exíguo e todas as dificuldades enfrentadas no processo de sensibilização e colheita de assinaturas.

Sob o aspecto qualitativo, observou-se uma heterogeneidade temática e de grupos sociais responsáveis pela idoneidade das assinaturas das emendas populares.

Assim houve emendas sobre direitos da criança e do adolescente, reforma agrária e reforma urbana, educação, religião, previdência social, direitos trabalhistas, moradia, transporte coletivo, instrumentos de democracia participativa, eleições diretas, segurança pública, regime de governo, tributos, dívida externa, serviço público, monopólio do petróleo, entre outros temas e também foram diversas as entidades propositoras, desde sindicatos e associações profissionais, técnicas, científicas ou acadêmicas, até  as entidades religiosas, patronais, empresariais e civis (de defesa dos direitos humanos, do consumidor, de mulheres, associações de moradores e estudantis), bem como associações de municípios, câmaras de vereadores, assembleias legislativas, prefeituras, etc.

Nessa mobilização, ocorreu outra mudança qualitativa, com repercussões provavelmente ainda mais profundas: a emergência das camadas sociais populares como protagonistas da luta democrática de interesses e embates institucionais decisivos. (MICHILES, 1989, p. 37)

Em resumo, o mecanismo da emenda popular foi empregado por grupos tanto conservadores quanto populares, se traduziram a favor e contra temas polêmicos, o que fez das emendas um efetivo instrumento de participação diferentes segmentos da sociedade, e assim, de cidadania.

Por  meio da apresentação de emendas populares ao projeto de Constituição o povo brasileiro pode demonstrar qual o perfil da Constituição que queria ver promulgada, qual o Brasil era a aspiração de toda aquela mobilização.

A conquista da participação estava incluída nos anseios da sociedade civil organizada, visto que três emendas populares (PE00021-1, PE00022-9 e PE00056-3) apresentadas à Comissão de  Sistematização versavam especificamente sobre instrumentos de participação popular e desenvolvimento do processo democrático, e uma delas (PE00063-6) dedicou-se à reforma urbana.

As PE00021-1, PE00022-9 e PE00056-3 previam dispositivos garantidores do direito ao acesso à informações públicas, da iniciativa popular de lei e de emenda constitucional, da participação da comunidade nos planos de governo, bem como seu acompanhamento e controle, pretendia criar desde a Constituição os conselhos municipais de participação popular na administração pública, além de várias hipóteses de realização de referendo popular. Reunidas, estas três emendas obtiveram 379.076 subscrições.

Michiles (1989, p.94) revela que estas emendas foram formuladas pelos Comitês, Plenários e Movimentos Pró-participação, "seria inconcebível que estes coletivos não produzissem materialmente um texto de lei que espelhasse a razão de ser de seu trabalho desenvolvido durante o processo."

Sobre o processo de adesão a este trio de emendas populares o autor destaca ainda seu caráter pedagógico, pois se tornou um instrumento de aprendizado acerca do processo político e da própria atividade associativa e organizativa, tão importante para a participação:

Houve campanhas extremamente cuidadosas em torno do processo de coleta de assinaturas num verdadeiro instrumento de educação política. A força do depoimento gravado de uma das principais lideranças atesta bem isso. Vai além: tece reflexões conclusivas sobre os frutos decorrentes do envolvimento da população no processo constituinte. É importante citá-lo textualmente: [...] Compreendemos que a maior vitória política ia resultar do aprendizado político, do processo de conscientização, de educação, de toda essa mobilização, de todos esses recursos humanos que foram mobilizados. Isso é que era fundamental e não simplesmente imaginar que só porque fizemos um abaixo-assinado massivo, aí os deputados iam respeitar. Foi acertada nossa posição de priorizar o processo de discussão e não a questão formal da assinatura de qualquer um. Não catamos qualquer assinatura. Demos prioridade para lavradores e lavradoras. Todos os nossos títulos de eleitor, e os companheiros (refererindo-se à equipe coordenadora deste livro) revisando as planilhas vão ver quanto analfabetos têm, mas todos os que assinaram são assinaturas de lavradores...

Buscamos construir uma unidade de base e sobretudo desenvolver a nossa capacidade de organização. A Constituinte serviu para isso, para melhorarmos a nossa organização. (MICHILES, 1989, p.97)

A PE00063-6 também trazia em seu bojo instrumentos participativos, mas relacionando-os com a questão urbana, tal qual a iniciativa de lei municipal relativa a vida urbana, e a possibilidade de veto popular em face de lei urbana contrária aos interesses da população.

Sob a responsabilidade da Federação Nacional dos Engenheiros, Federação Nacional dos Arquitetos e Instituto de Arquitetos do Brasil, e como resultado do Movimento Nacional de Reforma Urbana, esta emenda tentava introduzir na ordem jurídica constitucional importantes princípios, como o direito à cidade, a gestão democrática da cidade e a função social da cidade.

Sozinha, a PE00063-6 obteve a expressiva marca de 131.000 assinaturas, isso representa cerca quatro vezes mais do que o quantitativo mínimo exigido pelo Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte para apresentação de uma emenda popular.

Michiles (1989, p.101-102) acredita ainda que a produção das emendas populares não se resumiu ao universo constante dos registros oficiais, o quantitativo seria, pois, muito mais amplo:

[...] seria falso afirmar que a totalidade de produção de emendas e consequente mobilização popular restringiram-se ao acervo contido nas publicações oficiais [...] Seguramente mais algumas dezenas de emendas, além das 122 noticiadas, percorreram Brasil afora. Em certos casos, o resultado não veio a termo por desistência a meio do caminho, das próprias entidades promotoras. Em outros, a resolução tardia de colocá-las em campo, o acanhamento da rede de distribuição, a falta de quadros de militância empenhada em assumir a árdua tarefa da coleta de assinatura contribuíram para que não fossem entregues dentro dos prazos fixados e assim permanecessem desconhecidas dos registros oficiais.

Conforme Backes (2010, p.03), do total de 122 emendas populares formalmente apresentadas na Comissão de Sistematização, 19 preencheram todos os requisitos regimentais e receberam parecer favorável da Comissão de Sistematização pela sua aprovação parcial ou total.

Apesar de aprovadas, não se pode atribuir a essas emendas a exclusividade no resultado final do processo constituinte, já que outras emendas, apresentadas pelos constituintes, com teor igual ou semelhante, também receberam parecer pela aprovação na mesma fase do processo. (BACKES, 2010, p.03)

De uma forma ou de outra, via emenda popular ou de autoria constituinte, o texto final da Constituição Federal acabou prestigiando conteúdos defendidos nas emendas populares.

[...] não se pode descartar a importância representada pelos ganhos ou perdas, em termos de conteúdo, ao se examinar a capacidade de absorção final pelo texto da Nova Constituição das demandas populares. (MICHILES,1989, p. 99)

É possível afirmar que parte do conteúdo das emendas populares PE00021-1, PE00022-9, PE00056-3 e PE00063-6, explicitadas acima, foram absorvidos no texto constitucional promulgado, afinal são diversos são os dispositivos de onde sobressai a participação popular.

Encerrado o processo constituinte, o discurso na sessão solene de promulgação da Constituição de 1988, proferido por Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, ressaltou a participação popular na elaboração da Carta Magna:

[...]além das "122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas[...] A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente, as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, Comissões, galerias e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.” (BONAVIDES; ANDRADE, 2006, p.914)

No mesmo discurso, o constituinte destaca ainda a importância da previsão expressa no novo texto constitucional da democracia participativa, além da representativa, observando que:

Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos Cidadãos. Do presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral é o cerne da pátria. (BONAVIDES; ANDRADE, 2006, p.915)

Assim, a experiência forjada na luta constituinte não se resumiu à conquista pela sociedade civil de espaço na Assembleia Nacional Constituinte, foi muito além, conseguiu consagrar seu espaço na própria democracia brasileira, que passou a prever direitos e instrumentos participativos de intensidade e magnitude até então inéditos. Por isso,  foi consagrada " A Constituição Cidadã".

Além disso, a Constituição não esgota o direito e nem as lutas.O engajamento e o discurso devem permanecer com o objetivo de ampliar as conquistas.

A promulgação fecha uma etapa, mas não esgota uma luta. Cresceu o movimento social em meio às agruras e tensões, às derrotas e vitórias, E essa capacidade mobilizadora aumenta de intensidade para além e depois da Constituição. (MICHILES, 1989, p. 390)

Nesse mesmo sentido, alerta Milton Santos ( 2002, p. 80):

A luta pela cidadania não se esgota com a confecção de uma lei ou da Constituição porque a lei é apenas uma concreção, um momento finito de um debate filosófico sempre inacabado. Assim, como o indivíduo deve estar sempre vigiando a si mesmo para não  se enredar pela alienação circundante, assim o cidadão, a partir das conquistas obtidas, tem de permanecer alerta para garantir e ampliar a sua cidadania.


CONCLUSÕES

Após mirarmos com olhar histórico sobre a participação popular na luta pela redemocratização do país e no processo constituinte, vimos que  "os homens são capazes de construir um projeto racional, condensando as ideias básicas desse projeto num pacto fundador — a constituição." (CANOTILHO, 1993, p. 13).

A participação popular pode ter múltiplos significados, mas a Constituição elegeu o sentido que abarca a possibilidade de participação direta da população, além da capacidade de eleição de sua representação política. Essa escolha constitucional está diretamente ligada ao exercício da participação popular na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988.

Assim, a mobilização social ultrapassou as barreiras do Estado autoritário, alcançou o processo constituinte e se firmou na norma suprema do ordenamento jurídico brasileiro. De modo que é possível afirmar que a vivência do processo constituinte ajudou a forjar o Estado brasileiro contemporâneo, que tem na sua estrutura instâncias participativas com diversos formatos, temas e finalidades.

A experiência participativa adquirida durante a constituinte é um legado muito útil e relevante para que a sociedade civil continue mobilizada, agora fazendo uso dessas novas instâncias de participação.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Vinte Anos da Constituição de 1988: a reconstrução democrática do Brasil. In: PINHEIRO, Julio (et all). Uma homenagem aos 20 anos da Constituição Brasileira. Florianópolis: Fundação Boitex, 2008.

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2006.

______. Teoria constitucional da democracia participativa. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2011.

DEMO, Pedro. Participação é conquista: noções de política social participativa. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1999.

MICHILLES, Carlos. Cidadão Constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Studio Nobel, 2002.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 

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Sobre o autor
Analice Cunha

Advogada. Mestranda em Direito Público pela UFBA. Especialista em Direito do Estado pelo Instituto de Ensino Jurídico e Concursos Públicos - JusPODIVM, e Pós-graduanda em Gestão Estratégica em Políticas Públicas pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, Analice. A construção da participação popular na Assembleia Nacional Constituinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4425, 13 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41724. Acesso em: 28 dez. 2024.

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