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Um mar de lama

23/08/2015 às 14:28
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Na "Nova República”, formou-se o que se chama de presidencialismo de cooptação, que esconde o presidencialismo de coalização. Isso se dá de forma descarada, sem qualquer escrúpulo ou hipocrisia que o esconda.

O patrimonialismo, o clientelismo, nefastas práticas que se abraçam um câncer chamado corrupção, formam estruturas doentes no Brasil.

Mesmo com o fim do chamado ciclo militar, com o surgimento do que se chamou de “Nova República”, com um discurso estético de ética e formação moral duvidosa, os donos do poder promoveram o loteamento da coisa pública em prol de seus interesses.

Formou-se o que se chama de presidencialismo de cooptação, que esconde o que chamamos de presidencialismo de coalização.

Isso hoje se dá de forma descarada, sem qualquer escrúpulo, de forma a desnudar qualquer hipocrisia que o esconda.

O PMDB, oriundo do velho MDB, que foi baluarte da defesa das liberdades democráticas, apresenta-se, de algum tempo, desde a “Nova República”, mesmo com um afastamento durante o período da experiência neoliberal, de 1995 a 2003, como o “fiador da governabilidade”.

Vivemos numa República onde passa um “mar de lama”.

É triste lembrar, como lembrou o mais antigo integrante do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em sessão, as palavras proferidas por Carlos Lacerda em 1954, no meio de uma crise institucional, que, sem dúvida, parece tão igual ou até menor do que a de hoje: “Somos um povo honrado governado por ladrões”.

As declarações foram dadas durante o julgamento de um habeas corpus pedido pelo lobista Fernando Baiano, preso na Operação Lava-Jato. O writ foi negado. Aliás, estava ali um dos mais patéticos exemplos da garantia da ordem pública, oferecidos pelo artigo 312 do Código de Processo Penal, para a prisão preventiva, devidamente recepcionada pela Constituição de 1988.

— Este processo de habeas corpus parece revelar um dado absolutamente impressionante e profundamente preocupante, o de que a corrupção impregnou-se no tecido e na intimidade de alguns partidos e instituições estatais, transformando-se em conduta administrativa, degradando a própria dignidade da política, fazendo-a descer ao plano subalterno da delinquência institucional — declarou, indignado.

O certo é que a Lei 12.403/11 manteve os requisitos da prisão preventiva: prova da existência de crime (materialidade);  indícios suficientes de autoria (razoáveis indicações da prova colhida); garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal; garantia da aplicação da lei penal.

O artigo 312 do Código de Processo Penal manteve o instituto da prisão preventiva em sua integridade. Assim, repita-se, existem 3 (três) fatores para sua implementação: a) prova da existência do crime (materialidade); b) indícios suficientes de autoria; c) garantia da ordem pública ou ordem econômica; d) conveniência da instrução criminal; e) garantia da aplicação da lei penal.

Lanço à memória jurisprudência no sentido de que, se é certo que a gravidade do delito, por si só, não basta à decretação da custódia preventiva, não menos exato é que a forma de execução do crime, a conduta do acusado, antes e depois do evento, e outras circunstâncias provoquem a intensa repercussão e clamor público, a trazer abalo à própria garantia da ordem pública (RTJ 123/57; RT 535/257, 625/278, dentre outros).

 O resultado desse loteamento custa caro ao contribuinte, que se torna um verdadeiro idiota, que, sistematicamente, vai às urnas, obrigatoriamente, e, a pretexto de agir de forma soberana, mantém estruturas de poder, que têm seus donos, na linguagem utilizada pelo mestre Raimundo Faoro (Os donos do poder).

Percebam que o acesso ao serviço público deve se dar pela “porta aberta do concurso público”. Essa é a forma correta, ética, de acesso ao cargo público, baseada no critério do mérito. Nada melhor, nada mais justo. Assim dita o artigo 37 da Constituição Federal, Constituição-cidadã, que veio para orientar a vida democrática do Brasil.

Mas, foram cento e trinta mil contratações entre a posse do presidente Lula, no dia primeiro de janeiro de 2003, e os primeiros noventa dias deste segundo mandato da presidente Dilma.

Segundo nos informam, o governo federal contratou 40 novos servidores a cada dia útil, na média dos últimos 13 anos, segundo nos revela o banco de dados do Ministério do Planejamento.

O que é pior: entre Lula e Dilma, a folha de pagamentos da administração federal (excluídas as estatais) inchou na proporção de cinco contratações por hora – uma a cada 12 minutos – em cada jornada de trabalho, durante 3.117 dias úteis.

Proliferam, ao mesmo tempo, remunerações por “confiança” e “gratificação”, sem contar adicionais por “incorporação”, “periculosidade” etc.

Assim são cerca de cem mil as funções comissionadas na estrutura governamental.

É mister lembrar a lição da Ministra Cármen Lúcia Antunes (Princípios Constitucionais da Administração Pública), quando relata uma prática nefasta quando se fala na admissão de partidários políticos, sem nenhum escrúpulo, para servir para aumentar os cofres do partido hegemônico, a partir de contribuições incidentes sobre a sua remuneração.

Não se trata de um discurso neoliberal que nos foge à cultura, tão do gosto da turma da Escola de Chicago e suas continuidades. Trata-se da exposição de um modelo de patrimonialismo patológico, em que a coisa pública se iguala a coisa privada.

O modo de integrar pessoal novo é através do concurso público, salutar prática, bela prática. Esse pessoal entra com compromisso com a sociedade, seja o governo dessa ou daquela vertente.

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A Constituição Federal exige o concurso público de provas ou de provas e títulos para investidura em cargo ou emprego público. Ademais, é mister que haja pertinência nas disciplinas escolhidas para comporem as provas, assim como os títulos, a que se reconhecerá valor com a função a ser exercida.

Por sua vez, Adilson Dallari (Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1990, pág. 36) define concurso público como sendo “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição de conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados”.

A Constituição de 1988 utiliza a palavra investidura para designar o preenchimento de cargo ou emprego público. Como bem disse Celso Ribeiro Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, volume III, tomo III, 1992, pág. 67), não se fala mais, como ocorreu no passado, em primeira investidura, para deixar certo de que se cuida de todas as hipóteses em que se dá a condição de ingresso no quadro de servidores públicos. Assim, a Constituição repudia aquelas modalidades de desvirtuamento da Constituição anterior criadas por práticas administrativas, que acabaram por custar o espírito do preceito. Exemplificou Celso Bastos com o que acontecia com o chamado instituto da transposição, que, com a falsa justificativa de que o beneficiado já servidor público era, guindava-o para novos cargos e funções de muito maior envergadura e vencimentos que não nutriam, contudo, relação funcional com o cargo de origem, com o beneplácito da legalidade, sob o fundamento de que primeira investidura já não era.

A Constituição repudia a prática aqui historiada, onde se vê um palácio dominado por interesses dos donos do poder, tornando ilegítimo o que nele está investido. Isso não está combinado com o povo, de onde se origina o poder constituinte originário, de onde emana a ordem constitucional, que pauta os princípios e regras da Administração.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um mar de lama. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4435, 23 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41958. Acesso em: 26 abr. 2024.

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