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Um caso concreto de desclassificação pelo tribunal do júri

21/08/2015 às 15:33
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Estuda-se o instituto da desclassificação no tribunal do júri, caracterizando-o (conceito, classificação e hipóteses) diante de caso concreto em que Fernanda Régia Cezar foi agredida com uma cotovelada.

Pode ocorrer a desclassificação nas hipóteses em que o Conselho de Sentença, no Tribunal do Júri, analisa crime doloso contra a vida ou tentativa de crime doloso contra a vida.

É conclusiva a lição de MARREY, SILVA FRANCO e STOCO[1]no sentido de que, desclassificada pelo Tribunal do Júri a tentativa de homicídio para lesões corporais, a competência para o julgamento tanto desse crime remanescente (de lesões corporais) quanto dos crimes conexos, como a resistência, cárcere privado etc., desloca-se para o juiz presidente daquele colégio.

Se, não obstante, o magistrado faz prosseguir o julgamento dos crimes de lesões corporais e dos demais conexos pelo Tribunal do Júri, a vulneração do artigo 492, § 2º, do Código de Processo Penal produz a nulidade unicamente dos julgamentos pelo Tribunal do Júri dos crimes que, por via de desclassificação da tentativa de homicídio, deixaram de ser de sua competência para passarem ao Juiz Presidente. Anula-se a parte que foi objeto de decisão, quando não lhe competiria tal agir.

A desclassificação pode ser própria ou imprópria.

Há entendimento de que surge a desclassificação própria, quando o conselho de sentença altera a figura penal descrita na pronúncia para outra, sem, no entanto, indicar qual. Negando o segundo quesito (essas lesões deram causa à morte?), retiram o nexo de causalidade entre a infração descrita e o delito doloso contra a vida. A competência é encaminhada ao juiz presidente que termina por julgar o mérito.

Assim a desclassificação própria dar-se-ia quando os jurados, ao responderem certos quesitos que lhe são formulados, decidem que o fato imputado não caracteriza crime doloso contra a vida, sem, contudo, identificar qual seria o pretenso crime praticado pelo acusado.

Exemplificamos: No caso de uma tentativa de homicídio, os quesitos que, se respondidos afirmativamente, caracterizariam conduta dolosa contra a vida, teriam a seguinte redação:

1.      No dia 12 de fevereiro de 2010, o acusado X, munido de arma de fogo, efetuou disparo contra a vítima Y, causando os ferimentos descritos no Auto de Exame de Corpo Delito, de folhas...?

2.     Assim agindo o acusado X, deu início à execução de um crime de homicídio que somente não se consumou por circunstâncias estranhas a sua vontade, eis que a intervenção de terceiras pessoas impediu que o mesmo prosseguisse atirando?

Por certo, a afirmação do primeiro quesito, com a negativa posterior do segundo quesito, proporcionaria a desclassificação do fato de doloso contra a vida para outro, que pode ser de natureza criminal distinta, ressalvada a dolosa contra a vida, ou, então, poderia ser considerada pelo Juiz-Presidente a inocorrência de injusto penal, seja pela verificação de causas que o excluam ou mesmo de causas exculpantes.

De outro modo, apresenta-se um caso de denúncia, em que se fala em homicídio consumado, quando os jurados infirmassem a ocorrência de conduta praticada com dolo direto ou mesmo com dolo eventual:

a)      No dia 12 de fevereiro de 2010, o acusado X, munido de um revólver, canivete, desferiu um golpe contra a vítima Y, causando-lhe os ferimentos descritos no Auto de Exame de Corpo Delito, folhas...?

b)     Esses ferimentos, por sua natureza, foram causa da morte da vítima?

c)      O acusado, com essa sua conduta, quis a morte da vítima?

d)     O acusado, com essa conduta, assumiu o risco de matar a vítima Y?

Se houver resposta negativa aos dois últimos quesitos, após resposta positiva nos dois primeiros quesitos, caracterizaria desclassificação do fato imputado de doloso contra a vida para outro de natureza diversa, não dolosa contra a vida, podendo ser um fato justificado ou ainda inculpável.

Com a desclassificação própria, o julgamento sai da competência do  Conselho de Sentença, uma vez que não se está mais diante de um crime doloso contra a vida, à luz do artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição Federal de 1988.

A desclassificação imprópria acontece quando os jurados afirmam os dois primeiros quesitos, mas, por conta da violação de qualquer outro – podendo ser ou não ser tese defensiva –, terminam concluindo que não houve dolo, mas, crime culposo contra a vida.

A desclassificação própria pode ocorrer em dois casos: a) nega-se o dolo, ainda que eventual; b) nega-se a tentativa (artigo 14, II, do CP), neste último caso, voltando ao segundo quesito. Caberá ao Juiz-Presidente proferir decisão, pois o Tribunal do Júri se declarou incompetente para tanto, quando negou a presença de um delito doloso contra a vida, tendo remanescido figura delituosa a ser apreciada.

A desclassificação imprópria ocorre quando o Júri desclassifica e também condena. Pode ocorrer nos seguintes casos:

a)      Decorre de excesso culposo nas descriminantes. É a culpa imprópria, onde a ação é dolosa, mas o excesso é culposo. A desclassificação ocorre após a condenação, pois, quando reconhecido o excesso, os quesitos de autoria, materialidade e dolo já foram votados positivamente;

b)      A segunda situação é a do reconhecimento da tese defensiva do homicídio culposo, cuja aplicação não passa isenta de rejeição e críticas;

c)     A terceira situação decorreria do reconhecimento da participação dolosa distinta no concurso de crimes;

d)      Outra hipótese vem a acontecer quando há divergência sobre a tipificação do delito, como é o caso da denunciada e pronunciada por homicídio praticado contra o próprio filho, quando a defesa sustenta que o fato foi praticado sob a influência do estado puerperal, durante ou logo após o parto, de forma a reconhecer um crime de infanticídio. 

O reconhecimento do excesso culposo não deve ser visto ou confundido com a desclassificação do homicídio doloso para o culposo, que seria caso de desclassificação própria, quando os jurados não julgarão o mérito do fato, limitando-se a afastar a forma dolosa, como já visto acima.

Enquanto a desclassificação própria é o reconhecimento da existência de uma infração de competência do juiz singular, no lugar da anteriormente existente, de competência do júri, o que determina seja o julgamento atribuído ao juiz presidente; na desclassificação imprópria há o reconhecimento da existência de outro crime que não necessariamente doloso contra a vida – de competência do júri – porém, quando já há condenação do acusado por este delito, cabendo, agora, ao Juiz-Presidente não mais decidir o mérito – que já está decidido – mas simplesmente fixar a pena nos limites da nova infração reconhecida pelo Conselho de Sentença.

É uma desclassificação com uma existente condenação, que pode parecer paradoxal, que, por isso mesmo, é chamada de imprópria, por ser impropriamente uma desclassificação.

Na desclassificação imprópria, a tese sustentada pela defesa, que pode levar a essa desclassificação, é quesitada após o quesito sobre "se o acusado deve ser condenado ou absolvido", e, por isso mesmo, no momento em que o réu já está condenado pelo Conselho de Sentença.

Assim, enquanto a desclassificação própria é a desclassificação pura e simples de uma infração da competência do júri para outra de competência do juiz singular, sem julgamento do mérito, o que importaria em remeter esse julgamento ao juiz presidente; a desclassificação imprópria é a desclassificação do delito contra a vida constante da denúncia para outro que não é da competência do júri, porém, já com a condenação do acusado por esse delito, cabendo ao magistrado simplesmente fixar a pena nos limites da nova tipificação, já como reconhecida pelo Conselho de Sentença. É a desclassificação com condenação.

Herminio Alberto Marques Porto[2] ensina ocorrer a desclassificação própria quando o Conselho de Sentença altera a figura penal descrita na pronúncia, para outra, sem,  no entanto, indicar qual. É o que se dá, por exemplo, quando há a negativa ao segundo quesito, no caso de homicídio consumado. Afinal, negando o primeiro quesito – no que diz respeito à materialidade do fato – estão os jurados adentrando o mérito da infração penal e absolvendo o acusado. Ocorre que, negando o segundo quesito (essas lesões deram causa a morte da vítima?), não há mais nexo de causalidade estabelecido entre a infração descrita no primeiro quesito e o delito doloso contra a vida, o que asseguraria a competência do júri para julgar o caso. Nessa hipótese aplica-se, de forma integral, o disposto no parágrafo primeiro do artigo 492 do CPP, de modo que a competência para julgar a infração desloca-se para o juiz-presidente, que poderá dar a ela a configuração que bem entender e até mesmo absolver o réu, por entender não provada a existência do crime. Havendo crime conexo, todos serão julgados pelo magistrado togado, presidente do júri. Por sua vez, a desclassificação imprópria acontece quando os jurados afirmam os dois primeiros quesitos, mas, por conta da votação de outro qualquer – podendo ser ou não tese defensiva – terminam concluindo que não houve dolo, mas crime culposo contra a vida. Imagine-se ter o defensor sustentado em plenário que o réu, de fato, disparou sua arma contra a vítima, causando-lhe a morte, mas o fez por imprudência, jamais dolosamente. O magistrado incluirá um outro quesito, indagando ao Conselho de Sentença se a morte adveio da imprudência com que agiu o acusado. Afirmando-se este quesito, terá havido a desclassificação imprópria que, para Marques Porto, vincula o magistrado presidente a condenar o réu como incurso no artigo 121, § 3º, do Código Penal, bem como faz prosseguir a votação no tocante aos demais quesitos pertinentes.

Em síntese, havendo a desclassificação própria ou imprópria, deve o juiz dar por encerrada a votação, passando a decidir o caso sem qualquer vinculação inclusive no tocante aos crimes conexos.

A tese, necessariamente sustentada pela defesa, que pode levar à desclassificação imprópria, deve ser formulada sempre após o quesito previsto no inciso III do artigo 483 e, naturalmente, quando o réu for condenado pelo Conselho de Sentença, com a resposta negativa de mais de três jurados ao quesito defensivo do mérito.

Sintetizando, como situações exemplificativas de desclassificação imprópria, tem-se: a participação dolosamente distinta; a do excesso em causa de exclusão da ilicitude; a da pronúncia por crime consumado, com a defesa arguindo tentativa, porque o resultado morte decorreu de causa diversa. Tal se dá quando a defesa aduz que o delito não teria passado de tentativa, tendo o resultado ocorrido de causa estranha à ação do acusado. Seria feita a seguinte pergunta (quesito): Assim agindo, o réu apenas tentou matar a vítima? Respondido, de forma negativa, o quesito, o acusado continua respondendo pelo homicídio; se for respondido de forma positiva, o acusado passar a ser julgado por tentativa de homicídio.

Isso porque, se houver desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, do presidente do Tribunal do Júri, caberá a ele proferir sentença em seguida, aplicando-se, quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela lei como infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto no artigo 69 e seguintes da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 (artigo 492, parágrafo primeiro).

Em caso de desclassificação em que o crime conexo não seja doloso contra a vida, será julgado pelo juiz presidente do Tribunal do Júri (artigo 492, parágrafo segundo).

Não subsiste mais a competência do Tribunal do Júri para prosseguir no julgamento caso haja, de uma forma ou de outra, a desclassificação do delito, seja por negativa do quesito relativo ao nexo causal, seja por afirmação de um outro, que incluiria o elemento subjetivo culpa.

Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no HC 125.069 – SP, Informativo 462, que, ainda que haja hipótese de desclassificação, o Juiz-Presidente não pode julgar crime de latrocínio se na sentença de pronúncia não se mencionou o fato atinente à subtração, isso porque violaria os princípios do contraditório e da ampla defesa.

A sessão do julgamento será objeto de ata, a teor do artigo 494 do Código de Processo Penal, descrevendo, de forma minuciosa as ocorrências (artigo 495).

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Vamos a hipótese de um caso concreto.

Há algum tempo houve indignação nas redes sociais após um homem ter agredido uma mulher com uma cotovelada.

O autor do crime foi condenado, no dia 18 de agosto do corrente, a cinco anos de prisão, em regime semiaberto, por ter agredido a auxiliar de produção Fernanda Régia Cezar, 31, em São Roque (a 66 km de São Paulo). O crime aconteceu no dia 16 de agosto do ano passado.

Apesar do pedido da Promotoria para enquadrá-lo por tentativa de homicídio, o júri acatou a tese da defesa, que alegou lesão corporal grave. A pena foi agravada pelo fato do crime ter sido cometido contra uma mulher.

Disse Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, volume I, pág. 149) que “o resultado mais grave é imputado ao agente em vista de seu propósito de causar ofensa física à vítima e da evidente possibilidade de resultar uma lesão mais grave de qualquer violência pessoal. Não se trata, todavia, de responsabilidade objetiva ou pela simples causação material do evento mais grave. A imprevisibilidade do resultado ou o caso fortuito excluem a configuração da lesão corporal grave. O agente responderia, nesses casos, pela lesão simples”.

A duração da enfermidade ou da incapacidade para o trabalho é critério antigo para  o reconhecimento da gravidade das lesões. Deve haver a incapacidade física ou psíquica para as ocupações habituais e não somente para o trabalho. Não se atende apenas à atividade econômica, na lição de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume V, pág. 315). Mesma a incapacidade relativa (isto é, a impossibilidade de executar algumas de suas ocupações habituais, mas não todas) configura a agravante. Como disse Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, parte especial, 7ª edição, pág. 133), o fato de ter tido alta não significa que a incapacidade tenha cessado. Alta quer dizer apenas licença para deixar o hospital (RF 169/432). Porém, a verificação de que ocorre incapacidade para as ocupações habituais tem de ser atual, logo que decorra o prazo de trinta dias, a contar da data do crime.

Entenda-se que, após sofrer uma cotovelada do homem, a vítima ficou internada na UTI por quinze dias, devido a um coágulo na cabeça.

Sem dúvida, deve ter sido levado em conta agravante na conduta do agente.

É tradição do direito penal brasileiro a previsão casuística de circunstâncias agravantes de caráter geral aplicáveis a todos os crimes ou a grupo de crimes. Há ainda as circunstâncias agravantes especiais, aplicáveis a determinados crimes e previstas na parte especial do Código Penal.

Estamos diante de agravante especial, de caráter pessoal, envolvendo motivação e fim de agir. Dir-se-á, aliás, que já se tem, dentre essas agravantes para o homicídio qualificado, o motivo torpe, o motivo fútil.

Ora, o motivo fútil ou torpe trata do crime cometido por motivo fútil, repugnante, idiota, torpe, sem verdadeira necessidade de ser cometido. E aquele onde o agente revela falta de sentimentos ao cometê-lo. Fútil é o motivo de somenos, que é destituído de qualquer importância, que indica uma desproporção exagerada com relação ao delito praticado. É o motivo insignificante, mesquinho. Já se entendeu assim na conduta de quem agride a esposa que deixou queimar o feijão do almoço. Torpe é motivo abjeto, indigno, imoral, que suscita repugnância, que é próprio de personalidades antissociais.

O crime historiado é reflexo de uma sociedade brasileira onde a violência é a tônica, onde, até mesmo em  manifestações por alguns direitos, os envolvidos atuam como se estivessem no âmbito de uma torcida organizada, preparada para tudo, agredindo moral e fisicamente o seu contendor. O Brasil, nesse aspecto, parece ser um paciente crônico. 

A decisão historiada acabou sendo uma vitória para a defesa, que teve apoiada a tese da prática do crime de lesão corporal grave.


Notas

[1] MARREY, Adriano e outros. Teoria e Prática do júri, São Paulo, RT, 4ª edição, pág.

[2] MARQUES Porto. Hermínio Alberto. Júri, pág. 140 e 141. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um caso concreto de desclassificação pelo tribunal do júri . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4433, 21 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41961. Acesso em: 26 abr. 2024.

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