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Dos contratos de arrendamento e parceria agrícola: aspectos gerais e efeitos práticos

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08/11/2018 às 08:00
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A observância do direito agrário como ramo autônomo e dos contrato de arrendamento e parceria como contratos típicos deste ramo possibilita aos operadores a análise critica dos efeitos práticos destes instrumentos no mundo jurídico e fático.

RESUMO: Com o reconhecimento Constitucional da Autonomia do Direito Agrário, bem como a entrada em vigor do Estatuto da Terra e do Decreto n.º 59.566/66, fez-se necessário, ao operadores do Direito, uma atenção especial no que diz respeito aos Contratos Típicos do Direito Agrário, que não poderiam  mais ser vislumbrados através da ótica Civil. Esta mudança de paradigma representou  não só um avanço na mitigação dos conflitos no campo como também um fortalecimento do Direito Agrário como ramo autônomo. Ao mesmo tempo, quando se observa a aplicação prática destes contratos, verifica-se que o quadro atual do Brasil não é mais aquele à época do Estatuto da Terra, fazendo-se necessário o estudo dos seus efeitos práticos e das formas de contenção de riscos e manutenção de equilíbrio contratual e segurança jurídica para as partes.

PALAVRAS-CHAVE: Estatuto da Terra; Direito Agrário; Autonomia; Contratos Típicos; Arrendamento; Parceria; Registro; Efeitos práticos.

SUMÁRIO:1. Direito Agrário no Brasil; 2. A Autonomia do Direito Agrário; 2.1. Estatuto da Terra; 3.Função Social da Propriedade Rural; 4. Contratos Típicos do Direito Agrário; 4.1. Aspectos Gerais dos Contratos Agrários; 4.1.2. Classificação dos Contratos Agrários; 4.2. Do Arrendamento; 4.3 Da Parceria Rural; 4.4 Diferenças essenciais entre os Contratos de Arrendamento e Parceria; 5. Do Contrato de Comodato; 6.Conclusão; 7. Referências bibliográficas.


1. DIREITO AGRÁRIO NO BRASIL

Apesar de uma parcela considerável do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro ser fruto do Agronegócio e o Brasil, consequentemente, ser um dos maiores exportadores de Commodities Agrícolas, pouco se estuda o Direito Agrário em si, bem como mal se reconhece a sua autonomia diante das outras esferas do Direito, dentre elas o Direito Civil.

O Brasil é um país agrário por excelência, beneficiado por suas terras férteis e sua grande extensão, e apesar de atualmente enfrentar grandes entreves na comercialização dos grãos devido à falta de infraestrutura das rodovias e precariedade dos portos, o país ainda consegue se destacar no mercado futuro e ser altamente competitivo em comparação com países como os EUA.

Diante disto, sendo o Direito um conjunto de normas que regulam a vida em sociedade, não poderia este ficar alheio à situação socioeconômica deste país, bem como às demandas que esta situação trazia consigo.As mudanças que envolveram a questão Agrária do país, que começou sua história nas Capitanias Hereditárias e no sistema das sesmarias, foram extremamente conflituosas, pois, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), foi à partir deste período que nasceu o que hoje chamamos de Latifúndio. Não bastasse isso, no campo do Direito, os conceitos e percepções sobre o que viria a ser posse e propriedade sofreram grandes mudanças.

Em 1850, na época do Brasil Império, foi editada a Lei das Terras (Lei 601 de 18.09.1850) a fim de tentar mitigar os conflitos ocorridos entre os proprietários de terras e grileiros. No entanto, notou-se que, na prática, a Lei reforçou o poder dos latifundiários frente aos pequenos produtores, uma vez em que previa que a aquisição só se dava mediante o pagamento em dinheiro, o que fez com que o país, por muito tempo, tivesse o poder político concentrado nas mãos dos grandes latifundiários e coronéis, sendo que somente em meados dos anos 60, com o advento da Industrialização no Brasil, que a questão fundiária passou a ser amplamente debatida pela sociedade.

Por fim, foi somente com a edição do Estatuto da Terra, Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964, que podemos considerar que o Direito Agrário ganhou autonomia e ainda, em consequência desta Lei, veio à tona a questão da Reforma Agrária no país e com ela uma série de medidas de melhoria na distribuição da terra.Várias foram as questões trazidas pelo Estatuto da Terra. No entanto, a tipificação de Contratos Agrários chama a atenção mostrando-se, por tal motivo, um importante objeto de estudo e reflexão e estes serão o foco principal deste artigo.


2. A AUTONOMIA DO DIREITO AGRÁRIO

O Direito Agrário possui determinados princípios próprios que o diferenciam dos demais ramos do Direito. Tais princípios fornecem a este ramo uma autonomia denominada de científica, reforçando, sobretudo, de que não se trata de um sub-ramo do Direito Civil ou Empresarial, como alguns doutrinadores insistem em defender, mas sim de uma Ciência Jurídica própria criada para entender e interferir nas relações do ser humano com o campo e com o meio ambiente, advindas, sobretudo, do modelo capitalista de produção.

Historicamente, o marco da autonomia do Direito Agrário foi a emenda Constitucional n.º 10/64 que além de inovar prevendo a possibilidade de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, dispôs ainda que caberia privativamente à União legislar sobre Direito Agrário, deixando expressa a autonomia legislativa deste ramo que passou a disciplinar as diversas questões sociais e econômicas decorrentes do exercício das atividades agrárias.Tal emenda veio de encontro com o anseio da população por uma melhor distribuição da Terra, que agora, deveria cumprir uma finalidade não só econômica como social.

Era a luta pelo direito da terra, a qual crescia em todos os recantos do País, bem como a necessidade da política econômica do País, que se voltava para melhor produção e a implantação do agronegócio, já que todo sistema rural de produtividade era obsoleto, precário e ineficiente, que reclamava a mudança, não só no interesse público do Estado, como também, no interesse social, com muita terra em mãos de poucas pessoas. (BORGES, 2014, p.32)

A autonomia deste ramo do Direito pôde ser melhor observada com o advento do Estatuto da Terra, o qual trouxe normas que regulamentavam as relações Agrárias de forma mais ampla e eficiente, pois como era de se esperar, as normas do Direito Civil existentes à época não eram suficientes para regular a situação agrária do país, ainda que o Código Civil de 1916 tenha trazido minguados dispositivos relacionados ao Contrato de Arrendamento e Parceria.

Atualmente, a autonomia legislativa do Direito Agrário está prevista no artigo 22, I da atual Constituição Federal que por sua vez, nas palavras do professor Antonio Moura Borges, “absolveu si et in quantum na parte que tratou da Reforma e da Política Agrária as normas constantes do Estatuto da Terra”.

Assim sendo, por todas as características que lhe são peculiares, vislumbra-se no Direito Agrário, o Direito Social, que rompe a dicotomia da Ciência Jurídica de Direito Público e Direito Privado, na visão de Antônio Moura Borges (2014, p.32). E não poderia ser diferente, uma vez em que o objeto da Edição da Lei foi a propriedade rural e o agronegócio visando a exploração racional e adequada da terra com o objetivo de que a mesma atinja o seu fim social, respeitando, acima de tudo, os recursos naturais, o meio ambiente e os Direitos Sociais.

O Direito Agrário andou com dificuldade diante de embates jurídicos para conscientizar a Sociedade Brasileira do verdadeiro direito e natureza da propriedade rural, inclusive, no seu aspecto de real de bem jurídico de função social e, instrumento de garantia alimentar, ou como simplesmente disse Arthur E.S. Rios na sua monografia Direito Agrário, ed. 1974, fls.19, quando afirmou que: Direito Agrário Para Evitar a Fome. (BORGES, 2014, p.33)

A Constituição Federal de 1988 procurou ainda conceder ao Direito Agrário uma autonomia judiciária, quando, em seu artigo 126, previa expressamente que “Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias.”. No entanto, essas Varas especializadas ainda não existem em todo o País e nos Tribunais de Justiça onde as mesmas inexistem, cabe ao Juiz da Vara Cível Comum julgar os processos advindos de litígios agrários, o que para muitos estudiosos da área não se mostra como uma alternativa satisfatória.

2.1. ESTATUTO DA TERRA

O Estatuto da Terra surgiu, não só como uma resposta às aclamações da população rural mais desfavorecida (trabalhadores em geral, arrendatários e parceiros outorgados), mas, sobretudo como um meio de viabilizar a expansão do capitalismo no campo.

Podemos dizer que, a grosso modo, depois da implementação do mesmo e do avanço tecnológico ocorrido no Brasil, o país  passou de grande importador de gêneros alimentícios a principal exportador. Assim sendo, é facilmente visível que tal Lei, também denominada de Código Rural, possui um cunho não só social, mas principalmente econômico.A principal crítica de muitos estudiosos com relação à Lei é no sentido de que somente o seu viés econômico conseguiu gerar efeitos na sociedade, ficando o Interesse Social, apoiado principalmente na questão da Reforma Agrária, como um segundo plano de lenta e ineficaz aplicação.

Há ainda quem defenda que o contexto atual do campo não é mais aquele existente à época da promulgação da Lei e que esta encontra-se defasada atualmente, tendo em vista que se de alguma forma foi considerado como hipossuficiente a pessoa do arrendatário e do parceiro outorgado, hoje em dia, diante da exploração da terra por grandes corporações e empresários rurais, percebe-se que em grande parte, a hipossuficiência encontra-se na figura do proprietário da terra.Diante desses fatores, pode-se observar que, da edição do Estatuto da Terra até os tempos atuais, o Direito Agrário vem demonstrando a sua importância enquanto ciência autônoma dentro do cenário de um país altamente agrário como o Brasil.


3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL

Não há um conceito pacífico do que venha a ser propriedade, mas a mesma pode ser entendida como o direito de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa (bem móvel ou imóvel) e representa um dos mais amplos Direitos Reais. Dada a sua amplitude e consequências no mundo fático, a propriedade sofre certas limitações, como bem assevera a professora Maria Helena Diniz:

Ao lado das restrições voluntárias ao direito de propriedade, como a superfície, as servidões, o usufruto ou as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade ou incomunicabilidade, há limitações oriundas da própria natureza do direito de propriedade ou imposição legal [...]; restrição relativa aos direitos de vizinhança etc.[...] (DINIZ, 2014, p.127)

De todas as limitações oriundas da própria natureza do direito de propriedade, a que tem maior relevância é, sem sombra de dúvidas, a função social da propriedade, isto porque:

A função social da propriedade é imprescindível para que se tenha um mínimo de condições para a convivência social. A Constituição Federal, no art. 5º, XXII, garante o direito de propriedade, mas requer, como vimos, que ele seja exercido atendendo a sua função social. Com isso, a função social da propriedade a vincula não só à produtividade do bem, como também aos reclamos da justiça social, visto que deve ser exercida em prol da coletividade.(DINIZ, 2014, p.127)

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No que diz respeito ao Campo, a função social da propriedade rural foi positivada, de forma mais ampla, no Estatuto da Terra, que a trazia como um poder-dever do proprietário que se estendia a dois aspectos principais: servir o interesse econômico do dono e satisfazer o fim social ao qual ela se destina.

Desta forma, a propriedade rural ficou condicionada pela função social contida na Lei 4.504/64, a qual só estaria sendo integralmente desempenhada quando o proprietário simultaneamente: a) favorecesse o bem-estar dos proprietários e trabalhadores e suas famílias; b) mantivesse da produtividade da terra num nível satisfatório; c) assegurasse a conservação dos recursos naturais; d) observasse as disposições legais que regulam as relações de trabalho entre os proprietários das terras e os que a cultivam.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a função social da propriedade rural sofreu uma constitucionalização, tornando-se então um direito consubstanciado no poder-dever por causa do bem estar social (BORGES, 2014):

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Como forma de sanção, foi estabelecido que, o proprietário que violar quaisquer dos requisitos constantes no artigo supracitado estará passível de sofrer desapropriação, pois não estará cumprindo a função social de sua propriedade, abrindo caminho para o que então chamam de “Democratização da propriedade rural” que se dá através da Reforma Agrária, também prevista no mesmo ordenamento.

Diante desses fatores, podemos dizer que a questão da Função social da propriedade rural é um pouco mais delicada que a urbana, ainda que neste caso também existam conflitos.  No caso do campo, por conta da questão de Reforma Agrária, muito se questiona sobre quem, realmente, pode cumprir a função social da propriedade. Segundo o professor Antônio Moura Borges, esta pode ser cumprida tanto pelo proprietário quanto pelo possuidor, que neste caso podemos considerar que seja o Arrendatário, Comodatário, Parceiro-Outorgado ou ainda quem nela exerça a posse e porventura o animus domini – a fim de usucapi-la.

No entanto, vendo o quadro atual no qual o Brasil se encontra, ao admitirmos que a função social da propriedade possa ser cumprida por possuidores através de contratos rurais de concessão temporária de uso da terra (entendendo que estes manterão o desempenho econômico e produtivo do imóvel para interesse próprio), nos encontramos diante de um dilema. Isto porque, o imóvel estará fora dos critérios de imóveis passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária e justa distribuição da terra. Mas ao mesmo tempo, encontram-se como um impecílio ao acesso a terra, pois o proprietário poderá continuar com o monopólio da terra com a finalidade única de ceder o seu uso para exploração de outrem, havendo, então, um conflito entre a função social e a Justiça Social, pois neste caso, talvez o cumprimento da função social não implique, necessariamente, em um bem para a coletividade.

O contexto legal que se insere a propriedade não justifica um empreendimento rural que, mesmo possuindo modernos instrumentos tecnológicos ou altos índices de produtividade e lucro, negue direitos trabalhistas ou explore o trabalho escravo, comprometa os recursos hídricos e a biodiversidade, não crie emprego ou ocupação produtiva e não contribua para a soberania alimentar do povo. ¹

É preciso ter em mente que sempre que se fala em função social da propriedade, fala-se de uma convergência entre o direito pessoal e o coletivo, por isso tal princípio configura uma limitação ao direito em tela. Nenhum direito, em tese, deveria ser exercido em detrimento dos outros direitos.

Percebe-se que o Estatuto da Terra, de certa forma, se contradiz, pois ao mesmo tempo em que traz dispositivos que visam assegurar o acesso à Terra, por outro, cria mecanismos que restringem o acesso à mesma. Desta forma, questiona-se se o Brasil realmente tem condições e interesse em efetuar a Reforma Agrária.

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Sobre o autor
Ticiane Vitória Figueirêdo

Advogada do escritório Paradeda Castro Duarte Advogados<br>Bacharel em Direito pela Universidade São Francisco<br>Especialista em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIRÊDO, Ticiane Vitória. Dos contratos de arrendamento e parceria agrícola: aspectos gerais e efeitos práticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5608, 8 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41971. Acesso em: 28 mar. 2024.

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