Continuaremos a enxugar gelo ou mudaremos de postura na aplicação dos precedentes?

20/08/2015 às 15:55
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Crítica a oscilação jurisprudencial.

De forma diuturna, em termos práticos, aquele que atua no ramo do direito e o que sente os efeitos de uma prestação jurisdicional[1] concluem que a segurança jurídica é um mito.

Neste gênero eleito (segurança jurídica) temos como uma espécie, a expectativa de se obter decisões similares quando um tema já se encontra pacificado pelos Tribunais Superiores.

Nada obstante ser possível materializar a igualdade pela via processual individual, tem-se, no entanto, que através da atuação coletiva prestigia-se a otimização mais efetiva e racional do próprio Poder Judicante, uma vez que a molecularização da demanda impede a propositura de infinitas ações individuais (=atomização da tutela) propalando o mesmo tema.

Evita-se, assim, decisões contraditórias, sempre incompreensíveis para os não iniciados na jurisprudência.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal chancelou a possibilidade da Defensoria Pública poder (Adin nº 3943), dentro dos vários instrumentos processuais com efeito coletivo, fazer uso da ação civil pública.

De outro lado, sobre o crivo da especificidade temática, o Superior Tribunal de Justiça ao analisar a possibilidade da Defensoria Pública manejar a referida actio em prol dos consumidores de energia elétrica deixou assente como leading case o seguinte:

“LEGITIMIDADE. DEFENSORIA PÚBLICA. AÇÃO COLETIVA. A TURMA, AO PROSSEGUIR O JULGAMENTO, ENTENDEU QUE A DEFENSORIA PÚBLICA TEM LEGITIMIDADE PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL COLETIVA EM BENEFÍCIO DOS CONSUMIDORES DE ENERGIA ELÉTRICA, CONFORME DISPÕE O ART. 5º, II, DA LEI N. 7.347/1985, COM REDAÇÃO DADA PELA LEI N. 11.448/2007. PRECEDENTE CITADO: RESP 555.111-RJ, DJ 18/12/2006”( RESP 912.849-RS, REL. MIN. JOSÉ DELGADO, JULGADO EM 26/2/2.008 ).

O Tribunal de Justiça Mineiro, avaliando situação envolvendo a Companhia Energética Mineira ( CEMIG ) e a Defensoria Pública Mineira também decidiu no mesmo sentido, senão vejamos:

“APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - CEMIG - DÉBITO - PRETÉRITO - SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA - IMPOSSIBILIDADE.- Com advento da Lei 11.448/2007, que alterou a Lei 7.347/85, restou sedimentado a legitimidade ativa da Defensoria para propositura da Ação Civil Pública.- A existência de débito pretérito, relativo ao fornecimento de energia elétrica, não pode servir como fundamento para a manutenção do corte do serviço na residência do usuário, tampouco como forma de coação para forçá-lo ao pagamento, devendo, em sendo o caso, o aludido débito ser cobrado pelas vias ordinárias cabíveis
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0637.10.007176-9/002 - COMARCA DE SÃO LOURENÇO - APELANTE (S): CEMIG DISTRIBUIÇÃO S/A - APELADO (A)(S): DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS 

Extrai-se da fundamentação do Acórdão a seguinte análise sobre a legitimidade, verbis:


“Com advento da Lei 11.448/2007, que alterou a Lei 7.347/85, restou sedimentado a legitimidade ativa da Defensoria para propositura da Ação Civil Pública, que por oportuno transcrevo:

‘Art. 1o Esta Lei altera o art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública, legitimando para a sua propositura a Defensoria Pública. 

‘Art. 2o O art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação: 

"Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: 

I - o Ministério Público; 

II - a Defensoria Pública; 

(...) Assim, considerando que, à época da propositura da ação, a citada legislação já se encontrava em vigor, nítida é a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura da presente demanda. 

Dito isso, não se pode restringir a esfera de atuação da Defensoria Pública por meio da Ação Civil Pública, sob pena de se negar vigência ao texto constitucional, que dispõe, em seu artigo 134, que referido Órgão"é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. LXXIV.". 

Sendo assim, patente é, portanto, a legitimidade da Defensoria Pública para propor a presente demanda, com vistas à defesa dos direitos dos consumidores de energia elétrica, bem como adequada a via eleita. 

Neste sentido, cito jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça: 

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. DEFENSORIA PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA. ART. 
II, DA LEI Nº 7.347/1985 (REDAÇÃO DA LEI Nº 11.448/2007). PRECEDENTE. 1. Recursos especiais contra acórdão que entendeu pela legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ação civil coletiva de interesse coletivo dos consumidores.2. Este Superior Tribunal de Justiça vem-se posicionando no sentido de que, nos termos do art. II, da Lei nº 7.347/85 (com a redação dada pela Lei nº 11.448/07), a Defensoria Pública tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar em ações civis coletivas que buscam auferir responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências.3. Recursos especiais não-providos. (REsp 912849-RS, Relator Ministro José Delgado, DJ 26/02/08). 

Portanto, de forma aparente a questão parecia estar pacificada no Judiciário Mineiro. Certo? Infelizmente não, porquanto ao analisar Recurso de Apelação nº 0742395-46.2009.8.13.0637 envolvendo as mesmas partes, da mesma comarca de origem, mas com pedido distinto, o aludido
Tribunal manteve a decisão singular que contraria a sua própria jurisprudência e a do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal (em sede de Adin), criando, assim, manifesta insegurança jurídica com ares de declinação da efetiva prestação jurisdicional esperada. Preferiu-se o non liquet!

O Ministro CELSO DE MELLO, do Supremo Tribunal Federal, na ADI 3.643/RJ, já acentuou que a questão da Defensoria Pública não pode nem deve ser tratada de maneira inconseqüente pelo Poder Público”, mas a questão vai além de um desabafo Institucional, afinal ‘onde há a mesma razão há o mesmo direito’.

A falta da segurança jurídica por ofensa a igualdade na prestação jurisdicional cotidiana cria um maior volume de trabalho e vilipendia toda a lógica que se espera do sistema, de forma a se apresentar como manifesto venire contra factum proprium.

Frustra-se, de forma antecipada até mesmo a mudança cultural que se espera diante do NCPC, que acentua nos seus arts. 926 e 927 o seguinte:

“Art. 926.  Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.

§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

§ 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo.

§ 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

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§ 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.”

Calhar decisão distinta de tais precedentes resulta em manifesto descrédito do Poder Judiciário como um todo, até por que, mutatis- mutandis, vem o próprio STJ enfatizando o seguinte (onde se lê "os integrantes da Corte" entenda-se, também, Juiz e/ou Desembargador):

PROCESSUAL – STJ - JURISPRUDÊNCIA - NECESSIDADE DE QUE SEJA OBSERVADA. O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la. (AgRg nos EREsp 228.432/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/02/2002, DJ 18/03/2002, p. 163).

Os ingleses dizem que os jurisdicionados não podem ser tratados “como cães, que só descobrem que algo é proibido quando o bastão toca seus focinhos” (BENTHAM citado por R. C. CAENEGEM, Judges, Legislators & Professors, p. 161).

Em verdade, tal situação noticiada exigirá novos Recursos aos Tribunais Superiores para que digam o resultado óbvio esperado e sinalizado por eles, qual seja, da possibilidade do uso de tal instrumento processual coletivo.

Perde o Judiciário, por sua primeira e segunda instância, a possibilidade de serem efetivos, já que poderia - a segunda instância - diante do princípio da causa madura julgar a questão de fundo ( art. 515, §3º, do CPC), preferindo, de forma lamentável, ser rebelde a tese própria e do STF e STJ, abortando o trâmite processual e sem apontar o porquê de ter se afastado do meandro decisório esperado.

Enquanto isso, já que o mérito da quaestio não é solucionado, perpetua-se mais prejuízos aos consumidores usuários do serviço de energia, seja no campo psicológico, como o estresse, o aborrecimento, dentre outros, ou seja, no campo material, onde se verifica cobranças abusivas por supostas fraude ao medidor.

O Novo Código de Processo Civil não mudará em nada a realidade jurídica, porquanto a real necessidade do sistema é a coerência das decisões e a tônica de se garantir a primazia da decisão de mérito, isto é, o imperativo da solução do problema posto em debate e não do processo em si.

Conclui-se, assim, que continuaremos a enxugar gelo (ficar manejando processos individuais que se repetem e parecem não ter fim), já que os precedentes não são seguidos, de maneira a fazer a fala de que o atuante no ramo do direito deve saber,ao pé da letra, a conjugação do verbo enxugar.

Vamos lá, eu enxugo (autor), tu enxugas (réu), ele enxuga (juiz), nos enxugamos (tribunal), vós enxugais (STJ) e eles enxugam (STF – resolvendo a situação).


[1] (v.g. cliente, usuário dos serviços da Defensoria Pública, cidadãos atendidos pelo Ministério Públicos e os que exercitam a própria capacidade postulatória)

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Sobre o autor
Roger Feichas

Atualmente é Defensor Público no Estado de Minas Gerais. Pós Graduado em Direito Público. Autor do Livro Mandado de Segurança - da teoria à prática - em co-autoria com Sérgio Henrique Salvador. Editora LTR - 2014<br>

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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