Síntese.
Está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal o RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 656.558/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, com repercussão geral reconhecida pela Corte (tema 309), verbis:
“1.TEMA
Trata-se de recurso extraordinário, com base no art. 102, III, 'a', da CF/88, interposto contra acórdão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça que deu parcial provimento ao Recurso Especial da recorrente, em acórdão assim ementado:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SERVIÇO DE ADVOCACIA. CONTRATAÇÃO COM DISPENSA DE LICITAÇÃO. VIOLAÇÃO À LEI DE LICITAÇÕES (LEI 8.666/93, ARTS. 3º, 13 E 25) E À LEI DE IMPROBIDADE (LEI 8.429/92, ART. 11). EXECUÇÃO DOS SERVIÇOS CONTRATADOS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. APLICAÇÃO DE MULTA CIVIL EM PATAMAR MÍNIMO.
1. A contratação dos serviços descritos no art. 13 da Lei 8.666/93 sem licitação pressupõe que sejam de natureza singular, com profissionais de notória especialização. 2. A contratação de escritório de advocacia quando ausente a singularidade do objeto contatado e a notória especialização do prestador configura patente ilegalidade, enquadrando-se no conceito de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, caput, e inciso I, que independe de dano ao erário ou de dolo ou culpa do agente. 3. A multa civil, que não ostenta feição indenizatória, é perfeitamente compatível com os atos de improbidade tipificados no art. 11, da Lei 8.429/92 (lesão aos princípios administrativos), independentemente de dano ao erário, dolo ou culpa do agente. 4. Patente a ilegalidade da contratação, impõe-se a nulidade do contrato celebrado, e, em razão da ausência de dano ao erário com a efetiva prestação dos serviços de advocacia contratados, deve ser aplicada apenas a multa civil reduzida a patamar mínimo (10% do valor do contrato, atualizado desde a assinatura). 5. Recurso especial provido em parte.'
2. Alega a recorrente, em síntese, que: 1) a Lei de Improbidade Administrativa foi editada com alicerce no art. 37, § 4º, da Lei Maior e, por esse motivo, está subordinada ao princípio da tipicidade das normas restritivas de direito; 2) 'todavia, o conteúdo do v. acórdão acabou por transformar o significado do conceito legal inserto no art. 13, V, § 3º c/c art. 25, II, da Lei nº 8.666/93, em preceito proibitivo, cerceando a profissão dos advogados ao tentar coibi-los de contratar com pessoas jurídicas de direito público, por meio de inexigibilidade e, pior do que isso, atribui a esta conduta permissiva a prática de ato ímprobo'; 3) a contratação em tela se pautou dentro da legalidade e que '..o exercício da advocacia não se compadece com a competição entre seus profissionais, nos moldes das normas de licitação, cuja própria essência reside justamente na competição. Muito apropriadamente, o Código de Ética recomenda, no oferecimento do serviço de advogado, moderação, discrição e sobriedade'; 4) 'Não há que se falar, portanto, em conteúdo proibitivo violado pela recorrente, mostrando-se atípica a sua conduta, de modo que não se poderia atribuir ao caso a prática de ato ímprobo, nos termos da Constituição.'
3. Defende o recorrido que: 1) os recorrentes não comprovaram a preliminar de repercussão geral sob a perspectiva econômica, política, social ou jurídica; 2) a decisão recorrida está amparada em normas de índole eminentemente processual; 3) ausência de prequestionamento dos dispositivos constitucionais apontados como violados no julgado recorrido, ensejando a aplicação da Súmula 282-STF.
4. Os autos do RE nº 610.523 foram apensados ao presente processo. Nele, o Ministério Público do Estado de São Paulo ataca o acórdão da Nona Câmara de Direito Público/Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o qual restou reformado pelo acórdão do STJ, ora recorrido.
5. A União e o CESA - Centro de Estudos das Sociedades de Advogados foram admitidos na condição de amicus curiae. E o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil/CFOAB, como assistente.
2. TESE
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SERVIÇO DE ADVOCACIA. CONTRATAÇÃO COM DISPENSA DE LICITAÇÃO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE NORMA PROIBITIVA. LEI Nº 8.666/93, ARTIGOS 3º, 13 E 25. LEI Nº 8.429/92, ART. 11. CF/88, ARTIGO 37, § 4º.
Saber se configurada a prática de ato de improbidade administrativa.”
Em síntese, os fatos de interesse estão assim delineados:
- é contratação por Prefeitura Municipal de escritório de advocacia, por inexigibilidade de licitação, para prestação de serviços técnico especializados junto ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (essencialmente), em processos de interesse daquele ente público;
- o entrave jurídico está na caracterização ou não da “singularidade” do serviço apta a fundamentar a contratação por inexigibilidade de licitação. Para o Ministério Público, o serviço contratado não ostenta a qualidade de “singular” como exigido pela Lei de Licitações. A Procuradoria Geral da República (f. 1728 do processo disponível no site do STF), afirma tratar a atuação junto ao Tribunal de Contas de serviço advocatício ordinário que não enseja a contratação de terceiros para a plena satisfação do interesse público. O recorrente, por seu turno, afirma tratar-se de serviço de natureza singular passível de contratação com dispensa da licitação, mesmo com advogados no quadro de pessoal do ente público.
Sem a pretensão de discutir processo pendente de julgamento (o que seria defeso) o fato é que a causa ganhou contorno nacional (v.g. repercussão geral reconhecida) perante a comunidade jurídica e tem gerado acirradas discussões em âmbito judicial. Prova disso é que também está pendente de julgamento no Conselho Nacional do Ministério Público, a Proposta de Recomendação 03/02/204, que “visa recomendar aos Membros do Ministério Público absterem-se de adotar medidas contrárias ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça (RESP 1.192.332/RS) que, conforme os artigos 13 e 25 da Lei 8.666/93 autoriza o ente público a contratar o advogado por inexigibilidade de licitação, assegurando a inviolabilidade ao exercício profissional do advogado. (Processo CNMP nº 0.00.000.000171/2014-42).”
In casu, a análise fica restrita aos serviços técnico especializados de atuação junto ao Tribunal de Contas.
Aspectos da atuação do Tribunal de Contas.
Para melhor compreensão do tema é necessário esclarecer alguns aspectos de atuação do Tribunal de Contas, principalmente nos pequenos municípios onde não existe (no mundo dos fatos) essa dicotomia erigida pelo texto constitucional (art. 70, incisos I e II) sobre “contas de governo” e “contas de gestão”.
Na prática, em cidades de pequeno porte (onde o ordenador da despesa é sempre o prefeito), a atuação da Corte de Contas está assim delineada:
(i) Os Chefes de Poder Executivo (Prefeitos Municipais) sujeitam-se ao procedimento chamado "Prestação de Contas", cujo rito dá-se nos termos da legislação infraconstitucional (em São Paulo, a Lei Orgânica do TCE/SP e seu Regimento Interno) com a sua decisão fracionando-se em parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas (art. 71, I, CF) e julgamento perante o Poder Legislativo (art.31, §§1º e 2º; art. 49, IX, da CF).
(ii) As contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos (os Prefeitos nas pequenas cidades) ficam submetidas a julgamento perante os Tribunais de Contas (art.71, II, CF), por meio de processo comumente chamado de "Tomada de Contas", instituído e regulamentado pelo Decreto Lei nº 200/67, incorporados à legislação local no âmbito dos Estados (em São Paulo, Lei Orgânica do TCE/SP).
A sobredita normatização objetiva fazer que quem quer que utilize dinheiros, bens e valores públicos tenha de justificar o seu bom e regular emprego na conformidade das leis e regulamentos, com atendimento do interesse público, mediante julgamento pelos meios estabelecidos.
Mas não é só, existe a Lei de Responsabilidade Fiscal que criou junto aos órgãos públicos, um novo sistema de controle de contas públicas. Como bem disse o Prof. Hélio Saul Mileski[1]:
“Primeiro que a Lei de Responsabilidade Fiscal envolve uma iniciativa regulamentar absolutamente inovadora, no sentido de consolidar um novo regime fiscal no País, com estabelecimento de princípios norteadores para uma gestão fiscal responsável, de uma forma que não se imaginava por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição promulgada em 1988.
(...) não poderiam os aspectos de gestão fiscal responsável regulados na Lei Complementar nº 101/2000 participarem da Constituição de 1988 porque refletem uma situação atual e totalmente diferenciada das circunstâncias daquela época, quando não se pensava na estruturação de um novo regime fiscal, com o grau de abrangência, transparência, limites, fiscalização e penalização como o colocado na Lei de Responsabilidade Fiscal e lei de sanções fiscais.
Desta forma, o sistema de fiscalização adotado pela Constituição de 1988 é dirigido para o controle contábil, financeiro, operacional e patrimonial, tendo em conta os aspectos de legalidade, legitimidade e economicidade dos atos praticados pelos administradores (art.70), com envolvimento genérico de aspectos fiscais, contudo, sem alcançar, especificamente, as situações de gestão fiscal, na conformidade do normado na Lei Complementar nº 101/2000 e, por isso, não se lhe aplicando as regras de julgamento fixadas para as contas de que trata a Constituição, posto a gestão fiscal ter competências e procedimentos de julgamento próprios, de acordo com o determinado na sobredita legislação complementar.
(...) Por sua vez, as regras da Lei Complementar nº 101/2000, buscando alcançar um desenvolvimento sustentável, objetivam estabelecer responsabilidade para a gestão fiscal, a qual deve estar dirigida por uma ação planejada e transparente, visando prevenir riscos e corrigir desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, cuja circunstância torna permissível de ser procedido o seu julgamento, na forma da regulamentação contida na própria lei, até porque esta segue na esteira de um dos modelos indicados na Constituição.
O legislador infraconstitucional, considerando que a matéria diz respeito a programa de governo, envolvendo cumprimento de limites e condições para a renúncia de receita, geração de despesa com pessoal e grau de endividamento, entendeu que, para o responsável pela gestão fiscal, deveria aplicar a forma destinada ao julgamento das contas dos Chefes do Poder Executivo.
(...) Como as contas da gestão fiscal também refletem fatos de natureza econômica e financeira, além de direcionadas para o estabelecimento de um equilíbrio entre receita e despesa, têm em conta um programa global de governo, assentado em princípios como o de planejamento e de transparência, que vinculam a todas as autoridades públicas, envolvendo as chefias dos três Poderes, do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Assim, com tais peculiaridades, ficam adstritas à simetria constitucional sendo, por isso, razoável que tais contas também sejam submetidas à fiscalização e ao parecer prévio do Tribunal de Contas, com o seu julgamento ficando a cargo do Poder Legislativo. “
Nesse arcabouço legislativo, sobrevêm os temas que compete ao Tribunal de Contas apreciar (contas de governo) e julgar (contas de gestão) o ordenador da despesa (prefeito municipal). Consta na Lei Orgânica do TCE/SP (LC 709/93):
“Artigo 2º - Ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, nos termos da Constituição Estadual e na forma estabelecida nesta lei, compete:
I - apreciar e emitir parecer sobre as contas prestadas anualmente pelo Governador do Estado;
II - apreciar e emitir parecer sobre a prestação anual de contas da administração financeira dos Municípios, excetuada a do Município de São Paulo;
III - julgar, no âmbito do Estado e dos Municípios, as contas dos gestores e demais responsáveis por bens e valores públicos da administração direta e autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, inclusive fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao erário;
IV - acompanhar a arrecadação da receita dos Poderes Públicos sobre os quais tenha jurisdição;
V - apreciar, no âmbito do Estado e dos Municípios, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão;
VI - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos concessórios de aposentadoria, reforma ou pensão, ressalvada melhoria posterior que não altere o fundamento legal da concessão;
VII - avaliar a execução das metas previstas no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual;
VIII - realizar, por iniciativa própria, da Assembleia Legislativa, de comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditoria de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nos órgãos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, do Ministério Público e demais entidades referidas no inciso III deste artigo;
IX - fiscalizar as aplicações em empresas de cujo capital social o Poder Público estadual ou municipal participe;
X - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pelo Estado, mediante convênio, acordo, ajuste ou instrumento congênere;
XI - prestar as informações solicitadas pela Assembleia Legislativa ou por comissão técnica sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, bem como sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;
XII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei;
XIII - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada a ilegalidade;
XIV - sustar, se não atendido nos termos do inciso anterior, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Assembleia Legislativa ou à Câmara Municipal competente;
XV - comunicar à Assembleia Legislativa ou à Câmara Municipal competente qualquer irregularidade verificada nas contas ou na gestão públicas, enviando-lhe cópia dos respectivos documentos;
XVI - encaminhar à Assembleia Legislativa ou à Câmara Municipal, conforme o caso, para sustação, os contratos em que se tenha verificado ilegalidade;
XVII - julgar convênios, aplicação de auxílios, subvenções ou contribuições concedidos pelo Estado e pelos Municípios a entidades particulares de caráter assistencial ou que exerçam atividades de relevante interesse público;
XVIII - julgar renúncia de receitas, contratos, ajustes, acordos e atos jurídicos congêneres;
XIX - julgar as contas, relativas à aplicação pelos municípios, dos recursos recebidos do Estado ou por seu intermédio, independentemente da competência estabelecida no inciso II deste artigo;
XX - autorizar a liberação de fiança ou caução, ou dos bens dados em garantia, do responsável por bens e valores públicos;
XXI - verificar o ato que libere, restitua ou substitua caução ou fiança dada em garantia da execução de contrato ou ato jurídico congênere;
XXII - decidir os recursos interpostos contra as suas decisões e os pedidos de revisão e rescisão;
XXIII - expedir atos e instruções normativas, sobre matéria de suas atribuições e sobre a organização de processos que lhe devam ser submetidos, obrigando o seu cumprimento, sob pena de responsabilidade;
XXIV - decidir sobre denúncia que lhe seja encaminhada por qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato;
XXV - decidir sobre consulta que lhe seja formulada acerca de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes à matéria de sua competência, na forma estabelecida no Regimento Interno;
XXVI - expedir instruções gerais ou especiais, relativas à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, exercida através do controle externo;
XXVII representar ao Poder competente do Estado ou de Município sobre irregularidade ou abuso verificado em atividade contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e nos processos de tomada de contas;
XXVIII - emitir parecer conclusivo, no prazo de 30 (trinta) dias, por solicitação de comissão técnica ou de inquérito da Assembleia Legislativa, em obediência ao disposto do artigo 34, § 1º da Constituição do Estado; e
XXIX - aplicar aos ordenadores de despesa, aos gestores e aos responsáveis por bens e valores públicos as multas e demais sanções previstas nesta lei.
Em linhas gerais, no exercício do controle externo sobre as Prefeituras o Tribunal de Contas: aprecia e emite parecer das contas de governo; julga as contas de gestão; acompanha a arrecadação da receita; aprecia para fins de registro os atos de admissão de pessoal (e aposentarias); avalia metas previstas no PPA/LDO e LOA; faz inspeções in loco nas cidades; fiscaliza quaisquer recursos repassados pelo Estado; aplica sanções; assina prazo para que a prefeitura adote providências necessárias ao cumprimento da lei; susta atos de governo; julga convênios, auxílios, subvenções ou contribuições concedidas pelas prefeituras a entidades assistenciais; julga renúncia de receitas; expede atos normativos; julga denúncias e representações formuladas em face do poder público
Ou seja, a atuação do Tribunal de Contas, nos limites de sua competência institucional, é abrangente: isso é fato! No caso do Estado de São Paulo, cumpre registrar, além de desempenhar essa função institucional de forma impecável (que merece reverência) a Corte também desempenha notável função pedagógica.
Do enfrentamento de questões com temática multidisciplinar.
A consequência natural dessa gama de atuação do Tribunal de Contas, é o enfrentamento, por parte das prefeituras, com questões que envolvam uma temática multidisciplinar e que exige conhecimentos jurídicos; contábeis; sociais; econômicos e financeiros ou de administração pública.
A própria Constituição Federal, no inciso III do art. 73, erigiu o requisito para nomeação de Ministros do TCU (conselheiros do TCE, por simetria) relativo a: “III - notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública.”
Assim, penso que o primeiro equívoco dessa discussão que gira em torno do RE. 656.558/STF (serviços advocatícios perante TCE), é a reserva de mercado para a advocacia, ou melhor dizendo, o erro de tipificação comum nos procedimentos de inexigibilidade (art. 25 da Lei n. 8.666/93), elaborados com fundamento no inciso V do art. 13 da mesma Lei (v - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas”), para contratar escritório de advocacia.
Explico.
O jus postulandi perante as cortes de contas, não é exclusivo dos profissionais do direito. Como bem disse o Professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes ao comentar esse tema em sua obra “Tribunais de Contas no Brasil – Jurisdição e Competência”, ed. Fórum, p 645:
“os julgadores têm formação multidisciplinar, favorecendo a argumentação, também multidisciplinar”
No caso de patrocínio de causas junto ao Tribunal de Contas, não há como negar, que há sim peculiaridades inerentes aos processos que tramitam no TCE/SP. A começar pelas espécies, ou seja, processos de contas e de fiscalização, somente encontrados nos órgãos de controle. Além disso, comparando-se com o processo judicial, observam-se várias diferenças nas regras processuais.
O aspecto fático se sobressai, exigindo muitas vezes elevado aprofundamento técnico multifacetado (jurídico, contábil, financeiro, etc.) nas matérias em discussão. Para isso, o TCE/SP possui em sua estrutura assessoria e secretarias especializadas (assessoria técnica, contábil e Secretaria de Diretoria Geral)[2], o que propicia bastante conhecimento das matérias submetidas ao exame dos auditores e dos conselheiros.
Outrossim, não é despiciendo comentar que os cursos jurídicos não contemplam disciplinas que abordem a processualística dos tribunais de contas ou os tipos de processos julgados por essas Cortes.
Além disso, quando se contrata serviços jurídicos por inexigibilidade de licitação para patrocínio ou defesa de “causas” administrativas, estar-se-ia (penso eu) desvirtuando o espectro de atuação da Corte Especializada (que julga, aprecia, avalia, comunica, audita, susta, emite parecer, expede), o qual, não se encerra numa “causa” administrativa.
Com efeito, o tratamento das questões que envolvam a atuação do Tribunal de Contas e consequentemente a contratação de profissional com notória especialização para lidar com temática multidisciplinar (tal como preconizado pela Constituição Federal para os Ministros do TCU), não ocorre “post factum”, mas sim, “pari passu”, porque as funções de controle externo das Cortes de Contas evoluíram significativamente ao ponto de se exigir um acompanhamento técnico especializado (concomitante: preventivo e corretivo).
Daí, que atualmente, não se cogita apenas do modelo constitucional de fiscalização. Não olvide que a Lei Complementar nº 101/00, trouxe grandes mudanças na gestão pública quanto ao planejamento das ações do governo, e também quanto à regulação dos gastos, contribuindo significativamente para a evolução dos conceitos de responsabilidade, eficiência e transparência na gestão pública. Na LC 101/00 há previsão de punições para voltadas para os municípios (v.g. proibição de recebimento de repasses legais e voluntários).
No caso do Estado de São Paulo, recentemente foi criada a Estratégia denominada “Índice de Efetividade de Gestão Municipal” que prima pela auditoria de resultados. Consta no Manual do IFGM (disponível no site do TCE/SP):
“O Tribunal de Contas, já há algum tempo, tem realizado mudanças significativas em suas atividades de fiscalização de controle externo. As medidas fiscalizatórias como ações concomitantes, acompanhamento de contas, integração de Agentes de Colaboração, Programa de Fiscalização Continuada - PROFISCO, reuniões técnicas virtuais com UR´s, participações nas atividades da Rede INFOCONTAS, no CIISP e no FOCCOSP, disponibilização de matriz de risco, entre outras importantes atividades, têm sido um ponto de destaque na produção de conhecimento para tornar a fiscalização de controle externo mais técnica e eficiente, tendo por base os princípios da auditoria de resultado. O Sistema Audesp e o e-TCESP, ambos com foco no aperfeiçoamento das atividades jurisdicionais da Corte, implementam, ao menos aos interessados, celeridade, transparência e acessibilidade da informação e do conhecimento.
(...)
Com passos seguros, a Corte de Contas paulista entende que novas tecnologias de controle externo devem ser utilizadas para um novo modelo de fiscalização, com foco nos princípios da Economia, da Eficiência, da Eficácia e da Efetividade, respeitando suas atribuições constitucionais e legais. Esse grande desafio consiste em estabelecer caminhos para efetivar a modernização e a ampliação do modelo de fiscalização de conformidade para o de auditoria de resultado, nos moldes do que ocorre nas grandes nações desenvolvidas (como o Bundesrechnungshof – o Tribunal de Contas da Alemanha, entre outros) e no Tribunal de Contas Europeu, de caráter supranacional, responsável pelo controle externo das contas da União Europeia. Uma mudança de comportamento das atividades de controle externo, em busca de análises de resultado da execução do orçamento dos entes federados jurisdicionados, deve passar por critérios técnicos e objetivos, muito bem delineados, que apresentem a convergência de interesses públicos com o planejamento estatal. Criar indicadores finalísticos para análises dos processos utilizados pelos jurisdicionados é uma tarefa que vem reunindo esforços dos agentes políticos e técnicos da Corte de Contas Paulista com o fim de contribuir para uma sociedade mais justa. Esses indicadores, que ora se propõem, podem estabelecer uma mudança significativa nas futuras fiscalizações do Tribunal.”
Como se vê, essa evolução significativa das ações de controle dos Tribunais de Contas, a par de contribuir sobremaneira na gestão dos recursos, no aprimoramento das ações de governo, na efetividade das políticas públicas (sob todos os aspectos), encerra também a necessidade de aprimoramento técnico na relação “prefeitura – tribunal”. Essa necessidade está intimamente ligada na noção de interesse público, principalmente diante dos interesses tutelados pela Poder Público (exegese da auditoria de resultados). Há, assim, nítida singularidade do interesse público a ser atendido.
Admitir-se o contrário, seria desprezar os novos sistemas de controle instituídos pelo TCE.
E nem se diga que estas contratações por si só, possam caracterizar desvio de finalidade, porque de certa forma beneficiariam o gestor público e não órgão que representa.
A atribuição do rótulo de indevida a essa contratação dependeria de inequívoca demonstração de que o assessoramento não aproveita aos interesses do ente público, ainda que, reflexamente, possa o administrador se beneficiar dos serviços e produtos decorrentes dessa contratação.
Os questionamentos de atos de gestão (lato sensu) inerentes à condução das atividades de uma prefeitura municipal, podem, sem dúvida, obstaculizar o alcance dos resultados planejados. Situa-se numa zona cinzenta a confluência dos interesses da entidade e dos gestores nessa espécie de contratação
É difícil, portanto distinguir a tênue fronteira que os separa nos casos concretos, quando os gestores, no exercício de suas atribuições para produção de resultados pactuados, após superado o processo decisório, podem sofrer questionamentos quanto à legalidade, economicidade ou legitimidade de seus atos.
Aspectos fáticos que ensejam a contratação de serviços especializados.
Cediço que nem sempre há uma sintonia entre órgão fiscalizador e órgão jurisdicionado, em termos de aprimoramento técnico. Isso ocorre por vários fatores: (v.g. econômicos, culturais, políticos e sociais).
Apenas para registro, vale lembrar alguns deles:
(i) em pequenas cidades, principalmente, ninguém ousa dizer, data venia, que jamais existirá profissional do direito integrante do quadro de pessoal que possa atuar movido por viés político (opositores, etc.), ativando-se em questões de alta relevância como são aqueles que constituem a relação “tribunal de contas – prefeitura”.
(ii) a estrutura organizacional das prefeituras possui imensa demanda (social, bucrocrática, logística). Os profissionais, estão comprometidos com um sem número de tarefas cotidianas que acabam por “engessar” a “tecnicidade” e a “especialidade” no trato com as Cortes de Contas. O tempo e o modo podem formar um verdadeiro “automatismo” laboral,
(iii) as jurisdicionalização das demandas que envolvem as políticas públicas está em linha crescente (com toda razão, ad argumentandum). O crescimento de demandas, não assoberba somente o Judiciário, mas o Executivo (a quem são voltadas);
(iv) a chancela concursal acaba por abarcar o profissional de toda a gama desses serviços ordinários afetos à uma procuradoria (execução fiscal, audiências, atendimento ao público, contencioso cível, administrativo em geral, protocolos, cartórios de fórum, prazos processuais, contestação, apelação, agravos, recolhimento de guias, etc.). Ademais, não poderia exigir num processo de seleção de advogados, conhecimentos aquém das ciências jurídicas e sociais.
O Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul realiza periodicamente pesquisa qualitativa sobre a percepção da Corte pelos jurisdicionados e pela população em geral.
Na passagem abaixo, os entrevistados roboram a argumentação sobre a necessidade das prefeituras se valerem de um trabalho técnico:[3]
“Eles são bastante minuciosos e técnicos. (Procuradoria Geral do Município de Bento Gonçalves, Procurador Geral, Bento Gonçalves) “A auditoria é boa porque atua em todos os setores da prefeitura (...)Os funcionários, na maioria das vezes, erram por ignorância da Lei”. (Prefeitura Municipal de Campinas do Sul, Assessor Jurídico, Campinas do Sul)
“(...) Eu observo muito colegas, inclusive eu, que não temos o conhecimento adequado de todas as áreas que nós trabalhamos. Eu gostaria de receber mais informações deste órgão que me fiscaliza, mas que tenho a impressão, não me fiscaliza para me condenar, me fiscaliza para melhorarmos o processo de gestão, de auxílio de gestão. (...)”.(Prefeitura Municipal de Cachoeirinha, Prefeito, Cachoeirinha).
“(...) Eu, por exemplo, não tenho conhecimento da maioria das áreas do TCE, eu não tenho conhecimento. Eu ia ter um conhecimento maior... Conhecer o TCE como um todo, todas as áreas através, até, dos auditores porque não vai ser com visitas do Tribunal. O Tribunal não vai fazer visitas, vai auditar, então, através dos auditores já trazer algum material que os jurisdicionados comecem a conhecer melhor o Tribunal. Não só fazer auditoria, como já aproveitar para...”. (BANRISUL, Chefe de Controle Interno, Porto Alegre)
“Fazer uma simplificação da auditoria, quem sabe uma simplificação, porque os cálculos, para alguns, são incompreensíveis (...) (Câmara Municipal de Porto Alegre, Chefe de Gabinete, Porto Alegre).
“Quanto à clareza dos relatórios: aí a gente se perde um pouquinho, pela forma como é colocado. Eu tenho a impressão que são... desses vários profissionais que vêm, de diferentes áreas, cada um vem e coloca a sua visão, daí falta de repente a visão do todo, do que realmente aconteceu no todo. Pega aqui, pega aqui, fica um meio frankstein (....) (Câmara Municipal de Gravataí, Assessor Jurídico, Gravataí).
Como se vê, quando se fala em atuação de um profissional técnico especializado para lidar com questões afetas ao TCE, existem pressupostos de ordem fática e jurídica que permitem concluir pela “singularidade” da contratação por inexigibilidade de licitação.
O próprio TCE/SP já “fechou questão” nesse sentido, conforme se infere das lições proferidas no voto proferido no TC-17646/26/13, do Exmo. Cons. Sidney Beraldo (j. 20/5/14):
“Ressalte-se que neste particular, esta Corte de Contas já consolidou o entendimento de que a prestação de serviços jurídicos junto a este Tribunal não se insere nos serviços rotineiros e padronizados, inerentes às demandas judiciais comuns, conforme diversas decisões (TCs 000158/007/08, 000658/002/11, 000702/009/11, 000992/002/10, e outros).
Nesta linha, impende lembrar a decisão proferida por esta Corte nos autos do TC-022878/026/00 (Cons. Relator Renato Martins Costa, Segunda Câmara, em Sessão de 18-12-01), conforme trecho de interesse abaixo transcrito: “Mais além foi o Poder Judiciário, em Acórdão da Quarta Câmara de Direito Público, do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Comarca de Cubatão, nos autos de Apelação Cível nº 153.630-5/5-00, ao definir que ‘Os serviços a serem prestados perante o Tribunal de Contas requerem profundo estudo quanto ao assunto num todo, exigindo-se conhecimentos específicos de profissional dedicado ao ramo, máxime com a análise de contas a serem prestadas, requerendo um plus quanto à matéria, em especial, serviços de contadoria.
Não há dúvidas, pois, que os serviços prestados por Advogados, para defesa de Órgãos e Entidades Públicas, em atuação junto aos Tribunais de Contas, contam com o requisito da singularidade previsto na Lei.” Não se pode olvidar que as questões relativas à inviabilidade de competição e notória especialização, que agregados ao conceito de singularidade, em tese, justificariam a inexigibilidade de licitação....”.
Conclusão.
Portanto, a questão tratada no RE.656.558/STF, em tese, retrata um serviço de natureza singular, passível de contratação por inexigibilidade.
Apenas para registro (e sem entrar em qualquer discussão de mérito de processo), acredito que a devida caracterização da contratação nos termos da legislação de regência, deve operar-se pela via do “assessoramento” ao órgão jurisdicionado (art. 13, III, da Lei de Licitações) que pressupõe trabalho técnico “pari passu” compatível com as ações de controle externo do TCE. E, mais: que a contratação deva recair em profissional não que notoriamente reúna os conhecimentos exigidos pelo art. 75, III da Constituição Federal, os quais segundo o STF é pressuposto subjetivo a ser analisado pelo gestor.[4]
[1] Disponível em; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_24/artigos/Art_hsau.htm.
[2]A Lei Orgânica do TCE/SP estabelece: “Artigo 13 - A Secretaria-Diretoria Geral, cuja organização, atribuições e normas de funcionamento são as estabelecidas no Regimento Interno, incumbe a prestação de apoio técnico e a execução dos serviços administrativos do Tribunal de Contas.”
[3]http://www1.tce.rs.gov.br/portal/page/portal/tcers/publicacoes/estudos/estudos_pesquisas/percepcao_sobre_tcers/Qualitativa.pdf
[4] A qualificação profissional formal não é requisito à nomeação de conselheiro de tribunal de contas estadual. O requisito notório saber é pressuposto subjetivo a ser analisado pelo governador do Estado, a seu juízo discricionário.” (AO 476, rel. p/ o ac. min. Nelson Jobim, julgamento em 16-10-1997, Plenário, DJ de 5-11-1999.)
[5] O autor é advogado, especialista em Direito Público Municipal (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUC/RS) e pós graduando em Contabilidade Pública e Responsabilidade Fiscal (Uninter).