Eis que vem à luz um dos mais antigos e relevantes debates encetados na sociedade. Afinal, o porte de drogas deve mesmo ser liberado? Por que as medidas despenalizadoras já trazidas pela Lei 11.343/2006, não surtiram os efeitos desejados? Liberar o porte e potencializar o consumo poderia colocar a sociedade diante de uma caixa de pandora?
A regra de demonizar o sofrimento e tentar patrocinar uma vida de prazer como a idealizada por Epicuro inseriu de vez a sociedade no mundo dos ansiolíticos, dos antidepressivos, da nicotina e do álcool. E agora pressiona o Estado a se posicionar de forma ainda mais tolerante com substâncias entorpecentes até então proibidas pela legislação. Essa dicotomia que tem sido objeto de debates e que deve ser enfrentada pela sociedade em geral, será definida pelo Poder Judiciário, que hoje se traduz em uma manifestação de poder hipertrofiada por um crescente processo de judicialização das demandas. Isso tem decantado um protagonismo que deve encontrar limites no alinhamento de seus posicionamentos com os demais Poderes da República.
Além do processo de judicialização crescente à sombra de um conceito enviesado de democracia, que para muitos significa somente demandar em juízo, há um empoderamento de juízes e desembargadores que desagua em um ativismo judicial, que tem deslocado para os magistrados papeis que deveriam ser realizados, precipuamente, por representantes do Poder Legislativo.
Juízes são agentes políticos por terem suas aribuições definidas na Constituição, mas não se confundem com os representantes eleitos que integram o Poder Legislativo e dirigem o Poder Executivo. A vantagem de assumirem esse protagonismo é que enquanto servidores públicos não tomam suas decisões baseados pressões populares ou da mídia. Essa blindagem constitucional os torna adequados para tratar demandas que lhes são próprias, de natureza técnica ou mesmo as estruturantes, desde que possam ser balizadas pela norma posta, mesmo quando se tem em perspectiva o neoconstitucionalismo pautado na maior aproximação entre direito e moral. O contraponto é que algumas decisões precisam ser tomadas com base um leitura apurada da voz da sociedade, sob pena de desconectar os interesses sociais da reposta de representantes.
Considerar inconstitucional o artigo 28 da "lei de drogas", pode parecer um desdobramento natural após as medidas despenalizadoras, mas liberar o porte e desembaraçar o consumo traz implicitamente um grave problema, com repercussão nas áreas de saúde, desenvolvimento social e segurança pública. Essa medida, trazida ao debate pela via da ação jurisdicional de forma estanque, desacompanhada da regulamentação da produção interna, da distribuição e da comercialização torna o cenário esquizofrênico, na exata medida em que libera o consumo e mantém a criminalização da venda. Isso pode garantir lucros ainda maiores para os grandes traficantes. Portanto, mostra-se inevitável a análise sistemática do comando contido no art. 28, que está parametrizado, dentre outras regras gerais previstas na parte inicial da lei, no art. 31 do mesmo diploma, que assevera in verbis:
Art. 31. É indispensável a licença prévia da autoridade competente para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, drogas ou matéria-prima destinada à sua preparação, observadas as demais exigências legais.
Há razões para olhar a questão de forma mais ampla. O consumo de entorpecente, como qualquer atividade de mercancia, obedece a regras básicas de oferta e demanda. Onde houver mais consumo, haverá aumento de oferta do produto. Uma questão persiste nesse cenário. Como legalizar o consumo sem alcançar a venda? A solução para uma decisão tão ousada, seria encontrada nos laboratórios e no sistema existente de acesso a drogas lícitas. Da ritalina ao rivotril, quem pode pagar uma consulta recobre-se com o manto da legalidade dos receituários médicos e tem o embarque garantido em suas viagens ou o alívio para a incomôda realidade.
Em um cenário onde a medicina não mira somente a cura, mas o alívio da dor como forma de garantir dignidade à vida humana, o que diferencia um laboratório farmacêutico de um ponto de refino é o recolhimento de tributo e a forma como se movimentam para garantir seu espaço no mercado. O desenho da solução para esse imbróglio de conotação meramente moral e nada pragmática, está cada vez mais claro. O Estado não tem como equacionar a fórmula “tolerância para o consumo X combate à oferta de entorpecente”, pois as variáveis estão em conflito.
É imperioso que o Poder Público faça uma sinalização clara à sociedade. As tentativas de proibição seletiva, permitindo acesso a algumas drogas como nicotina, álcool e a criminalização do porte e da obtenção de outras substâncias, fracassa pela impossibilidade de se manter uma estrutura sustentável de controle. A solução que se apresenta é tão simples quanto desconfortável. A liberação total do uso, com a regulamentação da produção e da comercialização.
Há diversos aspectos que podem ser analisados acerca da liberação e seus efeitos. Dois merecem destaque, o dever do Estado de regular as condutas que representem risco à saúde pública e o dever de garantir a segurança dos cidadãos de forma ampla e irrestrita. A saúde pública teria um sistema de proteção mais eficiente se a lógica do sistema estivesse pautada na regulação, e não na proibição da produção e da comercialização. Essa mudança de foco está intimamente ligada à outra garantia constitucional mencionada, a segurança pública, na medida em que deslocará, no que tange ao tráfico de drogas, os focos de violência de grandes espaços públicos (territórios do tráfico), que se tornaram áreas de exclusão, para ações fragmentadas e pontuais, sem um viés empresarial.
Seria pueril achar que todos os crimes vão acabar com essa medida, mas a diminuição de uma das atividades que mais empodera o crime organizado atualmente libera o aparato policial do Estado para agir em outras frentes como corrupção, tráfico de pessoas, tráfico de armas, contrabando, roubo de cargas, entre outros. O acerto da medida pode ser ainda maior, se for considerado que grande parte das ações criminosas tangenciam de alguma forma a estrutura das quadrilhas de tráfico de drogas, seja no fornecimento de recursos logísticos como armas, dinheiro e até mesmo “soldados do tráfico”, seja no oferecimento de territórios controlados para o entrincheiramento.
Os recursos oriundos da tributação sobre a atividade de comercialização deveriam ter destinação vinculada à estruturação de um sistema de acolhimento e proteção das vítimas dos excessos de consumo, ou seja, ampliar a rede de atendimento a drogados, com tratamentos de desintoxicação, acompanhamento psicológico e reinserção no meio social. O fortalecimento desse serviço seria compatível com um circunstancial aumento do consumo e, consequentemente, dos casos de intoxicação, numa espécie de desdobramento pelo ineditismo da medida. Sendo certo que a tendência no médio prazo, segundo estudos sobre o comportamento dos que utilizam entorpecentes, tende a ser a estabilização do consumo.
Em contraponto a essa estratégia liberal existe a linha mais conservadora. Reconhecer que drogas que causam qualquer tipo de dependência, e que não sejam objeto de tratamento médico, devem ser proibidas, não havendo qualquer concessão para uso recreativo. Fecham-se todos os flancos e retira-se a legalidade do álcool e da nicotina. Essa seria uma medida compatível com o que a legislação brasileira estabelece para a sociedade hoje, pelo menos na tese apresentada pelo ordenamento jurídico pátrio, que tem entre seus standarts constitucionais a proteção à saúde e a promoção do bem estar. Esse era o caminho que vinha sendo indicado pelo positivismo jurídico, que parece ter funcionado em determinada época, mas a sociedade, concordemos ou não, elegeu valores que dão provas suficientes do esgotamento dessa lógica.
O Estado é uma ficção jurídica criada para atender aos anseios da sociedade que lhe dá sentido. Os Poderes da República devem observar as variações nos paradigmas morais dos cidadãos e elaborar leis ou dar-lhes interpretações que estejam alinhadas com os valores que decantam do dinamismo das relações sociais. O caso, quando analisado pela perspectiva da sociedade moderna e seu "way of life", deixa bastante claro o desejo por mais entorpecimento e menos repressão.Nesse sentido, cabe ao Estado, principalmente nas figuras de seus representantes eleitos, desenhar o caminho já rascunhado pelos costumes praticados na sociedade.
Nesse contexto a liberação do porte de drogas deve estar alinhada com outras medidas que lhe dão sentido, como a regulação da produção, distribuição e comercialização pelo Estado, com entrega da prestação desses serviços ao particular licitamente estabelecido no mercado. O modelo vigente vem sendo testado no Brasil desde a segunda metade do século passado, com algumas adequações ao longo desses anos. E os resultados alcançados não fornecem argumentos suficientes para a sua manutenção. Além desse aspecto, há a tendência que vem sendo adotada em outros países no sentido de tolerar o consumo e regular o acesso à droga. Sem alarde e às custas de muito debate, a sociedade brasileira precisa enfrentar esse espinhoso tema, sem abrir mão das conquistas até aqui adquiridas.